quinta-feira, 1 de fevereiro de 2024

Veto a leis do nome neutro e autodeterminação de género e das respetivas medidas a adotar nas escolas

 

A 29 de janeiro, o Presidente da República (PR) devolveu à da Assembleia da República (AR), ainda sem promulgação (ou seja, vetou), o Decreto da AR n.º 127/XV, que “estabelece o quadro jurídico para a emissão das medidas administrativas a adotar pelas escolas para a implementação da Lei n.º 38/2018, de 7 de agosto, procedendo à sua alteração, e o Decreto da AR n.º 132/XV, que modifica o regime de atribuição do nome próprio e de averbamentos aos assentos de nascimento e de casamento, alterando o Código do Registo Civil.

De acordo com as notas presidenciais em referência e as cartas que enviou ao presidente da AR, o chefe de Estado aduz que o primeiro diploma não respeita, suficientemente, o papel dos pais, dos encarregados de educação, dos representantes legais e das associações por eles formadas, nem clarifica as diferentes situações em função das idades. Por isso, a AR deve ponderar a introdução de “mais realismo”, em matéria em que de pouco vale afirmar princípios que se chocam, pelo “geometrismo abstrato, com pessoas, famílias, nas escolas, em vez de as conquistarem para a sua causa, numa escola que tem hoje, em Portugal, uma natureza cada vez mais multicultural”.

Relativamente ao segundo diploma, o PR considera que “não garante um equilíbrio no respeito do essencial princípio da liberdade das pessoas”, pelo sublinhado dado ao “nome neutro”, nome que “é legítimo como escolha dos progenitores”, mas que “não deve impedir a opção por nome não neutro, se for essa a vontade de quem teve essa decisão. Por outro lado, o diploma “vem permitir que uma pessoa, que decida mudar de género, possa fazer registar, unilateralmente, essa alteração em assentos de casamento dessa pessoa ou de nascimento de filhos, nomeadamente menores, sem que a pessoa com quem foi ou é casada seja consultada ou sequer informada, tal como sem que o outro progenitor ou o filho maior se possam pronunciar ou ser informados”.

O veto político presidencial vem na sequência do pedido que a Associação Portuguesa de Escolas Católicas (APEC) formulou ao chefe de Estado, no sentido de vetar as medidas a adotar pelas escolas, para garantir o direito de crianças e jovens à autodeterminação da identidade de género.

Em nota de imprensa, a APEC alegava que a legislação em apreço, aprovada pela AR, a 15 de dezembro, viola, de modo “flagrante e inaceitável”, o artigo 45.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa (CRP) que determina que “o Estado não pode programar a educação e a cultura segundo quaisquer diretrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas”. Por outro lado, segundo a APEC, a legislação “emana de uma ideologia destruidora dos fundamentos societais, assente numa desconstrução de padrões de convivência social milenares”.

Segundo o texto aprovado, a 15 de dezembro, em votação final global, as medidas a adotar pelas escolas, para garantir o direito de crianças e jovens à autodeterminação da identidade de género e à proteção das suas caraterísticas sexuais, as escolas devem definir “canais de comunicação e deteção”, identificando o responsável ou os responsáveis a “quem pode ser comunicada a situação de crianças e jovens que manifestem uma identidade ou expressão de género que não corresponde ao sexo atribuído à nascença”.

Após ter conhecimento desta situação, a escola deve, em articulação com os pais, com os encarregados de educação ou com os representantes legais, promover a avaliação da situação, “com o objetivo de reunir toda a informação relevante para assegurar o apoio e acompanhamento e identificar necessidades organizativas e formas possíveis de atuação, a fim de garantir o bem-estar e o desenvolvimento saudável da criança ou jovem”.

A escola terá de garantir que “a criança ou jovem, no exercício dos seus direitos e tendo presente a sua vontade expressa, aceda às casas de banho e balneários, assegurando o bem-estar de todos”, para o que procederá “às adaptações que se considerem necessárias”. E a APEC sustenta que este ponto fere “a privacidade, a intimidade, o resguardo e a proteção das crianças e jovens das instituições escolares”, advogando que as escolas, e as católicas em particular, “têm procedido ao tratamento das situações que lhes surgem, com o cuidado, respeito e singularidade que merecem, sem necessidade de uma generalização, vulgarização e normalização”.

Na ótica da APEC, esta legislação, ao preconizar a promoção de ações de informação e sensibilização para crianças e jovens, alargando-as à restante comunidade escolar, põe a escola “no papel de doutrinação da ideologia de género” e “não no papel de formar crianças e jovens, ajudando a construir a sua identidade orientada para uma cidadania ativa, tendo em vista uma sociedade melhor e mais justa”.

Por outro lado, critica o facto de as medidas terem sido aprovadas com o governo “em condições de fragilidade política”, demissionário desde 8 de dezembro, “com celeridade excessiva e sem o debate e o esclarecimento necessários, imprescindíveis a uma alteração legislativa desta natureza, com as consequências sociais dela decorrentes”.

Segundo o diploma, as crianças devem poder escolher de acordo com a opção com que se identificam, “nos casos em que existe a obrigação de vestir um uniforme ou qualquer outra indumentária diferenciada por sexo”. E devem ser promovidas ações de formação dirigidas ao pessoal docente e não docente, em articulação com os Centros de Formação de Associação de Escolas, “de forma a impulsionar práticas conducentes a alcançar o efetivo respeito pela diversidade de expressão e de identidade de género, que permitam ultrapassar a imposição de estereótipos e comportamentos discriminatórios”.

A legislação para a autodeterminação da identidade de género nas escolas foi deliberada pela AR após a rejeição, pelo Tribunal Constitucional (TC), em 2021, da sua regulamentação pelo governo. O texto final, que agrega projetos de lei do Partido Socialista (PS), do partido Pessoas-Animais-Natureza (PAN) e do Boco de Esquerda (BE), foi aprovado com os votos destes e do Livre, e teve os votos contra do Partido Social Democrata (PSD), do Chega e da Iniciativa Liberal (IL) e a abstenção do Partido Comunista Português (PCP).

***

Ao invés do que era de esperar, a contestação incide mais nas medidas a adotar nas escolas do que na questão do nome neutro e da autodeterminação de género.

A APEC, criticando a legislação pelo lado da ideologia, preocupa-se mais com o interior das escolas do que com a questão de fundo, onde reside a ideologia que pode ou não ser aceite.

É certo que a autodeterminação de género e a orientação sexual se inscrevem no quadro dos direitos humanos e não podem constituir pretexto para qualquer forma de discriminização. Todavia, para que tais direitos sejam garantidos, não precisamos de alterar as estruturas físicas existentes nas instalações escolares ou outras – embora se possa e deva acautelar esse quesito de igualdade ou de diversidade em instalações novas – nem de mudar as gramáticas (como alguns querem com os nomes próprios neutros e mesmo com nomes comuns de desinência neutra, do tipo macieire, pere, musique, soldade, etc.).

O argumento de que “todes” se devem sentir confortáveis deve também aplicar-se aos que se sentem melhor em espaços marcadamente masculinos ou en espaço marcadamente femininos.

Nada tenho contra o uso de nome próprio neutro, nem contra a descaraterização sexual em documentos de registo. Porém, julgo não haver necessidade de forçar a língua portuguesa a admitir um género (o neutro, que havia no Latim e no Grego) que deixou cair ao longo da História.

Por outro lado, é de evitar que os nomes neutros ou a autodeterminação de género não redundem em modismos desnecessários e de efeitos nefastos. Por isso, a legislação vetada diz bem em não impor o nome neutro e em não proibir o nome masculino ou feminino, bem como a caraterização masculina ou feminina. Contudo, não gosto de que escolhas ou alterações desta ordem se façam às escondidas de cônjuges e parentes da mesma comunidade familiar. Talvez o caminho seja o da aposta forte numa antropagogia desempoeirada e respeitosa. 

Numa coisa assento: a aceitação inequívoca da igualdade de género, que impeça todo o tipo de discriminação. Já quanto à identidade de género (no pressuposto de que a diferenciação é fruto da sociedade e não da Natureza), duvido da validade do seu suposto suporte científico. E lamento que haja mudanças de sexo que, mais tarde, se querem reverter. As pessoas foram na onda ou foram lançadas na aventura ou na coação?            

***

No caso do diploma que foi aprovado apenas com os votos contra do Chega na Comissão de Direitos Liberdades e Garantias e que permitia que uma pessoa registasse um nome próprio que não fosse identificado com o género masculino ou feminino – por exemplo Alex, Rafa, Cris –, o PR diz que o texto “não garante um equilíbrio no respeito do essencial princípio da liberdade das pessoas”. E considera que, sendo a escolha do nome neutro legítima, ela “não deve impedir a opção por nome não neutro, se for essa a vontade de quem teve essa decisão”.

O segundo problema respeita ao facto de a lei permitir que uma pessoa possa decidir mudar de género, registando tal mudança nos averbamentos de casamento ou de nascimentos de filhos, “sem que a pessoa com quem foi ou é casada seja consultada ou sequer informada, tal como sem que o outro progenitor ou o filho maior se possam pronunciar ou ser informados”.

“O Presidente da República entende que quem muda de sexo ou nome, se é casado/a, a outra parte tem uma palavra a dizer sobre isso. Mas, se a outra parte tivesse algo a ver com isso, seria inconstitucional, por violação da liberdade individual, da autonomia e da autodeterminação da pessoa que muda de sexo ou nome”, sustenta a deputada socialista Isabel Moreira.

Quanto ao diploma que estabelece a possibilidade (e até a obrigatoriedade) de as escolas adotarem medidas para implementar a lei que estabelece a autodeterminação da identidade e expressão de género (“lei das casas de banho”), como por exemplo a formação e sensibilização da comunidade escolar, além da identificação de um profissional responsável pelas situações de disforia de género, o PR considera que o texto não respeita suficientemente o papel dos pais, dos encarregados de educação, dos representantes legais e das associações por eles formadas, nem clarifica as diferentes situações em função das idades.

Isabel Moreira frisa que “já havia um decreto regulamentar em vigor e cuja implementação estava a correr muito bem”. Contudo, o TC considerou-o ferido de inconstitucionalidade orgânica, pois tinha de ter a “forma de lei.” Foi isso que foi feito. “E, mesmo assim, o decreto caiu”.

Ao vetar o diploma, o PR “legitimou a ideia de que proteger direitos fundamentais de jovens trans pode ser uma ameaça e cedeu mais uma vez a uma agenda que está a beneficiar, neste momento, não a igualdade e direitos fundamentais como a liberdade e a segurança de todos – o que implica proteger as minorias – mas uma direita ultrarradical”, aponta a deputada.

***

Considero que a argumentação do veto presidencial à “lei das casas de banho” é artificiosa e algo rebuscada. Não obstante, é excessivo dizer que houve cedência a uma direita radical.

A APEC aponta o dedo, não à ideologia base, mas a fumos que, havendo uma cultura de equilíbrio (que faz falta) não teriam efeitos nefastos na sociedade e até evitariam casos de enorme sofrimento para quem se vê discriminado e com problemas existenciais. Quanto ao artigo 45.º da CRP, teríamos de criticar muitas coisas na intervenção do Estado âmbito da Cultura e da Educação. E, quanto à duvidosa legitimidade do diploma por o governo estar demissionário, é de referir que a AR, sede de aprovação do diploma, esteve na plenitude de funções até 15 de janeiro.

Por fim, estranho a decisão do TC sobre o dito decreto regulamentar. Foi a própria Lei n.º 38/2018, de 7 de agosto, no seu artigo 12.º, n.º 3, que deu poderes regulamentares aos membros do governo responsáveis pelas áreas da igualdade de género e da educação. Não houve subtração à AR.  

2024.02.01 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário