segunda-feira, 12 de fevereiro de 2024

Jesus, rosto misericordioso do Pai, é homem de rua, não de lei e templo

 

O Deus que ama e abraça, com ternura paterna e materna, todos os filhos e filhas, mormente os atingidos pelos acidentes da vida que os magoaram e desfiguraram, não exclui ninguém, nem aceita que, em seu nome, se criem sistemas de discriminação ou de marginalização dos irmãos.

Assim, a liturgia do 6.º domingo do Tempo Comum no Ano B mostra-nos Jesus a passar, com os discípulos, nas ruas e nas estradas a ensinar, a ouvir e a curar, ao invés dos sacerdotes e dos levitas, cujo mister era exercido exclusivamente no Templo e segundo os rígidos artigos da Lei.   

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Evangelho (Mc 1,40-45) evidencia como, em Jesus, Deus desce ao encontro das vítimas da rejeição e da exclusão, Se compadece da sua miséria, lhes estende a mão com amor, as liberta dos sofrimentos e as convida a integrar a comunidade do Reino, pois não pactua com a discriminação e denuncia todos os mecanismos de exclusão como contrários ao seu plano.

Jesus percorre as vilas e aldeias da Galileia, a proclamar o Reino de Deus. Nestas andanças, depara com todo o tipo de homens e de mulheres com vidas fragilizadas, muitos dos quais vivem esquecidos e marginalizados pelas mais diversas razões. Para eles, é uma “Boa Notícia” o anúncio da proximidade do Reino de Deus, com a esperança numa vida mais humana e mais feliz.

Desta vez, Jesus cruza-se com um leproso, sem nome e sem ligação geográfica, o protótipo de todos os marginalizados que Jesus encontra ao percorrer os caminhos da Galileia. Também não interessa a indicação do lugar onde se desenrola o episódio, mas apenas Jesus e aquele homem.

É conhecida a situação social e religiosa dos leprosos. Para a Teologia oficial, o leproso era pecador, maldito e vítima de um bem doloroso castigo de Deus. Pela sua condição, era obrigado a autoexcluir-se da comunidade, ficando-lhe vedada a frequência da assembleia do Povo de Deus. Tinha de viver isolado, de se apresentar andrajoso e de gritar o seu título de “impuro”, para que dele ninguém se aproximasse. Não acedia ao Templo, nem mesmo a Jerusalém, Cidade santa, para não conspurcar os lugares sagrados. Era o protótipo do marginalizado, do excluído, do segregado. A sua condição arredava-o da comunidade humana e do próprio Deus.

Não obstante, este homem, transgredindo a Lei e, obviamente, arriscando o merecido castigo da parte dos sacerdotes e o linchamento pela multidão, toma a iniciativa de vir ter com Jesus. Tinham-lhe chegado os ecos do anúncio do Reino e sentira abrir-se uma janela de esperança.

O desejo de sair da situação de miséria e de marginalidade em que está imerso fá-lo superar o medo de infringir a Lei; e aproxima-se de Jesus, sem respeitar a distância que deve manter das pessoas sãs. É o ato de quem não se conforma com viver à margem de Deus e da comunidade.

Diante de Jesus, o leproso, humilde, mas insistente “prostrou-se de joelhos e suplicou-Lhe”. Na verdade, o encontro com Jesus é oportunidade de libertação que não pode desperdiçar. Não exige nada, mas coloca-se nas mãos de Jesus: “Se quiseres, podes purificar-me”. A expressão revela a absoluta confiança no poder de Jesus. Está convicto de que Jesus pode ajudá-lo a sair da triste situação. Não implora a cura, mas a purificação (“podes purificar-me”: o verbo grego “katharízô” significa “purificar” ou “limpar”). Não lhe pesa a doença, mas não suporta sentir-se sujo, pecador, em rutura com Deus. Quer que Jesus remova o obstáculo que o priva da comunhão com Deus.

A reação de Jesus é inacreditável, para os padrões judaicos. Não o afastou, não Se indignou, não Se afastou com repulsa, não o acusou de infringir a Lei e de pôr em causa a saúde pública. Ao invés, “compadeceu-Se até às entranhas”. O verbo “splankhnízomai” é aplicado, na literatura neotestamentária, só a Deus e a Jesus. É empregue usado em contextos de ênfase da ternura de Deus pelos homens, comparável à da mãe sente pelo seu filho querido. Jesus, “comovido até às entranhas” ante o intolerável sofrimento daquele homem, responde: “Quero: fica limpo.” Nesta sua explícita manifestação de vontade, revela que Deus tem coração de mãe, que transborda de ternura, face à miséria e ao sofrimento dos homens. O amor de Deus, tornado presente em Jesus, manifesta-se num gesto concreto para com o leproso: Jesus estende a mão e toca-o. É um gesto “humano” e de afeto, que manifesta a bondade e a solidariedade de Jesus para com aquele homem desfigurado pela doença e abandonado por todos.

Jesus podia curá-lo, sem o tocar, falando ou mantendo silêncio, mas o uso da palavra e o gesto de estender a mão têm profundo significado teológico. A palavra é a força criadora (Deus disse e as coisas foram feitas) e recriadora; e estender a mão é o gesto que acompanha, na História do Êxodo, as ações libertadoras de Deus em favor do seu Povo. O amor de Deus manifesta-se como gesto libertador, que salva o homem leproso da escravidão em que a doença o lançara. Por outro lado, ao tocar o leproso, Jesus está, consciente e deliberadamente, a infringir a Lei, denunciando-a, por gerar marginalização e exclusão. Jesus, com a autoridade que Lhe vem de Deus, mostra que a marginalização imposta pela Lei não exprime a vontade de Deus. Tocar o leproso mostra, com toda a frontalidade, que a distinção entre puro e impuro, consagrada pela Lei, não vem de Deus e não transmite a lógica de Deus, pois Deus não discrimina ninguém; o que Ele quer é reunir todos os filhos e filhas numa grande família, a comunidade do Reino.

A resposta verbal de Jesus ao leproso não acrescenta nada. Apenas confirma, por palavras, que, do ponto de vista de Deus, o leproso não é marginal, pecador condenado, homem indigno, mas filho amado a quem Deus oferece a salvação e a Vida em plenitude.

Consumada a purificação, Jesus ordena ao leproso que não diga nada a ninguém. Esta ordem, que aparece, várias vezes, no Evangelho de Marcos, é dado histórico resultante do facto de Jesus não querer alimentar equívocos, sendo aceite pelas razões erradas.

De acordo com Mt 11,5, a cura dos leprosos era obra do Messias; assim, o gesto de Jesus define-O como o Messias que Israel esperava. No entanto, na Palestina em plena febre messiânica, Jesus evita o título, que tem algo de ambíguo, por estar ligado à perspetiva nacionalista e ao sonho de luta política contra o ocupante. Jesus não alimenta essa falsa esperança messiânica, pois está cônscio de que o messianismo não passa pelo trono (como queriam as multidões), mas pela cruz. Não obstante, ao leproso purificado, Jesus diz que vá mostrar-se aos sacerdotes. Segundo a Lei, o leproso só podia ser reintegrado na comunidade, depois de a cura ter sido homologada pelo sacerdote em funções no Templo, pois era ele que tinha poder para declarar a situação de lepra.

 E Jesus acrescenta: “… para lhes servir de testemunho”. Dado que a cura de um leproso só podia ser operada por Deus e era, por isso, um sinal messiânico, o facto devia servir aos líderes do Povo para concluírem que o Messias chegara e que o Reino de Deus estava já presente no Mundo.

Assim, o leproso purificado devia ser testemunho da presença de Deus no meio do seu Povo e sinal de que chegaram os novos tempos. Porém, os líderes judaicos demasiado instalados nas suas certezas, preconceitos e privilégios, rejeitaram a novidade de Deus, a novidade do Reino.

O texto termina, dizendo que o que fora leproso “começou a apregoar e a divulgar o que acontecera”, apesar do silêncio que Jesus lhe impusera. Com efeito, quem experimenta o poder integrador de Jesus converte-se em profeta e em testemunha do amor e da bondade de Deus.

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primeira leitura (Lv 13,1-2.44-46) mostra-nos o contraponto da atitude evangélica: a legislação veterotestamentária definia o modo de tratar com os leprosos. Em nome da saúde pública, do nome de Deus e da santidade do Povo de Deus, as leis de Israel determinavam a exclusão do doente de qualquer contacto com a comunidade.

O Livro do Levítico trata, sobretudo, de questões relacionadas com o culto, que era incumbência dos sacerdotes, membros da tribo de Levi. O trecho em apreço pertence à terceira parte do Livro (cf Lv 11-16), conhecida como “lei da pureza”, onde se catalogam os vários géneros de impureza que impedem o homem de se aproximar do santuário e os ritos destinados a purificar o homem.

Esta noção de impureza é muito próxima da noção de “tabu” que os especialistas da História das Religiões conhecem. De facto, o homem deseja a sua vida balizada por regras que o protejam do risco do desconhecido. Assim, tudo o excecional, anormal, insólito, misterioso, é considerado como algo suscetível de libertar forças incontroláveis que o homem não domina e que podem destruir a harmonia e o equilíbrio pretendidos. Portanto, o mais seguro é erguer uma barreira que mantenha o homem afastado dessas realidades. Foi isto que os decisores políticos estabeleceram aquando da pandemia de covid-19, até encontrarem as vacinas.

Desde tempos imemoriais, certos tabus interditavam aos Israelitas o contacto com determinadas realidades (sangue, cadáver, certos tipos de alimentos, etc.). Se o homem entrava em contacto com elas, ficava impuro. Não era pecado, mas o homem devia limpar a impureza contraída, logo que possível, a fim de reencontrar o equilíbrio e a harmonia. Só depois de purificado, podia voltar a aproximar-se do Deus santo e a estabelecer comunhão com Ele. O caso mais grave de impureza era causado por uma doença – a lepra. É a essa realidade que o trecho em causa se refere.

O termo “lepra” designa um conjunto variado de afeções da pele, e não apenas a doença que nós conhecemos com essa designação. No geral, utiliza-se, hoje, o termo para designar vários tipos de enfermidade da pele, que deformam a aparência da pessoa afetada. Seja como for, o leque de afeções aqui catalogado sob a designação geral de “lepra” é visto como um estado insólito e anormal, uma manifestação de forças misteriosas que ameaçam a harmonia e o equilíbrio da existência do homem. E o leproso era, em consequência, segregado e afastado da convivência com as outras pessoas. Tal medida tinha, antes de mais, a intenção higiénica de evitar o contágio, mas significava a dificuldade da comunidade em lidar com o insólito, com as forças misteriosas e inquietantes da doença (aqui, uma doença particularmente repulsiva, que não podia ser tratada e que, potencialmente, era fatal).

Porém, a segregação estabelecida na Lei para os leprosos tinha também um motivo religioso. Para a mentalidade do povo bíblico, Deus distribuía as recompensas e os castigos de acordo com o comportamento humano. A doença era o castigo de Deus para os pecados e infidelidades da pessoa. Ora, doença tão assustadora e repugnante como a lepra era tida como castigo terrível para pecado muito grave. O leproso era, portanto, um pecador, especialmente amaldiçoado por Deus, indigno de pertencer à comunidade do Povo de Deus e que, em nenhum caso, podia ser admitido às assembleias onde Israel celebrava o culto na presença do Deus santo.

Quando alguém exteriorizasse sinais de pecado e de indignidade, devia ser banido da comunidade santa pelas autoridades competentes (os sacerdotes). O sacerdote não aplicava remédios nem tinha função terapêutica (embora a sua intervenção ajudasse a controlar o mal e a impedir o contágio), mas decidia da capacidade ou da incapacidade de alguém para integrar a comunidade do Povo de Deus e para ser admitido à presença do Deus santo. Compreende-se, humanamente, a dificuldade da comunidade israelita em lidar com doença contagiosa grave e repugnante, mas é impensável que, em nome de Deus e da santidade do Povo de Deus, se criem mecanismos de rejeição, de exclusão, de marginalização. Por isso, sentimos como salutar a revolução desencadeada por Jesus. E a questão que se levanta é se ainda estamos presos aos Livro do Levítico ou se já aderimos ao Evangelho, isto é, se ainda estamos no judaísmo ou se já somos cristãos.

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segunda leitura (1Cor 10,31-11,1) ajuda a responder à questão acabada de levantar, convidando os cristãos a terem como prioridade a glória de Deus e o serviço dos irmãos. O exemplo supremo deve ser o de Cristo, que viveu na obediência incondicional ao desígnio do Pai e fez da sua vida dom de amor ao serviço da libertação dos homens.

Temos, no trecho em apreço, a conclusão do ensinamento de Paulo sobre o consumo da carne dos animais sacrificados nos santuários religiosos de Corinto.

Paulo começa a sua exortação com um primeiro imperativo: “Fazei tudo para a glória de Deus.” “Tudo” é bem expressivo: já não se trata do que se come, nem do que se bebe, mas da totalidade da vida: toda a ação do crente deve ter como finalidade a glorificação de Deus.

A seguir, há outro imperativo, mas em forma negativa: “Não deis escândalo”. Antes, o apóstolo tinha-se referido a não causar escândalo junto dos mais débeis, como no caso do consumo das carnes imoladas aos ídolos; mas, agora, o olhar de Paulo amplia-se às dimensões da cidade e do Mundo. Abraça todos os homens e mulheres, de todas as raças e culturas e inclui os irmãos na fé (de Corinto e de qualquer outra Igreja). Não é lícito ao crente fazer mal seja a quem for. Os estudiosos de Paulo dizem que este segundo imperativo não é mais do que a explicitação do primeiro: a glorificação de Deus passa pelo respeito integral por cada homem ou mulher com quem o crente se cruza. A este propósito, Paulo refere – para ilustração dos Coríntios – o próprio exemplo: nunca procurou o seu próprio interesse, mas o bem de todos. O que sempre o moveu, na sua ação e missão, foi só o amor aos irmãos a quem Deus o enviou a anunciar a Boa Notícia.

Por fim, aparece um terceiro imperativo: “Sede meus imitadores, como eu o sou de Cristo”. Explica porque é que, antes, se tinha apresentado como exemplo: não é porque se ache melhor do que os outros, mas porque tem procurado, com toda a honestidade e coerência, imitar Cristo. Ora, Cristo não viveu ao sabor dos próprios interesses e projetos pessoais, mas deu a vida para que se concretizasse o desígnio do Pai em favor dos homens. Cristo tem sido, para Paulo, a fonte inspiradora. Com Ele, aprendeu a viver para a glória de Deus, servindo os irmãos. É esse o caminho que aponta aos irmãos de Corinto e a todos nós.

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O cuidado do corpo e a preservação da saúde pública não nos permitem excluir os outros da comunidade e do abraço de Deus, como não nos podem afastar dos irmãos, nem de Deus. A verdadeira religião alimenta-se do templo, mas não se confina ao templo, antes se realiza e frutifica fora dele. O cristão, tendo conhecido a Lei, não se torna servo da Lei, mas põe-se ao serviço da Fé em Cristo. Dela nasceu, nela cresce e com ela entra na comunhão com Deus e com os irmãos, na certeza de que a perfeição se alcançará no Além.   

2024.02.12 – Louro de Carvalho

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