quarta-feira, 31 de março de 2021

Páscoa de Cristo, Páscoa da Igreja, Páscoa do Mundo

 

A Semana Santa configura o que podemos chamar a Páscoa de Cristo, pela qual, no termo da sua viagem batismal e missionária da Galileia para Jerusalém, Se entregou à morte de cruz dando a vida pela redenção da humanidade pecadora, mas infinitamente amada por Deus.

O termo “Páscoa” deriva, através do latim “Pascha e do grego “Paskha(nome indeclinável), do hebraico “Pesaḥ ou Pesach(passagem sofrida), que evoca a Páscoa judaica. O nome grego “Paskha” está relacionado lexical e semanticamente com o verbo “Páskhô”, que significa padecer, sofrer, morrer, ser feliz, receber uma graça ou pensar, opinar.

Na verdade, por impulso dos chefes judaicos (sem eles o pensarem, coincidente com o desígnio do Pai), Jesus padeceu a traição da parte de um discípulo, a prisão como se fosse um malfeitor, a negação por parte do discípulo sobre quem edificou a sua Igreja, um julgamento irregular na luta contra o tempo e sem ensejo de defesa, a flagelação, a coroação de espinhos, a caminhada para o Calvário, a Crucifixão e a Morte na Cruz. Padecimento, sofrimento, dor, humilhação. Porém, consciente de que o Pai Se glorificava neste ato de entrega redentora, perpetuável no mistério do pão e do vinho tornados corpo entregue por nós e sangue derramado pela multidão em remissão dos pecados, considerou, atraindo todos a Si, estar a receber a graça da glorificação no e com o Pai, agregando a esta glorificação todos os seus seguidores na bruma do passado, na agrura do presente e na esperança sofrida e jubilosa do futuro. E, se a Páscoa judaica, em cuja celebração Jesus Se envolveu algumas vezes e que celebrou com os discípulos, evoca a antiga passagem do anjo exterminador das objeções faraónicas à libertação do povo de Israel, preservando a vida, saúde e bens essenciais dos seus filhos e os fez passar a pé enxuto o Mar Vermelho e os projetou para o deserto como longa rampa de lançamento para a terra da promissão, hemos de atinar em que o grande mensageiro do Pai, que partilha da sua vida, desígnio e glória, passou deste mundo para o Pai, mas desceu à morada dos mortos para lhes explicitar a redenção prometida e oferecida, confortou os discípulos com a novidade da ressurreição, de que eles, ressuscitados com Ele, serão testemunhas em todo o mundo por si e por seus sucessores, e subiu ao céus confiando-lhes a sua missão apostólico-messiânica e enviou o Espírito Santo que lhes prometera.  

É certo que a celebração pascal não foi inventada pelos judeus, muito menos pelos cristãos. Já os povos antigos, como atesta Trinh Xuan Tjhuan (A vertigem do Cosmos, 2020), pela orientação dos megálitos, desenhos no solo e nos baixos-relevos, consideravam os dias que antecediam o equinócio de março e os subsequentes como o tempo da renovação da natureza pelo revestimento da terra com a verdura das ervas, o viço dos arbustos, o vigor das árvores, a beleza das flores e a promissão de frutos saborosos (que haviam de maturar). Os judeus acrescentaram à festa das tendas e à das colheitas a festa da Páscoa, celebrando a libertação, que os transportou para a noção de Deus criador. Ora, pelo renovo da natureza nesta ocasião, por vezes tumultuoso, e pela novidade a aliança firmada, já não no sangue dos touros ou cabritos, mas no sangue de Cristo, não servida pelo decálogo próprio e exclusivo de Israel, mas pelo código das bem-aventuradas de incidência interior e exterior e alcance universal como prediziam os profetas, surge a Páscoa de Jesus, tornado pela ressurreição como o Senhor e Messias (Cristo em grego) pelo qual e só pelo qual temos a salvação, com a garantia segura de que, no Espírito Santo, qual dom de Deus, se renovarão todas as coisas e de que nós estamos chamados a cuidar.

Assim, a Igreja que foi, contra a confissão de fé petrina em Cesareia de Filipe, instituída em Pedro, nasceu do lado aberto de Cristo, foi erigida na ressurreição e confirmada no Pentecostes.

A partir daí, com a paz e o perdão oferecidos por Cristo, robustecida pelo banquete sacrificial do pão e do vinho (lembrando o sacrifício de Melquisedeque), tornados corpo e sangre de Cristo, desvalorizando totalmente os sacrifícios antigos pela sua ineficácia e necessidade de reiteração, celebra a Páscoa de Cristo como sua Páscoa. Fá-lo todos os dias e, sobretudo, ao domingo, o dia em que Ele ressuscitou, o dia em que nos enviou o Espírito Santo. E celebra-a anualmente durante 50 dias – desde a ressurreição ao Pentecostes, passando pela ascensão. A passagem de Jesus pelo mundo para redenção ou recriação do homem todo da humanidade (todo o homem e todo os homens = homens e mulheres) e da natureza chega ao seu termo no Pentecostes. É que a redenção é obra solidária de Pai, Filho e Espírito Santo. Mas a Igreja, fazendo leitura da Boa Nova à luz da ressurreição, une-se a todo o mistério pascal de Jesus – aclama-O na sua entrada triunfal em Jerusalém, recebe o seu ensino no Templo, participa da Ceia Primeira ou Última, em que Ele deu a senha do ser cristão – o amor fraterno, como Ele fez, e a unidade em torno da ceia e da cruz – instituiu a Eucaristia e criou o novo sacerdócio enquanto compartilha do seu único e definitivo sacerdócio. Acompanha a oração no Getsémani, contempla a prisão e o julgamento atrabiliário, esconjura a traição, a negação e a ululação pela morte, contempla o percurso do Calvário, a crucifixão e morte e vai com Ele à sepultura e lança o pregão da ressurreição.   

Depois, reconfortada com a paz de Cristo ressuscitado, o mesmo que foi crucificado como explicou aos discípulos de Emaús e mostrou a Tomé, cheia do Espírito Santo e portadora do perdão, quer que todo o mundo celebre a Páscoa de Cristo, que é a Páscoa da Igreja. E só pode descansar quanto tiver criado e consolidado as condições de celebração de Páscoa santa, santificada e santificadora em todo e por todo o mundo e ter congraçado a natureza.

Para tanto, é preciso que todos saibam que Jesus Cristo veio ao mundo para ser o nosso único Salvador e assim o fez, dando a sua vida na cruz por amor e para nos livrar de todos os pecados, um amor a que devemos corresponder e estender a todos os nossos irmãos e irmãs. Temos de entender que Deus, ao entregar ao sacrifício da cruz o seu filho amado, perdoou todos os nossos pecados. Ora, se fomos perdoados, também temos de saber semear o perdão e doá-lo a quem dele precisar.

Assim, a Páscoa é ensejo para repensarmos as nossas atitudes, livrarmo-nos de comportamentos limitantes e removermos as impurezas do nosso ser, purificando-nos com o amor do nosso Salvador em articulação com a comunidade eclesial e tornando esta quadra algo ainda mais íntimo, em termos pessoais, e solidário, em termos comunitários. A fé pascal é totalmente pessoal, mas também totalmente comunitária.

A Páscoa é tempo de ver e assumir o amor de Deus por todos nós, de lhe corresponder e o tornar extensivo e difusivo. Quem conhece o verdadeiro significado da Páscoa conhece o verdadeiro amor de Deus por cada um dos seus filhos e filhas e pelos e pelas que desejam ser povo da sua conquista. O verdadeiro significado da Páscoa tem a ver com a entrega do Senhor Jesus, o papel que desempenhou em nossa vez ao redimir todos os nossos pecados. É perdão por inteiro, sem vestígios de passado. É recomeço, recomeço de uma vida melhor e plena no amor de Deus.

Ao falarmos da Páscoa, focamo-nos na entrega sacrificial na Ceia e no sacrifício cruento de Jesus na cruz. Então, Ele tornou-Se o Cordeiro de Deus e serviu como sacrifício para que Deus perdoasse todos os pecados do mundo, os já que haviam acontecido e os que ainda estavam por acontecer. Desde o instante em que Jesus foi crucificado, Deus reconciliou-Se com o seu povo, perdoou-o e amou-o com amor infindo e infinito. A Páscoa é, pois, tempo de reconciliação.

Este é o momento de celebrar a vida de Jesus. Com efeito, Ele morreu e ressuscitou por cada um de nós. É o momento de celebrar o amor de Deus por nós e, acima de tudo, é o momento de celebrar o dom da vida que nos foi dado. Ele foi julgado injustamente, aceitou sofrer no Calvário e morreu, como os ladrões, numa cruz e prometeu ao arrependido a participação no Reino. Este é o tamanho do amor de Deus por nós, a que devemos corresponder com a vida e tudo que apoia a vida, desde a matéria inorgânica ao bem-estar humano, sem abuso ou excesso.

As pessoas creem na morte e ressurreição de Jesus Cristo, mas esquecem-se de que a morte dele foi para perdoar todos os pecados. Deus fez o sacrifício de dar seu Filho unigénito para que pudesse cada um de nós ser perdoado. Por isso, há que aproveitar o ensejo para cada um se reconciliar com Deus, pedir o perdão dos pecados e vivar conforme o novo mandamento.

A entrega de Jesus por Deus Pai para que Ele pudesse limpar cada um de nossos pecados é a bênção e a graça que devemos assumir na vida pessoal e com ela contagiar a comunidade que integramos, enfim vivendo como Ele quer e manda.

A Páscoa é o momento ideal para recomeçar a viver. Apoiando-nos na ressurreição de Jesus Cristo, revestindo-nos com a força que Ele teve e amando a Deus como Ele nos ama, dando testemunho público do seu amor, há que retomar a vida e os nossos planos ajustando-os aos de Deus, com os pés a andar sobre a terra e olhos fitos no céu, abjurando do fermento da malícia e da perversidade e celebrando com o ázimo da pureza, da verdade, da alegria e da liberdade.

***

A Páscoa é tempo de refletir...

A Páscoa é tempo de amar...

A Páscoa é tempo de querer bem...

A Páscoa é tempo de rezar...

A Páscoa é tempo de cantar...

A Páscoa é tempo de louvar e agradecer...

A Páscoa é tempo de bendizer e abençoar…

A Páscoa é tempo de perdoar...

A Páscoa é tempo de reconciliar...

A Páscoa é tempo de recomeçar...

A Páscoa é tempo de se libertar...

A Páscoa é tempo de cuidar...

A Páscoa é tempo de viver e fazer viver...

A Páscoa é tempo de conviver...

A Páscoa é tempo de se comprometer...

2021.03.31 – Louro de Carvalho

terça-feira, 30 de março de 2021

Mais de metade dos alunos não atingiu os conhecimentos mais elementares

 

Foram aplicados testes a 23 mil alunos do ensino básico no início do 2.º período – a que responderam 12.960, para se perceber como a suspensão das aulas, no ano letivo passado, lhes afetou as aprendizagens. Não foi exame nem prova de aferição, mas um estudo pedido pelo Ministério da Educação (ME), que envolveu alunos do 3.º, 6.º e 9.º anos para dar informação às escolas a fim de que possam ajudar os alunos a recuperar as matérias atrasadas.

O diagnóstico feito pelo Instituto de Avaliação Educativa (IAVE) ao impacto da pandemia nas aprendizagens mostra dificuldades no 6.º e 9.º anos e resultados melhores no 3.º ano.

Como se lê no JN, Público e Sapo 24, os testes incidiram sobre Matemática, Leitura e Ciências. Os resultados, divulgados a 29 de março, mostram que menos de metade dos alunos do 6.º e 9.º ano mostrou ter o nível esperado em conhecimentos elementares, sendo mais satisfatória a situação dos alunos do 3.º ano, o outro nível de ensino avaliado.

Por exemplo, na Leitura, só 47,1% dos alunos do 9.º ano passaram a “linha de corte”, demonstrando ter os conhecimentos esperados no nível 1. Este é o nível mais elementar que avalia a capacidade de “identificar informação explícita num texto”. Já no 6.º ano, foram 41,9% os alunos a atingir o nível esperado para os conhecimentos de nível 1.

O IAVE hierarquizou as questões colocadas aos alunos em 4 níveis em função da dificuldade. Por exemplo, no 6.º ano só 27,4% dos alunos conseguem atingir o patamar de conhecimentos desejado no nível mais elevado. Na apresentação dos resultados, João Costa, Secretário de Estado Adjunto e da Educação, frisou que as dificuldades dos alunos nos níveis mais elevados não são diferentes das registadas em outros instrumentos de avaliação, nomeadamente em testes internacionais como o PISA (Programme for International Student Assessment). Contudo, o governante manifestou a sua preocupação com as “percentagens elevadas” de alunos com uma performance inferior ao esperado “em itens de nível mais simples”. Esta tendência é comum às três áreas avaliadas – Leitura, Matemática e Ciências –, tanto no 6.º como no 9.º anos. Por exemplo, na Literacia Científica há apenas 44,1% dos alunos do 9.º e 48,7% dos alunos do 6.º ano a demonstrar os conhecimentos esperados no nível mais elementar. Na Matemática, só 39,5% (9.º ano) e 44,4% (6.º ano) atingem esse patamar no nível 1.

No entanto, é preciso anotar que o IAVE colocou a “linha de corte”, como lhe chamou o seu presidente, Luís Pereira dos Santos, num patamar que classificou de “exigente”. Os alunos tinham de responder corretamente a 2/3 das tarefas para serem postos em terreno positivo.

Os resultados são melhores no 3.º ano, estando a maioria dos alunos acima do patamar esperado tanto a Ciências (62,3%), como a Matemática (62,6%) e na Leitura (51,4%).

Os testes visavam avaliar o impacto do primeiro confinamento nas aprendizagens. A forma como foram desenhados avalia transversalmente as literacias. Por isso, alguns resultados são obtidos “independentemente da pandemia”. Ou seja, correspondem a debilidades estruturais dos alunos. No entanto, João Costa considera que os indicadores permitem perceber que “há um impacto” do ensino remoto no nível de conhecimento. São já “dois anos bastante perturbados pela pandemia”, o que “implica uma ação para os próximos anos”. Todavia, julga “prematuro, neste momento, estar a apontar para qualquer solução”, tendo o ME nomeado um grupo de trabalho que, até ao final do mês de abril, desenvolverá um plano para a recuperação das aprendizagens, com especial incidência nas escolas no próximo ano letivo.

Uma das pessoas convidadas pelo Governo para este grupo de trabalho é a professora da Nova School of Business and Economics (Nova SBE) Susana Peralta, uma das economistas que, na semana passada, apresentou o plano de recuperação das aprendizagens que inclui escolas de verão e o reforço de tutorias e cuja implementação custaria, pelo menos, 200 milhões de euros.

No grupo têm assento a especialista em Saúde Mental Margarida Gaspar de Matos e a vice-presidente da Ordem dos Psicólogos, Sofia Ramalho, sinal da preocupação do ME de centrar o plano não só nas aprendizagens, mas também nas competências emocionais que tenham sido afetadas pela pandemia. Neste grupo estão outros académicos como Domingos Fernandes (ISCTE), João Pedro da Ponte (Universidade de Lisboa), Sónia Valente Rodrigues (Universidade do Porto) e professores do ensino básico e secundário – José Jorge Teixeira, professor de Física e Química no Agrupamento de Escolas Dr. Júlio Martins, em Chaves, e vencedor do prémio Global Teacher Award 2020, David Sousa, diretor da Escola Frei Gonçalo de Azevedo, em Cascais, e Júlia Gradeço, diretora do Agrupamento de Escolas de Oliveira do Bairro.

O relatório divulgado a 29 de março é o primeiro resultado do estudo conduzido pelo IAVE. Os testes feitos em janeiro permitirão análises mais aprofundadas, nomeadamente o cruzamento destes resultados com indicadores socioeconómicos. E o ME anunciou a intenção de “ouvir a voz dos professores” neste exercício de avaliação dos efeitos da pandemia sobre as escolas.

O estudo fora anunciado para o 1.º período e chegou a ter as duas primeiras semanas de dezembro previstas para a sua realização, mas foi adiado para janeiro. Estava previsto que participassem 30 mil alunos (10 mil por cada ano de escolaridade em que foi realizado – 3.º, 6.º e 9.º). Porém, o período de avaliação foi encurtado porque as escolas foram encerradas a 22 de Janeiro, o último dia da aplicação dos testes. A amostra foi, por isso, reduzida a 23 mil estudantes, mas só 12.960 responderam. O número ficou “ligeiramente abaixo da taxa de resposta esperada”, admite o presidente do IAVE, que garante que isso “não coloca em causa a representatividade da amostra”. E o diagnóstico dos impactos da pandemia nas aprendizagens vai ser prolongado. Foram canceladas as provas de aferição do 2.º, 5.º e 8.º anos, previstas para maio/junho,  devido às mudanças no calendário letivo, mas serão aplicadas nas mesmas datas, a uma amostra de alunos, como forma de avaliação do impacto do segundo confinamento.

Os enunciados serão os mesmos, que já se encontravam finalizados e estão “perfeitamente adequados” para cumprir a função de diagnóstico das aprendizagens agora pretendida.

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Como foi entredito, a equipa de investigadores da Universidade Nova de Lisboa defende a criação dum programa de tutorias e estabelecimento de escolas de verão como as melhores soluções para recuperar aprendizagens perdidas com a pandemia. O Governo não apresentou qualquer plano. O investimento pode variar entre 168 e 639 milhões de euros para as tutorias e entre 42 e 55 milhões para as escolas de verão, mas os autores alertam que o custo com a perda de escolarização será muito maior. O estudo “Aprendizagens perdidas devido à pandemia: Uma proposta de recuperação” recorda que “a evidência científica disponível” revela que as perdas de aprendizagens dos alunos foram “muito significativas” – em particular para “os mais jovens e de famílias mais desfavorecidas”. Tal foi o resultado da interrupção do ensino presencial e da sua substituição pelo ensino à distância no primeiro ciclo durante três meses em 2020 e, até à data, cinco semanas em 2021. Pedro Freitas, investigador da Nova SBE e um dos coautores do estudo, explica que o objetivo foi “encontrar duas medidas que tenham já sido testadas e adotadas noutros países anteriormente”, pois já existe “uma série de diretrizes sobre como se pode aplicar e maximizar o seu impacto sobre os alunos”. A escolha dos investigadores (a equipa é completada por Bruno P. Carvalho, Susana Peralta e Ana Balcão Reis, também investigadores da Nova SBE, e por Miguel Herdade, do Ambition Institute mas participando a título individual) recaiu nos programas de tutoria e escolas de verão, isto em fase em que “não foi tornado público nenhum plano de recuperação de aprendizagens” por parte do Governo.

O grupo é o mesmo que publicara um relatório no início de fevereiro a apontar o agravamento das desigualdades entre crianças provocado pelo ensino à distância e cujos membros subscreveram a carta aberta a pedir ao Governo a reabertura das creches e escolas do país.

No atinente aos programas de tutoria, estes foram pensados em particular para as disciplinas de Português e Matemática, apesar de poderem ser aplicados a outras áreas, e estão destinados aos alunos do ensino básico, envolvendo “duas sessões semanais, integradas em horário escolar e em pequenos grupos de 3 a 5 alunos”. Já as escolas de verão teriam a “duração de 4 semanas” e incluiriam “atividades lúdicas e de recuperação de aprendizagens”. Ambos os programas são “exequíveis e passíveis de serem implementados rapidamente”, com o objetivo de “desenhar uma política imediata, efetiva e temporária que permita recuperar as aprendizagens perdidas durante os anos letivos corrente e passado”.

Os cálculos feitos pelos investigadores estabelecem cenários consoante a disponibilidade do Governo para investir nestas medidas, e o número de alunos necessitados de recuperação das aprendizagens. Um dos critérios usado foi “a média da percentagem de alunos que, nas provas de aferição dos 2.º, 5.º e 8.º anos (para o 1.º, 2.º e 3.º ciclo, respetivamente), obtiveram a classificação de ‘Não conseguiram’ ou ‘Não responderam’ nos anos letivos 2016/2017 e 2017/2018”, sendo estes os alunos que terão tido “mais dificuldade em acompanhar o ensino a distância”. Tomando este valor como o “cenário base”, o estudo cria mais três cenários, abrangendo cada um mais alunos que o anterior. Segundo esta lógica, no caso das tutorias para Português, estima-se que estejam envolvidos entre 125 e 380 mil alunos” e que, para Matemática, o número varie “entre 273 e 528 mil”.

O documento determina os custos envolvidos consoante cada um dos cenários na contratação de tutores, frisando que, optando-se por grupos de três alunos, será necessário contratar mais profissionais do que se se optar por grupos de cinco estudantes. Assim, em Português, caso seja preciso auxiliar 125 mil alunos, serão necessários cerca de três mil tutores para grupos de três alunos e perto de dois mil para grupos de cinco, o que obrigaria a um investimento de 88 ou 53 milhões de euros, respetivamente. Se for o cenário dos 380 mil alunos, o custo máximo variará entre os 267 e os 160 milhões de euros. Quanto à Matemática, seguindo o mesmo modelo, o número de alunos necessitados é maior, aumentando o custo da medida. No cenário base, estando envolvidos 273 mil alunos, seriam precisos 7,5 mil tutores para grupos de três alunos e 4,5 mil tutores para grupos de cinco alunos, custando respetivamente 192 ou 115 milhões de euros. No pior cenário, sendo preciso ajudar 528 mil, os custos variam entre os 222 e os 370 milhões de euros. Ao todo, os autores do estudo indicam que “os custos totais destes programas variam entre 168 e 639 milhões de euros”, sendo que “os custos anuais por aluno e por disciplina são de 422 ou 704 euros, dependendo do tamanho dos grupos”. Já quanto às escolas de verão, “podem envolver entre 251 e 331 mil alunos do 1.º e 2.º ciclo, com um custo total de 42 a 55 milhões de euros e um custo por aluno de 166 euros”.

No total, este investimento pode abranger 3 a 10% do orçamento da educação em 2021, mas os autores do estudo defendem a necessidade de fazê-lo, dados os riscos da inação. Segundo Pedro Freitas, foi feita a “perspetiva de custos para o país, para saber quanto seria necessário investir, mas, mais do que isso, para saber se este investimento vale a pena”. Para tal, a equipa recorreu às contas da OCDE, que projetam a “perda entre os 2 e os 3% no rendimento ao longo da vida” para os alunos com aprendizagens em atraso. Assim, teve em conta o ordenado médio português (14 mil euros anuais) e os 40 anos de carreira profissional. Pegando nos rendimentos destes alunos no futuro e tirando a perda de 3% acumulada, ela é muito maior do que aquilo que investimos agora. Por isso, as medidas projetadas “custam, são uma fatia importante do orçamento e isso é relevante, mas é investimento com um retorno futuro”, como assegura Pedro Freitas.

Para o investigador, a inação tem várias consequências, a começar pela “incerteza”: “sabemos que este impacto negativo existe, não temos é certeza da sua magnitude”. Não fazer nada é arriscar “vir a ter um grande impacto em Portugal que ainda nem sequer medimos”. Se não se tomarem agora medidas concretas, estes alunos perderão aprendizagens, terão piores resultados escolares, pode haver mais abandono escolar e teremos “uma população menos escolarizada e que vai chegar nessas condições ao mercado de trabalho”. Haverá, pois, uma geração com um nível de aprendizagens menor que a anterior e que entrará no mercado de trabalho menos qualificada – “risco demasiado sério para se deixar passar”. Ademais, a situação poderá agravar o atraso que sofríamos em relação ao resto da UE, pois somos o país com maior percentagem de população sem educação secundária: 47,8% da população residente com idades entre os 25 e os 64 anos não concluiu o ensino secundário (mais do dobro da média da UE).

Por outro lado, vinca-se que todo este plano se arquitetara no pressuposto de que em Portugal não foram disponibilizados dados que nos permitam aferir atrasos ou perdas de aprendizagens, o que já não é verdade. O reparo era feito numa fase em que se aguardam os resultados da recolha efetuada pelo ME, no mês de janeiro de 2021, relativa ao fecho de escolas em 2020 e era revelado no dia em que o Ministro Brandão Rodrigues anunciava testes no fim do ano letivo para avaliar o ensino à distância. Dispor de dados era indispensável para “identificar quem é que está pior”, porque, ao pegar-se neste bolo orçamental, ele tem de ser distribuído para quem mais precisa – o que agora, conhecidos os resultados, já é possível determinar.

Além deste esforço inicial, é preciso manter o acompanhamento após a pandemia, pois não basta aferir hoje: há uma geração em que é de ir aferindo com alguma assiduidade para perceber se os investimentos resultam e se as aprendizagens estão a ser recuperadas.

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No final do ano letivo, o ME voltará a realizar testes de diagnóstico para avaliar os efeitos do ensino à distância nas aprendizagens, como revelou, no Parlamento, à Comissão Eventual para o acompanhamento da aplicação das medidas de resposta à pandemia de covid-19, como revelou o Ministro da Educação ao referir: estamos a preparar um outro estudo amostral no final deste ano, a coincidir com o que eram as provas de aferição”. O objetivo, como disse, é “melhorar o conhecimento do sistema, para que verdadeiramente possamos ter um conjunto de medidas que possam dar uma resposta cabal àquilo que são as perdas das aprendizagens”. Porém, o tema das consequências do ensino a distância nas aprendizagens dos alunos foi um dos mais repetidos na audição, com todos partidos a questionar o governante sobre as medidas previstas para recuperar e consolidar essas aprendizagens no próximo ano. E Brandão Rodrigues frisou que, antes de planear o futuro, é preciso conhecer melhor as consequências do passado e do presente, recordando que já no ano passado foram implementadas medidas nesse sentido.

Além das aprendizagens, muitos deputados também se manifestaram preocupados com a avaliação externa, designadamente com a impossibilidade de os alunos melhorarem notas internas através das notas dos exames nacionais. No entanto, o Secretário de Estado Adjunto e da Educação justificou a decisão, afirmando que, à semelhança do que sucedeu no ano passado, os exames finais do ensino secundário servem apenas para acesso ao ensino superior.

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Em suma, feito o diagnóstico do primeiro confinamento, esperando pelo do segundo e face a propostas científicas de recuperação das aprendizagens perdidas ou diminuídas por via da pandemia e ultrapassadas as consequências emocionais dela decorrentes, resta saber se o Estado quer gastar os aludidos milhões a alocar ao plano ou se prefere guardar uma almofada financeira para salvar mais algum banco ou alguma empresa de bandeira. O tele-ensino não cumpre o papel da escola, sobretudo nos níveis etários mais baixos. Só é tapar o sol com a peneira!

Não é certo que o melhor investimento é o que se faz no capital humano e que a base deste é a educação e a cultura a começar desde as mais tenras idades e a roborar ao longo da vida?

2021.03.30 – Louro de Carvalho

segunda-feira, 29 de março de 2021

O Presidente da República promulga medidas de apoio social urgentes

 

A 28 de março, o Presidente da República (PR) promulgou três decretos da Assembleia da República (AR): o que procede à alteração, por apreciação parlamentar, ao Decreto-Lei n.º 8-B/2021, de 22 de janeiro, que estabelece medidas de apoio pela suspensão das atividades letivas e não letivas presenciais; o que procede à alteração, por apreciação parlamentar, ao Decreto-Lei n.º 6-E/2021, de 15 de janeiro, que estabelece mecanismos de apoio no âmbito do estado de emergência; e o que altera, por apreciação parlamentar, o Decreto-Lei n.º 10-A/2021, de 2 de fevereiro, que estabelece mecanismos excecionais de gestão de profissionais de saúde para realização de atividade assistencial, no âmbito da pandemia da covid-19.

Nisto, diverge do Governo, que tem os diplomas por inconstitucionais por a iniciativa dos deputados contrariar o n.º 2 do art.º 167.º da CRP, envolvendo aumento de despesa no corrente ano económico, e acompanha a deliberação parlamentar. Com efeito, trata-se de diplomas da AR que adotam medidas sociais ditas urgentes para a situação pandémica vivida, um deles sem qualquer voto contra e os outros dois com o voto favorável de todos os partidos parlamentares, salvo o do partido do Governo, invocando este a inconstitucionalidade dos diplomas.

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A justificação presidencial

O Chefe de Estado, no uso dos seus poderes, como há dias referia António Costa, justificou a decisão de promulgar nos termos seguintes: 

A adoção das medidas sociais corresponde, na substância e na urgência, a necessidades da situação vivida, cobertas, em parte, por legislação do Governo.

As leis da AR têm de respeitar a Constituição da República Portuguesa (CRP). Ora, a CRP proíbe, no seu artigo 167.º, n.º 2, que possam ser apresentadas, pelos deputados, iniciativas que impliquem aumento de despesas ou redução de receitas, em desconformidade com o Orçamento do Estado (OE) em vigor para o respetivo ano. Só o Governo pode fazê-lo, como garantia de que a AR não desfigura o OE que ela aprovou, criando problemas à sua gestão pelo Governo.

Os diplomas em análise implicam potenciais aumentos de despesas ou reduções de receitas, mas de montantes não definidos à partida, até porque largamente dependentes de circunstâncias que só a evolução da pandemia permite concretizar, deixando em aberto a incidência efetiva na execução do Orçamento do Estado. O Governo tem, prudentemente, enfrentado a incerteza do processo pandémico, quer adiando a aprovação do Decreto de Execução Orçamental, quer flexibilizando a sua gestão, como aconteceu em 2020.

O PR pode enviar ao Tribunal Constitucional (TC) para fiscalização preventiva (isto é, anterior à promulgação dos diplomas) – os que lhe suscitem dúvidas sobre se respeitam a Constituição. Tem, porém, entendido, desde o primeiro mandato, e sobretudo na presente crise, só o dever fazer no caso de não ser, de todo em todo, possível uma interpretação dos diplomas que seja conforme à Constituição. E, quando é possível essa interpretação, tem optado por promulgar, tornando claro em que termos, no seu entender, os diplomas devem ser aplicados por forma a respeitarem a Lei Fundamental. Sendo impossível tal interpretação e merecendo acolhimento substancial a iniciativa parlamentar, tem recorrido ao uso do veto corretivo, convidando a AR a aproveitar tal iniciativa, tornando-a conforme à Constituição. Porém, em caso de convicção jurídica clara de se encontrar perante uma inconstitucionalidade e nenhuma justificação substancial legitimar o uso de veto, se reserva o recurso ao TC, tal como no caso de a prática parlamentar passar a ser de constante desfiguração do OE. Tem o Presidente a preocupação de evitar agravar querelas políticas em momentos e matérias sensíveis, o que é mais evidente em situações extremas de confronto entre Governo minoritário e os demais partidos com assento parlamentar, situações que aconselham, de parte a parte, a concertação de posições e não a afrontamento, sobretudo em crise tão grave, a exigir espírito de diálogo e não de dissensão ou discórdia, e muito menos clima de crise política, a todos os títulos indesejável.

Neste caso, como noutros do mandato anterior, há uma interpretação conforme à Constituição. A interpretação que justifica a promulgação dos presentes diplomas é simples e conforme à Constituição: os diplomas podem ser aplicados, na medida em que respeitem os limites resultantes do Orçamento do Estado vigente.

Para o Presidente da República é visível o sinal político dado pelas medidas em causa, não se justificando o juízo de inconstitucionalidade das medidas, o que parece ser confirmado pela diversa votação do partido do Governo em diplomas com a mesma essência no conteúdo, ora abstendo-se ora votando contra. Não obstante, o Governo dispõe do poder de suscitar a fiscalização sucessiva da constitucionalidade dos diplomas ora promulgados, como aconteceu noutras ocasiões. É a democracia e o Estado de Direito a funcionar.

O Presidente da República chama, no entanto, de forma particular neste momento, a atenção para o essencial do presente debate. De um lado, não há Governo com maioria parlamentar absoluta, sendo essencial o cumprimento da legislatura de quatro anos; do outro, os tempos eleitorais podem levar, por vezes, as oposições a afrontamentos em domínios económicos e sociais sensíveis. Compete ao Presidente da República sublinhar a importância do entendimento “em plenas pandemias da saúde, da economia e da sociedade” sensibilizando o Governo para o diálogo com as oposições e tornando evidente às oposições que ninguém ganharia com o afrontamento sistemático, potencial criador de crise lesiva para Portugal e para os portugueses.

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Os recados do Presidente ao Governo e às oposições

O Primeiro-Ministro informou o PR de que a oposição não tem poder para aumentar despesas no OE em curso. Marcelo discorda aduzindo que o OE tem verbas e o tempo é de emergência e avisa a oposição de que não pode abusar e o Governo de que não deve criar uma crise política.

A edição do Expresso online adiantava, horas após o conhecimento da promulgação, verem-se nas justificações do Chefe de Estado seis recados.

o primeiro é que se trata de medidas urgentes. Marcelo trata os diplomas pelo valor intrínseco, sendo que o Governo parece ter preferido olhar à questão processual em vez de olhar à substância, considerando estar em causa a inconstitucionalidade orgânica. E o PR, alegando olhar à substância, fala em “medidas sociais urgentes para a situação pandémica vivida”. Em termos políticos deixa claro que olha para a legislação, em tempos de emergência, não tanto do ponto de vista da sua admissão constitucional, mas sobretudo pela “pertinência objetiva”.

Em segundo recado, alega a possibilidade de haver margem orçamental. As leis, como lembra Marcelo, estão “cobertas, em parte, por legislação do Governo”. Está subjacente a referência aos diplomas do Governo que reforçam apoios sociais e que a AR se limita a roborar: o do aumento do apoio aos pais e o do aumento do apoio a trabalhadores independentes e sócios-gerentes. Nos dois casos, a oposição uniu-se apenas para os aumentar (num dos casos para o nível de apoio atribuído em 2020). O PR, que é constitucionalista, admite o que o Governo tem vincado recentemente:

As leis da Assembleia da República têm de respeitar a Constituição da República Portuguesa, [que] proíbe que possam ser apresentadas, pelos deputados, iniciativas que impliquem aumento de despesas ou redução de receitas, em desconformidade com o Orçamento do Estado em vigor para o respetivo ano (...), como garantia de que a Assembleia da República não desfigura o Orçamento que ela própria aprovou, criando problemas à sua gestão pelo Governo”. 

Todavia, para Marcelo isso não é um valor absoluto, pois se os diplomas “implicam potenciais aumentos de despesas ou reduções de receitas”, são de “montantes não definidos à partida, até porque largamente dependentes de circunstâncias que só a evolução da pandemia permite concretizar”. Ou seja, deixam “em aberto a incidência efetiva na execução do Orçamento do Estado”. E, sabendo das incertezas da pandemia, até o Governo tem agido “prudentemente”, “adiando a aprovação do Decreto de Execução Orçamental” e “flexibilizando” a sua gestão. Ou seja, o PR diz que o Governo tem, no OE 2021, margem nas dotações provisionais para gerir estes diplomas sem colocar em causa a gestão orçamental.

Em terceiro recado, o PR mostra que evita o recurso ao TC. Reconhecendo que possam permanecer dúvidas constitucionais, Marcelo entende que, “sobretudo durante a presente crise”, só deve mandar para fiscalização prévia do TC “no caso de não ser, de todo em todo, possível uma interpretação dos diplomas que seja conforme à Constituição”. Ou seja, só em caso, em que veja que os diplomas são declaradamente inconstitucionais. Até lembra que houve casos em que, face a lei com normas inconstitucionais, recorreu ao veto corretivo, convidando a AR a aproveitar a sua iniciativa, tornando-a conforme à Constituição.

A preocupação do PR parece a de não entregar aos juízes do Palácio Ratton a gestão de diplomas sensíveis da governação em momento de crise, como sucedeu no tempo da troika.

Em quarto lugar, deixa recado à oposição: que isto não se torne regra. Marcelo não abdica do seu poder de enviar diplomas para o TC em caso de convicção jurídica clara de se encontrar perante uma inconstitucionalidade e sem haver argumento para veto, mas sobretudo se a oposição fizer desta prática um caso reiterado.

Em quinto recado, reconhece que o Governo pode recorrer ao TC para fiscalização sucessiva, como já aconteceu, mas não o recomenda: dum lado, não há Governo com maioria parlamentar absoluta, sendo essencial o cumprimento da legislatura de 4 anos; do outro, os tempos eleitorais podem levar as oposições a afrontamentos em domínios económicos e sociais sensíveis. Assim, Marcelo prefere que o Governo não opte pelo confronto, mas pela procura de consenso com os partidos da oposição por estarmos em crise e por não haver maioria parlamentar.

E é para todos o sexto recado: “que não criem um clima de crise”, o que vem espelhado no segmento textual, que na justificação do PR não tem verbo no modo finito em oração principal:

Sempre com a preocupação de evitar agravar querelas políticas, em momentos e matérias sensíveis, o que é ainda mais evidente em situações extremas de confronto entre Governo minoritário e todos os demais partidos com assento parlamentar, situações essas que aconselham, de parte a parte, a concertação de posições e não a afrontamento, sobretudo numa crise tão grave, a exigir espírito de diálogo e não espírito de dissensão ou discórdia, e muito menos um clima de crise política, a todos os títulos indesejável”.

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Apreciação desta postura presidencial

A este respeito, é pertinente reter o que diz Vital Moreira no blogue “Causa nossa”, que sintetizo a seguir.

Independentemente da leitura política, a promulgação destas leis assenta em exercício de ficção constitucional. Não compete ao Presidente fazer “interpretação conforme à Constituição” e refazer o alcance normativo das leis submetidas para promulgação. Em caso de dúvida séria sobre a conformidade constitucional dum diploma (aqui é mais que dúvida), é o obrigação do PR suscitar a fiscalização preventiva, no cumprimento da missão de fazer cumprir a Constituição. Por outro lado, é absurdo dizer que o Governo pode executar tais leis até onde o OE permita, deixando o resto por executar, pela razão de que no Estado de Direito o princípio da legalidade obriga o Governo a cumprir a lei, mesmo inconstitucional, enquanto ela não for declarada como tal pelo órgão competente.

Temos aqui, segundo Vital Moreira, duas vítimas principais: a disciplina orçamental, que inclui a segurança de que o Governo, aprovado o OE, está livre de ver aprovada nova despesa pública, obrigando-o a aumentar a despesa global ou a cortar noutra despesa para realizar aquela – função da norma-travão, ora sacrificada pelo PR; e o governo minoritário, que vê inutilizada a única defesa constitucional contra o oportunismo político de oposições coligadas, o que se agrava se não há condições para governos de maioria, ficando a governação mais imprevisível.

A interpretação do PR das leis promulgadas no sentido de só obrigarem o Governo a executá-las até onde houver orçamento não salva a sua constitucionalidade. A observância da norma-travão tem a ver com a confiança, estabilidade e disciplina orçamental, que o PR deve ser o primeiro a salvaguardar. E, com a promulgação, o PR não poupou o Governo a pagar os custos políticos da falta dos apoios sociais em causa. Com efeito, o Governo tem o direito de gerir os recursos de que dispõe e de pagar os custos políticos por isso, sem precisar da tutela presidencial. É ele que é politicamente responsável pelos seus atos perante a AR, não o PR. 

Pode pensar-se que o estado de emergência não serve apenas para o PR suspender o exercício de alguns direitos fundamentais, mas também para suspender partes da Constituição.

É óbvio que o PR, tendo deixado passar o prazo para submeter os ditos diplomas ao TC, ou vetaria ou promulgaria. E, podendo o Governo impugnar essas leis no TC, tal não resolve o problema, pois, na fiscalização sucessiva o TC pode demorar meses a decidir e costuma salvaguardar os efeitos produzidos por tais normas, pelo que seria praticamente inútil, pois a despesa já teria sido feita, ao passo que a fiscalização preventiva tem um prazo curto para decisão e, em caso de pronúncia de inconstitucionalidade, as leis não são promulgadas sequer.

Assim, o PR não se limitou a suspender a norma-travão; suspendeu também os principais parâmetros constitucionais que balizam a sua ação, o que assinalará um momento o crítico no entendimento do mandato presidencial.

Na verdade, uma das tarefas constitucionais do PR, a cumprir através do poder de promulgação e veto, é a salvaguarda da separação de poderes, uma das traves-mestras do Estado de direito constitucional, desde a sua origem, ou seja, a separação de poderes entre a AR e o Governo, impedindo a primeira de invadir o território do segundo e vice-versa. No caso vertente, o PR desconsiderou uma das mais estritas normas constitucionais de separação de poderes, que é a reserva governamental de criação de novas despesas além do OE em vigor, como penhor da disciplina orçamental, pela qual o Governo é politicamente responsável. Ou seja, coonestou deliberadamente o confisco parlamentar dum poder exclusivo do Governo.

Sendo a presidência da República um cargo partidariamente independente, não integrado no poder executivo, é suposto o PR ser neutral na disputa entre Governo e oposição, sem prejuízo de fazer respeitar os direitos constitucionais de um e de outra. Contudo, no caso vertente, tomou partido pelo posicionamento da oposição contra o Governo, sacrificando a norma-travão, que exclui qualquer ponderação presidencial do mérito das soluções contidas nas leis sujeitas a promulgação. Com efeito, no nosso sistema político, o PR não governa nem é eleito para governar nem para interferir na esfera governativa, competência exclusiva do Governo, pela qual responde politicamente perante a AR e perante os eleitores nas eleições legislativas seguintes. Por isso, ressalvada a sua “magistratura de influência” sobre o Governo e demais decisores, o PR não pode fazer prevalecer as suas opiniões políticas nas decisões institucionais. E, na justificação de promulgação das ditas leis, o PR deixa entender que optou pela promulgação, ignorando a lei-travão, porque concorda com a solução política destas leis, sobrepondo abusivamente o seu juízo de mérito político ao do Governo.

Para quem não deseja crises políticas e afirma a solidariedade institucional e estratégica com o Governo, esta postura presidencial não é exemplar, antes lhe deslegitima a exigência de cumprimento orçamental, de manutenção de estabilidade ou de afugentamento de crises políticas. Até devia perceber que, em matéria de apoios económicos e financeiros, bem justificados, há sempre os que se aproveitam oportunisticamente dos benefícios. Ademais, quando toca a sacrifícios, eles têm de ser repartidos um pouco por todos. E a imprevisibilidade da evolução pandémica, mais do que abrir mais os cofres do OE, deveria aconselhar prudência.

Por fim, se há conflito entre Governo e AR em determinada matéria, tal como acontece noutras relações entre pares, seria prudente, em razão da dúvida formal, suscitar a intervenção do tribunal, neste caso o TC.

Só uma atitude de protagonismo pessoal, de contemporização com as oposições em detrimento da solidariedade estratégica com a governação ou de marcação de agenda política pode explicar esta postura presidencial, constituindo um prenúncio de como pode vir a ser o exercício do segundo mandato. A ver vamos.

2021.03.29 – Louro de Carvalho

Jesus sobe à cruz para descer ao nosso sofrimento

 

Disse-o o Papa na homilia da Missa deste Domingo de Ramos na Paixão do Senhor ao comentar as duas passagens do Evangelho de Marcos (Mc 11,1-10, na Bênção dos Ramos; e Mc 14,1-15,47, na Missa), e a conveniente passagem do Profeta Isaías (Is 50,4-7) e a da Carta aos Filipenses (Fl 2,6-11).

 

Da admiração à surpresa

Considerou o Sumo Pontífice que esta Semana Santa nos convoca a “olhar para a cruz a fim de recebermos a graça do assombro”, destacando, entre outros aspetos, a necessidade de se passar da admiração à surpresa. Com efeito, em cada ano, a liturgia desta dominga cria em nós a atitude de espanto e surpresa, passamos da alegria entusiasta do acolhimento a Jesus, que entra em Jerusalém, à tristeza de O ver condenado à morte e crucificado – uma atitude interior, que nos deve acompanhar ao longo destes dias, de abertura à surpresa.

Jesus surpreende mesmo. O povo acolhe-O solenemente, mas Ele entra em Jerusalém num jumentinho. O povo espera o poderoso libertador, mas Ele cumpre a Páscoa com o seu sacrifício. O povo espera celebrar a vitória sobre os romanos com a espada, mas Jesus vem celebrar a vitória de Deus com a cruz. No dizer de Francisco, a mudança de atitude do povo, que passa dos hossanas à exigência da crucifixão – os dois clamores – entende-se pelo facto de aquelas pessoas seguirem “mais uma imagem de Messias que o Messias”, pelo que “admiravam Jesus, mas não estavam prontas para se deixarem surpreender por Ele”. O Papa vincou a diferença entre surpresa e admiração: esta pode ser mundana, por buscar os próprios gostos e anseios, ao passo que a surpresa permanece aberta ao outro, à sua novidade. E acrescentou:

Também hoje há muitos que admiram Jesus: falou bem, amou e perdoou, o seu exemplo mudou a história... Admiram-No, mas a vida deles não muda. Porque não basta admirar Jesus; é preciso segui-Lo no seu caminho, deixar-se interpelar por Ele: passar da admiração à surpresa.”.

E, no âmbito da surpresa que Jesus nos oferece, emerge “o facto de Ele chegar à glória pelo caminho da humilhação”, ou seja, o facto de triunfar “acolhendo a dor e a morte, que nós, súcubos à admiração e ao sucesso, evitaríamos”. Ver o Omnipotente reduzido a nada, sentir a Palavra todo-poderosa que tudo sabe ensinar-nos silenciosamente a partir da cruz, cátedra aparentemente muda, contemplar o Rei dos reis cujo trono é o patíbulo da cruz, olhar o Deus do universo desnudado de tudo sozinho na cruz tornada tálamo nupcial da Nova Aliança, fitar o grande general messiânico cingido da coroa de espinhos em lugar da coroa de louros ou de ouro, mirar o novo e único Sumo Sacerdote esvaído de sangue no altar da cruz e a ser insultado e vexado – tudo isto é mais que surpreendente.

Não obstante, Francisco acentuou que Jesus sofreu toda esta humilhação para tocar até ao fundo a nossa realidade humana, atravessar toda a nossa existência, todo o nosso mal, aproximar-Se de nós, não nos deixando sozinhos no sofrimento e na morte, para nos recuperar, para nos salvar. Enfim, como disse, Jesus sobe à cruz para descer ao nosso sofrimento. E o Papa explicitou:

Prova os nossos piores estados de ânimo: o falimento, a rejeição geral, a traição do amigo e até o abandono de Deus. Experimenta na sua carne as nossas contradições mais dilacerantes e, assim, as redime e transforma. O seu amor aproxima-se das nossas fragilidades, chega até onde mais nos envergonhamos.”.

Assim, ficamos a saber que não estamos sozinhos, mas que “Deus está connosco em cada ferida, em cada susto” e, por isso, “nenhum mal, nenhum pecado tem a última palavra”, pois “Deus vence”, sendo que “a palma da vitória passa pelo madeiro da cruz”, pelo que “os ramos e a cruz estão juntos”. Longe de nós a tentação de, como comentava um padre passionista, aclamarmos Cristo como fez a multidão em Jerusalém, porque Eles os ensinou, os ouviu, curou e saciou, mas, ao ver que o poder Lhe estava a escapar, deixou-O entregue a Si próprio (já não lhes interessava) e, assolada pelos chefes, pediu reiteradamente a crucifixão.   

Devemos, antes, correspondendo à exortação de Francisco, pedir a graça do assombro, pois, “a vida cristã, sem surpresa, torna-se cinzenta” e, para testemunharmos a alegria de ter encontrado Jesus, temos de nos deixar “surpreender cada dia pelo seu amor espantoso, que nos perdoa e faz recomeçar”. Ora, “se a fé perde o assombro, torna-se surda: já não sente a maravilha da graça, deixa de sentir o gosto do Pão da vida e da Palavra, fica sem perceber a beleza dos irmãos e o dom da criação”, pelo que o Santo Padre exorta a que, “nesta Semana Santa, ergamos o olhar para a cruz a fim de recebermos a graça do assombro”. E, observando que o Espírito Santo nos dá a graça do assombro e nos convida a recomeçar do espanto e a olhar para o Crucificado, considerou que Jesus está nos últimos, nos rejeitados. A este respeito, explanou:

No Crucificado, vemos Deus humilhado, o Onipotente reduzido a um descartado. E, com a graça do assombro, compreendemos que, acolhendo quem é descartado, aproximando-nos de quem é humilhado pela vida, amamos Jesus, porque Ele está nos últimos, nos rejeitados.

E, frisando que o Evangelho, imediatamente após a morte de Jesus, nos mostra o ícone mais belo da surpresa, a cena do centurião, que, “ao vê-Lo expirar daquela maneira, disse que ‘verdadeiramente este homem era Filho de Deus’”, concluiu com uma exortação:

Hoje, Deus ainda surpreende a nossa mente e o nosso coração. Deixemos que nos impregne este assombro, olhemos para o Crucificado e digamos também nós: ‘Vós sois verdadeiramente Filho de Deus. Vós sois o meu Deus’.”

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Consumação do Batismo do Senhor na cruz

Dom António Couto, Bispo de Lamego, considera que a viagem que Jesus, “batizado com o Espírito Santo no Jordão, confirmado com o Espírito Santo no Tabor”, realizou na “sua missão filial batismal anunciando o Evangelho do Reino” e “fazendo as suas obras”, chegou ao fim, em Jerusalém, onde o seu Batismo é consumado (cf Lc 12,49‑50) na sua morte gloriosa, “única fonte do Espírito Santo para nós, porque única fonte da vida eterna verdadeiramente dada (cf At 2,32-33; Jo 19,30.34; 7,38-39). Mais ensina que, pela “missão filial batismal do Filho de Deus finalmente consumada”, fomos “batizados na sua Morte” (Rm 6,3) e fomos já, com Ele, “consepultados, corressuscitados, covivificados e cossentados na G1ória” (Ef 2,5‑6; Cl 2,12‑13: formas ver­bais usadas por Paulo em aoristo histórico). For­mamos, assim, “a Igreja que Jesus amou” (cf Ef 5,25) num amor que Paulo chama “o grande mistério” (cf Ef 5,32), “a esposa bela, a nova Jerusalém” (cf Ap 19,7‑9; 21,2.9-27) que “diz, com o Espírito, ao Senhor Jesus: Vem!” (Ap 22,17.20).

Dá o tom deste domingo a passagem de Marcos 11,1-10, que mostra o Rei messiânico a tomar posse da “Cidade do Grande Rei” (Sl 45,5.12; 47,2-3; Tb 13,11; Mt 5,35), a esposa que nascerá do seu sangue, simultaneamente cúmplice e beneficiária da morte do Esposo e que desce ao encontro do Esposo “em vestido de noiva, não de viúva” (cf Ap 21,2). O Messias toma posse da Filha de Sião e vem montado sobre o jumento da paz, não sobre cavalos de guerra, cumprindo Zacarias 9,9, que escreveu esta página de um Rei pobre, manso e humilde, em contraponto com o imponente de Alexandre Magno. Estendem-se capas e ramos de árvores no caminho tal como se fazia quando era ungido e aclamado o rei, como foi o caso de Jeú (cf 2Rs 9,13). A multidão canta “Hossana” (“Salva, por favor!”) (Sl 118,5), saudando “Aquele que Vem” (título divino) (Sl 118,26), com o Reino de David. Jesus não entra em Jerusalém como peregrino, mestre ou taumaturgo, mas como o Rei futuro prometido, pobre e humilde, anunciado em Zacarias. Por isso, nesta etapa do caminho, desde Betfagé e Betânia, perto do Monte das Oliveiras, até Jerusalém, não vai a pé, como andou nos caminhos das cidades e aldeias da Palestina, ou de barco, quando atravessava o mar da Galileia. Faz questão de percorrer este último troço da viagem montado num jumento, ainda não montado por ninguém (Mc 11,2), pois “o Rei é o primeiro em tudo”. E o prelado académico frisa que a temática do jumento montado não passa despercebida. Assim, “dos dez versículos desta passagem (Mc 11,1-10): sete ocupam-se com a minuciosa procura do jumento e com o modo simples e novo, sem arreios, como Jesus o monta”.

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A morte de Jesus resulta da sua coerência de vida e missão

A morte de Jesus tem de ser entendida no contexto da sua vida. Cedo, percebeu que o Pai O chamava a anunciar o mundo novo, de justiça, paz, liberdade e amor para todos. A concretizar este desígnio, passou pelas rotas da Palestina “fazendo o bem” e a anunciar a proximidade deste mundo novo; ensinou que Deus é amor e não exclui ninguém; ensinou que leprosos, paralíticos e cegos não podem ser marginalizados, pois não são amaldiçoados por Deus; ensinou que são os pobres e os excluídos os preferidos de Deus e os que têm um coração mais disponível para acolher o Reino; e avisou os ricos (poderosos, instalados) de que egoísmo, orgulho, autossuficiência, fechamento só levam à morte. Este projeto libertador chocou com a atmosfera de egoísmo, má vontade e opressão que dominava o mundo. As autoridades políticas e religiosas, incomodadas com a denúncia, não se dispuseram a renunciar aos mecanismos que lhes asseguravam poder, influência, domínio, privilégios; não se dispuseram a arriscar, a desinstalar-se e a aceitar a conversão. Por isso, prenderam-No, julgaram-No, condenaram-No e pregaram-No na cruz.

A morte de Jesus, consequência do anúncio do Reino, resultou das tensões e resistências à proposta do Reino e culminou a sua vida como afirmação última, porém mais radical e mais verdadeira (porque marcada com sangue), do que Jesus pregou com palavras e gestos: o amor, o dom total, o serviço. Na cruz, aparece o Homem Novo, o protótipo do homem que ama radicalmente e que faz da sua vida um dom para todos. E, porque ama, assume como missão a luta contra o pecado – contra todas as causas objetivas que geram medo, injustiça, sofrimento, exploração e morte. Assim, a cruz protagoniza o dinamismo de um mundo novo, o dinamismo do Reino.

O relato da Paixão segundo Marcos não difere significativamente dos relatos de Mateus e de Lucas. Porém, há coordenadas que Marcos sublinha. Assim, neste processo, Jesus manifesta grande serenidade e dignidade e total conformação com o que se passa. Não é passividade ou inconsciência, mas serena aceitação do caminho que Ele sabe que passa pela cruz. Marcos sugere que Jesus está plenamente conformado com a vontade do Pai e que a sua vontade é cumprir fiel e integralmente o plano de Deus, sem objeção ou resistência. Esta dignidade face ao processo que as autoridades religiosas e políticas lhe movem é atestada em várias cenas:

Segundo Mateus e Lucas, Jesus interpela diretamente Judas, quando este O entrega no monte das Oliveiras (cf Mt 26,50; Lc 22,48); em Marcos, Jesus mantém silêncio e dignidade face à traição do discípulo (cf Mc 14,45-46), sem observações ou recriminações. Mateus põe Jesus a desautorizar Pedro quando fere o servo do sumo sacerdote cortando-lhe uma orelha (cf Mt 26,52) e, segundo Lucas, Jesus pede aos discípulos que deixem agir os sequestradores (cf Lc 22,51); Marcos, porém, não apresenta, neste episódio, qualquer reação de Jesus (cf Mc 14,47), apenas referindo que isto sucede para que se cumpram as Escrituras (cf Mc 14,49), e Jesus, interrogado pelo sumo sacerdote no tribunal judaico, acerca das acusações feitas, manteve um silêncio solene e digno (cf Mc 14,61a), recusando defender-Se das acusações dos detratores.

Uma das teses fundamentais de Marcos é que Jesus é o Filho de Deus (cf Mc 1,1). Esta ideia está bem presente e sublinhada no relato da Paixão. Pouco antes de ser preso, Jesus dirige-Se a Deus (cf Mc 14,36) e chamando-Lhe “Abba” (“paizinho”, “papá”), termo não usado nas orações hebraicas como invocação de Deus, mas sim na intimidade familiar exprimindo proximidade entre filho e pai. O facto de Jesus usar esta palavra revela a comunhão entre Ele e o Pai e a relação marcada pela simplicidade, intimidade e total confiança. Não obstante o silêncio de Jesus durante o interrogatório no palácio do sumo sacerdote, Ele não hesita em deixar clara a sua divindade. Quando o sumo sacerdote Lhe pergunta diretamente se Ele é “o Messias, o Filho de Deus bendito” (Mc 14,61b), responde, sem subterfúgios: “Eu sou. E vereis o Filho do Homem sentado à direita do Todo-poderoso e vir sobre as nuvens do céu(Mc 14,62). A expressão “eu sou” (“egô eimi”) leva-nos ao nome de Deus no AT (“eu sou aquele que sou” – Ex 3,14), que é a afirmação inequívoca da dignidade divina de Jesus. A menção do “sentar-se à direita do Todo-poderoso” e “vir sobre as nuvens” sublinha a divindade de Jesus, que há de surgir no lugar de Deus como juiz soberano de toda a humanidade. E o sumo sacerdote percebe o alcance da afirmação (Ele está a arrogar-Se a condição de Filho de Deus e a prerrogativa divina por excelência – a de juiz universal), pelo que manifesta a indignação rasgando as vestes e condenando-O como blasfemo. Em Marcos, o centurião romano diz, junto da cruz de Jesus: “na verdade, este homem era Filho de Deus(Mc 15,39), o que deve ser visto como convite à “profissão de fé” da parte dos crentes. Na verdade, Jesus é o Filho de Deus que veio ao encontro de todos os homens para lhes oferecer a salvação.

Apesar de Filho de Deus, Jesus é homem que partilha a debilidade e a fragilidade da natureza humana: Pouco antes de ser preso, sentiu “pavor” e “angústia” (cf Mc 14,33), como sucede com qualquer homem ante a morte violenta; Mateus é mais moderado ao falar da tristeza e angústia de Jesus (cf Mt 26,37) e Lucas evita referir a estes sentimentos que, vincando a dimensão humana de Jesus, podiam lançar dúvidas sobre a sua divindade. No instante da morte, Jesus reza: “meu Deus, meu Deus, para que me abandonaste(Mc 15,34). É a oração do homem que experimenta a solidão, abandono e sensação de falhanço, custando-lhe a compreender a ausência e indiferença de Deus. Na verdade, o Jesus de Marcos é o homem que Se solidariza com os homens, os acompanha no sofrimento e experimenta os seus dramas, fragilidades e debilidades.

Em todas as narrativas da Paixão, Jesus enfrenta sozinho (abandonado pelas multidões e pelos próprios discípulos) o seu destino de morte; Marcos, porém, vinca a solidão de Jesus. Em Lucas, um anjo conforta Jesus, no jardim das Oliveiras (cf Lc 22,43), o que Marcos omite. Mateus conta que a mulher de Pilatos intercedeu por Jesus, pedindo ao marido que não se intrometesse “no caso desse justo” (cf Mt 27,19), enquanto Marcos não faz qualquer interferência deste tipo. João, além de Pedro, refere a presença de um “outro discípulo conhecido do sumo sacerdote” no palácio de Anás (Jo 18,15); Marcos, para lá de Pedro (que negou Jesus três vezes), nunca refere a presença de qualquer outro discípulo. Lucas nota a presença de mulheres ao longo do caminho do calvário, que “batiam no peito e se lamentavam por Ele” (Lc 23,27-31); Marcos não fala de alguém que se lamentasse no caminho de Jesus em direção ao lugar da execução (só após a morte de Jesus, observa que algumas mulheres que O seguiam e serviam quando estava na Galileia estavam ali a “contemplar de longe” – Mc 15,40-41).Abandonado pelos discípulos, escarnecido pela multidão, condenado pelos líderes, torturado pelos soldados, Jesus percorre na solidão, no abandono, na indiferença de todos, o seu caminho de morte. O grito de Jesus na cruz (“meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste” – Mc 15,34), início do Salmo 22 (cf Sl 22,2) é a expressão dramática da solidão que Jesus sente à sua volta. Só Marcos relata o episódio do jovem que seguia Jesus envolto apenas num lençol e que fugiu nu quando os guardas o tentaram agarrar (cf Mc 14,51-52). Para alguns comentadores, o jovem será o próprio evangelista, mas é provável que Marcos tenha introduzido o episódio para marcar plasticamente a atitude dos discípulos que, desiludidos e amedrontados ante o falhanço do projeto que os mobilizou, largaram tudo, quando viram o líder preso, e fugiram.

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O relato da Paixão de Marcos 14,1-15,47 soma 119 dos 677 versículos de todo o Evangelho de Marcos e marca o ritmo da “Semana Santa” ou “Semana Maior”, “Semana Grande” (para os orientais) ou “Semana Autêntica” (para o antigo rito de Milão). São, no dizer do Bispo de Lamego, momentos decisivos em que a Esposa, tornada bela por graça, segue o Esposo passo a passo: a unção para a sepultura em Betânia (Mc 14,3-9), a Ceia Primeira (e não última) (Mc 14,12-31), a oração em Getsémani (Mc 14,32-42), a prisão e o abandono por todos (Mc 14,43-52), os processos e a condenação (Jesus afirma‑se “o Bendito”, “o Filho de Deus”, “o Messias”, “o Rei”) (Mc 14,53 – 15,14), a en­trega à morte por Pilatos (Mc 15,15), correspondendo à entrega por Deus (1Cor 11,23), a coroa de espinhos, a cruz, as três tentações por parte dos que passavam, dos sacerdotes, dos demais cruci­ficados: “salva‑te a ti mesmo”, “desce da cruz” (Mc 15,29‑32), a oração de todo o Salmo 22, a começar em “Meu Deus, meu Deus, para que me abandonaste?”, e a terminar “esta é a obra do Senhor”, a ago­nia e a Morte precedida do grande grito (Mc 15,33-34.37), que indica a Vitória de Deus, e a sepultura. É “a proclamação da máxima Obra de Deus no mundo”, a que deve seguir‑se “a conversão do coração” e, sobretudo, “o louvor no coração”.

Na verdade, pronunciar as primeiras palavras do Salmo implica, segundo a praxe judaica, a recitação do Salmo inteiro. E o Salmo 22 tem uma primeira parte de fortíssima lamentação (v. 2-22), passa para uma segunda parte que exprime a consolação por ver Deus ao nosso lado, tão próximo de nós (v. 23-27) e terminando em verdadeira exultação (v. 28-32). E Dom António Couto, para quem este salmo é “oração que nasce na Paixão e termina na Páscoa”, refere que “Jacques Bossuet (1627-1704) declarava bem-aventurados aqueles que, recitando este Salmo, se encontram com Jesus, tão santamente tristes e tão divinamente felizes”.

Anota o Bispo de Lamego que, na cronologia dos Sinóticos, a quinta-feira desta semana é o dia da Preparação da Páscoa, comendo-se a Ceia Pascal após o pôr-do-sol (para os hebreus é sexta-feira, pois o dia começa ao pôr do sol). Esta cronologia vê na Ceia de Jesus com os discípulos uma Ceia Pascal. E, segundo ela, Jesus é preso, julgado, condenado, crucificado, morto e sepultado em sexta-feira, dia da Páscoa dos judeus, o que seria estranho. João apresenta outra cronologia, segundo a qual Jesus terá comido uma Ceia, a sua Ceia Nova em quinta-feira, mas não a Ceia ritual da Páscoa dos judeus, e foi preso, julgado, condenado, crucificado, morto e sepultado, em sexta-feira, dia da Preparação, antes da Ceia ritual da Páscoa dos judeus, que para João é no sábado. No seu Livro sobre Jesus de Nazaré, Bento XVI defende, como outros estudiosos, a cronologia joanina. Ora, como as Igrejas do Ocidente seguem a cronologia dos Sinóticos, a nossa Eucaristia é com pão ázimo, segundo o ritual da ceia pascal dos judeus; e as Igrejas do Oriente, que seguem a cronologia joanina, fazem a Eucaristia com pão comum, por não derivar do ritual da Páscoa dos judeus.

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Outros lugares textuais que focam a gloriosa morte de Jesus

Do AT o Domingo de Ramos colhe o terceiro canto do Servo de Javé (Is 50,4-7). Ergue-se esta figura missionária de servo totalmente nas mãos de Deus desde a sua predestinação desde o seio materno (Is 49,1.5) até à exaltação e glorificação (Is 52,13), porque ousou passar pela entrega à morte (Is 53,12), de tal modo que Deus o pode chamar “meu Servo”. Neste domingo, o Servo é o discípulo a quem Deus abre os ouvidos até ao coração para ouvir bem a reconfortante Palavra de Deus e poder levar esta palavra de consolo aos necessitados dela.

Não é designado como profeta, mas é profeta e mais que profeta, pois a sua vocação está umbilicalmente associada à Palavra e à missão; a sua vida passa pelo sofrimento e dor; e o seu percurso é marcado pela total confiança em Deus. Por isso, será exaltado e glorificado diante de todos os povos, ou seja, a sua missão tem uma dimensão universal.   

“Tornando o rosto duro como pedra” (Is 50,7), apresenta-se como um Servo, não insensível e indiferente, mas decidido a levar até ao fim a missão que lhe é confiada. Tal será dito de Jesus em Lucas 9,51, quando toma a decisão inabalável de se dirigir para Jerusalém.

Em paralelo com o Servo, cantado por Isaías, vem Jesus apresentado por Paulo aos Filipenses (Fl 2,6-11), mas agora com um rosto, um nome: Jesus recebeu, na sua humanidade, o nome divino, incomparável (Fl 2,9). Agora, todas as criaturas adoram o nome Jesus (Fl 2,10) e “toda a língua” (todo o ser humano racional) professa que “Senhor é Jesus Cristo”. Notar a ordem dos três termos, errada nas versões modernas: Senhor, isto é, Deus eterno, é o Homem-Jesus Cristo. O acento cai, pois, sobre Senhor. O fim em vista: a Glória do Pai com o Espírito (Fl 2,11). Neste aspeto a tradução de Frederico Lourenço é concorde com a de António Couto. Assim, “Kýrios Iêsoûs Khristòs eis dóxan Theoû patrós” é traduzido por “Senhor <é> Jesus Cristo para glória de Deus Pai”.

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Concluindo

A Semana Santa convida-nos a aceitar a surpresa de Deus e a exultar com ela. Com efeito, o Senhor que, subindo à Cruz, desce ao nosso sofrimento, é glorificado pelo Pai e é constituído o Senhor para glória de Deus Pai, glória que é juntar-nos a todos como filhos no Filho em comunhão universal e em intimidade com o Deus de misericórdia cumprindo toda a justiça do Reino, já longe do sofrimento e da dor. Isto implica a abjuração de toda a traição, de toda a negação e de todo o abandono; e postula a verdadeira e total conversão ao Evangelho e à conformação da vida com esta Boa Nova no dinamismo dum Igreja que está em saída e em testemunho.    

2021.03.28 – Louro de Carvalho