Vários órgãos
de comunicação social anotam que o Governo está a pressionar o Presidente da
República para que trave o decreto do Parlamento que aumenta o valor do apoio
que está a ser dado aos trabalhadores independentes, beneficiando pelo menos 120
mil pessoas, alegando que viola a chamada lei-travão (ou melhor,
norma-travão), sendo por
isso inconstitucional.
Está em
causa o diploma que altera por apreciação parlamentar o Decreto-Lei n.º
8-B/2021, de 22 de janeiro, aumentando o valor do apoio à redução de atividade
na medida em que passa a calculá-lo com base na quebra de rendimentos registada
face a 2019, antes da pandemia, e não em 2020, como determina o predito
decreto-lei.
Na verdade,
o susodito decreto-lei, no seu art.º 3.º (apoio
excecional à família),
estabelece:
“1 - Nas situações referidas na alínea a) do
n.º 1 do artigo anterior (faltas por acompanhamento de filho menor de 12
anos ou portador de deficiência ou doença crónica), o trabalhador por conta de outrem, o trabalhador independente e o
trabalhador do regime de proteção social convergente têm direito,
respetivamente, aos apoios excecionais à família previstos nos artigos 23.º a
25.º do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, na sua redação atual,
com as necessárias adaptações, sendo considerado para efeitos de cálculo:
a) Para os trabalhadores por conta de outrem, a
remuneração base declarada em dezembro de 2020;
b) Para os trabalhadores do serviço doméstico, a
remuneração registada no mês de dezembro de 2020;
c) Para os trabalhadores independentes, a base de
incidência contributiva mensualizada referente ao quarto trimestre de 2020.
“2 - Os referidos apoios não são cumuláveis
com outros apoios excecionais ou extraordinários criados para resposta à
pandemia da doença COVID-19.”.
Entretanto, as
oposições juntaram-se na Assembleia da República (AR) para decretarem o aumento
dos apoios sociais para trabalhadores independentes e sócios-gerentes.
O diploma em
causa, que aguarda promulgação ou veto em Belém, foi aprovado em votação final
global no passado dia 3 de março, com a oposição do PS, mas com os votos a
favor de PSD, BE, PCP, CDS-PP, PAN, PEV, Chega, Iniciativa Liberal (IL), e das deputadas não inscritas Joacine Katar Moreira
e Cristina Rodrigues. E, segundo o portal da AR, este decreto seguiu para o
Palácio de Belém, para promulgação, no dia 18 de março, há 8 dias.
Com esta
medida, poderiam beneficiar os mais de 120 mil independentes que já pediram o
apoio à redução de atividade, aos quais se somará um novo grupo de pessoas dos
setores do turismo, da cultura, dos eventos e dos espetáculos, no âmbito das
alterações que entraram em vigor no dia 25, por força do Decreto-Lei n.º 23-A/2021, de 24 de março, que estabelece
medidas de apoio aos trabalhadores e empresas, no âmbito da pandemia da doença
COVID-19, e da Resolução do Conselho de Ministros n.º 33-A/2021,
de 11
de março de 2021, publicada a 24 de março, que estabelece medidas de
apoio no âmbito da pandemia da doença COVID-19.
O novo
diploma parlamentar daria apoio de mais 300 euros por mês aos independentes.
De acordo
com o Expresso, o Presidente da
República ainda não decidiu se envia o diploma para o Tribunal Constitucional (TC), cedendo à pressão do Governo, ou se, em vez disso,
pressiona o Governo a utilizar outras verbas para reforçar os apoios, pois, como
refere uma fonte de Belém, “o Governo não
gasta sequer o que está no Orçamento”.
No passado
dia 24, a associação “Precários Inflexíveis”
lamentou que o diploma aprovado há três semanas ainda não tenha sido publicado.
O decreto, que prevê a sua entrada em vigor no dia seguinte ao da publicação,
seguiu do Parlamento para Belém na semana passada.
Dizem alguns
observadores que os deputados não podem, segundo a Constituição, aprovar
medidas que aumentem a despesa fora da lei do Orçamento do Estado (OE). Mas não é bem assim. O que estabelece a Constituição
é que os deputados não podem tomar a iniciativa de produzir lei que implique aumento
da despesa ou diminuição da receita no decurso do ano económico em causa. Diz, a
este respeito, o art.º 167,º da CRP:
“2. Os Deputados, os grupos
parlamentares, as Assembleias Legislativas das regiões autónomas e os grupos de
cidadãos eleitores não podem apresentar projetos de lei, propostas de lei ou
propostas de alteração que envolvam, no ano económico em curso, aumento das
despesas ou diminuição das receitas do Estado previstas no Orçamento.
“3. Os Deputados, os grupos
parlamentares e os grupos de cidadãos eleitores não podem apresentar projetos
de referendo que envolvam, no ano económico em curso, aumento das despesas ou diminuição
das receitas do Estado previstas no Orçamento.”.
Quer isto dizer
que os deputados podem aprovar tal aumento ou tal diminuição se o Governo lhes
apresentar proposta de lei para o efeito. Não se percebe como é que Belém pode
aferir, neste momento, que o Governo gastará ou não o previsto orçamentalmente.
Há quem pense que tal aumento de despesas ou diminuição de receitas se refere
ao respetivo capítulo orçamental, o que não parece estar em consonância com o
texto constitucional.
A questão da
norma-travão coloca-se desde o início do processo, tanto neste caso como no
diploma que alarga o apoio a todos os pais que, tendo filhos com menos de
12 anos, tenham de faltar por via do encerramento das escolas, embora com funções
compatíveis com teletrabalho.
No caso do
apoio aos pais acabou, no entanto, por ser o Governo, pressionado, a avançar, embora com uma medida menos abrangente: para a
atribuição do apoio a pais em teletrabalho foram consideradas essencialmente as
crianças que frequentam a escola até ao 4.º ano. O diploma do Governo começou a
produzir efeitos no final de fevereiro. As escolas do 1.º Ciclo do ensino
básico foram reabertas para ensino presencial a 15 de março.
O Governo quer que o Presidente trave a lei aduzindo que
os deputados não podem forçar gastos adicionais. Marcelo ainda não decidiu. BE
e movimento de precários pressionam no sentido contrário.
Mas há mais
duas leis em disputa: a que aumentaria apoios aos pais em teletrabalho, que já
dificilmente terá efeitos; e a que aumenta direitos e salário a trabalhadores
da saúde.
Há mais de três semanas, as oposições, à esquerda e à direita, juntaram-se
para aprovar na AR três diplomas com voto contra do PS. Dois desses projetos de
lei aumentam o valor de apoios sociais de emergência, um outro pode fazer aumentar
a despesa com profissionais de saúde durante largos meses, até que o país
recupere toda a atividade, consultas e cirurgias, entretanto suspensas. O
Governo pressiona o Presidente a travar tais diplomas, alegando que aumentam a
despesa pública para lá do previsto no OE, violando a norma-travão e, como tal,
defende que são inconstitucionais. Marcelo
tem os diplomas na mão há quase duas semanas, não tendo ainda decidido se os envia
para o TC, cedendo à pressão do Governo ou se os promulga, deixando pressão
sobre o Ministro das Finanças para fazer a gestão desta despesa
extra usando as verbas de outras rubricas do
OE 21.
Em Belém, comenta-se que, por
um lado, Marcelo reconhece que o Governo tem razão no parecer que enviou a Belém
aduzindo que a oposição se arriscou a ir além dos seus poderes, usurpando
os do Governo, aprovando leis que aumentam a despesa sem esta estar prevista no
OE. Acresce que uma mudança destas da parte da AR só se aplica, por norma, no OE
seguinte e aqui foi aprovada para mudar um orçamento em execução, mexendo em
rubricas específicas. Também está em causa uma questão para futuro: se passarem
em Belém, este tipo de coligações para mudar o OE em execução, abre-se um
precedente e pode tornar-se inviável a execução dum orçamento com sucessivas
coligações negativas o que pode violar a norma-travão, prevista na
Constituição, que atribui o poder de iniciativa na matéria apenas ao Governo.
Parece que Belém admite a geribilidade da inclusão destas
mudanças noutra rubrica do mesmo Ministério ou na gestão das “dotações
orçamentais”, cuja margem João Leão alargou este ano em termos
significativos, pois o OE 21 inclui uma rubrica que dá ao Ministro das Finanças
a possibilidade de gerir despesas imprevistas relacionadas com a pandemia, como
é o caso desta.
A pressão sobre o Presidente e constitucionalista é grande. Tem na mesa uma
questão legal: se aceita a sobreposição da AR ao Executivo nestes assuntos, está
na raia da constitucionalidade, como terá assumido em conversa com os partidos.
Porém, emerge a agenda dos apoios sociais, pois o político dito da direita
social tem insistido na necessidade de se darem mais apoios por causa do
confinamento do início do ano e observou, em conversas com os partidos, que
estes têm demorado da parte do Governo, sendo o mais sensível destes apoios o que muda o montante do apoio
extraordinário aos trabalhadores independentes e sócios-gerentes. Os
partidos uniram-se e aprovaram uma proposta do Bloco de Esquerda que visava
mudar as regras de atribuição do apoio e com isso impedir que o valor a dar a cada trabalhador este
ano seja mais baixo que o atribuído no ano passado. Ou seja,
aquando do novo confinamento, o Governo recuperou os apoios à redução da
atividade económica que atribuiu a trabalhadores independentes e
sócios-gerentes, mas manteve a regra de cálculo, definindo que o montante a
atribuir se baseia nos rendimentos obtidos nos 12 meses anteriores.
Ora, sucede que, em 2020 (ao contrário de 2019), estes trabalhadores já tiveram uma redução do trabalho, pelo que o
montante este ano se tornou subitamente mais baixo. Por isso, PCP, BE, PSD e
CDS juntaram-se para mudar a lei e manter como base de rendimentos o ano de
2019, ainda antes do início da pandemia, igualando este apoio ao que foi
atribuído no ano passado.
Em janeiro houve 132 mil
beneficiários e mais de 126 mil em fevereiro, mas, como alegam os partidos, de
valor de prestação inferior ao que tinha sido dado em 2020. E o Ministério do Trabalho, Solidariedade e
Segurança Social continua sem mostrar os dados desagregados dos
vários apoios, informação que permitiria perceber qual a prestação média que
estas pessoas estão a receber. Todavia, no momento
da aprovação das medidas na AR, o Governo muniu o PS de números, para que o
argumento dos socialistas no plenário fizesse a explodir o custo da medida. Os
valores rondam os 38 milhões de euros por mês, podendo cada beneficiário receber,
se os diplomas forem avante, cerca de 300 euros em média a mais por mês.
A demora de Marcelo na promulgação foi notada pelo Bloco de Esquerda, que
levou o tema à reunião virtual com o Presidente no dia 24. Catarina Martins
apelou a Marcelo a que promulgue os diplomas para retirar da incerteza milhares
de trabalhadores que estão sem saber se poderão contar com um apoio mais
elevado. Mas, como ficou dito, tal demora também foi notada pelo movimento “Precários Inflexíveis”, que exige a rápida promulgação do diploma,
clamando que a lei ora aprovada é de elementar justiça e essencial para as
pessoas abrangidas, e classificou como “não
admissível” que, face ao contexto de emergência social, o Presidente da
República, “demore quase um mês a avaliar e promulgar” estas medidas. Assim,
cada dia de atraso é mais um dia em que recebem menos, já que a norma, não terá
efeitos retroativos.
Se a alteração do apoio aos trabalhadores é a mais custosa orçamentalmente e
a mais sensível do ângulo social, há
mais duas alterações que o Governo diz serem inconstitucionais. Uma,
também aprovada pelos partidos em apreciação parlamentar no início deste mês, tem
a ver com a gestão dos profissionais de saúde.
O Governo aprovou por decreto a possibilidade de contratação de médicos e
enfermeiros aposentados (Decreto-Lei
n.º 10-A/2020), para fazer
face à pandemia e também a possibilidade de enfermeiros e assistentes
operacionais poderem ter horário acrescido até 42 horas semanais, por mútuo
acordo, remunerado, durante o combate à pandemia. Os partidos foram mais além e querem que estas
regras se apliquem não só ao período de combate da pandemia, mas também até que
se recupere toda a atividade assistencial suspensa, nos cuidados de saúde
primários e nos cuidados hospitalares, o que pode levar a aumento da despesa
com pessoal de saúde durante largos meses. Além disso, os deputados alargaram os profissionais que podem ter
horário acrescido, passando a incluir os técnicos superiores nas áreas
de diagnóstico e terapêutica, os técnicos superiores de saúde e os assistentes
técnicos.
Outra alteração aprovada pela oposição tem impacto já limitado: é a lei que alarga, para lá do que o
Governo aprovou, os apoios às famílias no âmbito do encerramento das escolas
por causa da covid-19. O impacto desta mudança é mais circunscrito, porque
as escolas já começaram a retomar atividade, pelo que doravante o apoio dificilmente
será pedido em grande volume. Neste ponto, o
facto de o Presidente ter demorado a pronunciar-se pode ter um efeito imediato:
como a regra só se aplica a partir do momento em que for promulgada, sem
efeitos retroativos, e com as escolas a reabrirem, os pais já não poderão ter
acesso ao apoio alargado.
***
O Primeiro-Ministro não tem dúvidas de que a lei sobre os apoios sociais, aprovada
pela AR, viola a Constituição e só aguarda pela decisão do Presidente. Porém, declarou
reiteradamente que “não há nenhum
conflito entre o Governo e o Presidente da República”, pois continuará
durante a pandemia e, como espera o Governo, além da pandemia, “a total
solidariedade entre todos”. António Costa não está em conflito com Marcelo e,
nas suas palavras, não pressiona, mas espera que, na “sua legitimidade” e no
uso “dos seus poderes”, o Presidente
faça o que o Governo espera que faça: que vete os diplomas que aumentam alguns
apoios sociais, aprovados pela oposição à revelia do executivo. E disse numa
visita a uma escola no Monte da Caparica:
“O que o Governo fez foi, lealmente e dentro do espírito de
cooperação institucional que tem com o Presidente da República, informar que o
diploma que tem para promulgação viola a lei-travão porque excede o teto de
despesa que tem fixado. Não é uma pressão, é uma informação que compete ao
Governo dar.”.
Segundo António Costa, “o Presidente da República exercerá os poderes nos
termos que bem entender, a legitimidade é dele, os poderes são dele”. Porém, a
norma-travão tem de ser respeitada, pois, como disse, “se nós conseguimos fazer
este esforço de simultaneamente estarmos a manter o investimento público, estarmos
a reforçar o apoio ao empresa e às famílias e às empresas, temos de fazer isso
gerindo o orçamento”.
O reforço da mensagem do Primeiro-Ministro da necessidade de manter e
aumentar o investimento público fez caminho ao longo deste dia 26 de março a
inaugurar e a visitar escolas, para defender que, a par da “recuperação
sanitária, precisamos de recuperar a economia e os empregos” porque só assim
podemos “ter finanças públicas sustentáveis sem
medidas de austeridade”.
***
Vejamos como correrão as coisas doravante entre os palácios de São Bento, Belém
e Ratton.
2021.03.26 –
Louro de Carvalho
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