segunda-feira, 29 de março de 2021

Jesus sobe à cruz para descer ao nosso sofrimento

 

Disse-o o Papa na homilia da Missa deste Domingo de Ramos na Paixão do Senhor ao comentar as duas passagens do Evangelho de Marcos (Mc 11,1-10, na Bênção dos Ramos; e Mc 14,1-15,47, na Missa), e a conveniente passagem do Profeta Isaías (Is 50,4-7) e a da Carta aos Filipenses (Fl 2,6-11).

 

Da admiração à surpresa

Considerou o Sumo Pontífice que esta Semana Santa nos convoca a “olhar para a cruz a fim de recebermos a graça do assombro”, destacando, entre outros aspetos, a necessidade de se passar da admiração à surpresa. Com efeito, em cada ano, a liturgia desta dominga cria em nós a atitude de espanto e surpresa, passamos da alegria entusiasta do acolhimento a Jesus, que entra em Jerusalém, à tristeza de O ver condenado à morte e crucificado – uma atitude interior, que nos deve acompanhar ao longo destes dias, de abertura à surpresa.

Jesus surpreende mesmo. O povo acolhe-O solenemente, mas Ele entra em Jerusalém num jumentinho. O povo espera o poderoso libertador, mas Ele cumpre a Páscoa com o seu sacrifício. O povo espera celebrar a vitória sobre os romanos com a espada, mas Jesus vem celebrar a vitória de Deus com a cruz. No dizer de Francisco, a mudança de atitude do povo, que passa dos hossanas à exigência da crucifixão – os dois clamores – entende-se pelo facto de aquelas pessoas seguirem “mais uma imagem de Messias que o Messias”, pelo que “admiravam Jesus, mas não estavam prontas para se deixarem surpreender por Ele”. O Papa vincou a diferença entre surpresa e admiração: esta pode ser mundana, por buscar os próprios gostos e anseios, ao passo que a surpresa permanece aberta ao outro, à sua novidade. E acrescentou:

Também hoje há muitos que admiram Jesus: falou bem, amou e perdoou, o seu exemplo mudou a história... Admiram-No, mas a vida deles não muda. Porque não basta admirar Jesus; é preciso segui-Lo no seu caminho, deixar-se interpelar por Ele: passar da admiração à surpresa.”.

E, no âmbito da surpresa que Jesus nos oferece, emerge “o facto de Ele chegar à glória pelo caminho da humilhação”, ou seja, o facto de triunfar “acolhendo a dor e a morte, que nós, súcubos à admiração e ao sucesso, evitaríamos”. Ver o Omnipotente reduzido a nada, sentir a Palavra todo-poderosa que tudo sabe ensinar-nos silenciosamente a partir da cruz, cátedra aparentemente muda, contemplar o Rei dos reis cujo trono é o patíbulo da cruz, olhar o Deus do universo desnudado de tudo sozinho na cruz tornada tálamo nupcial da Nova Aliança, fitar o grande general messiânico cingido da coroa de espinhos em lugar da coroa de louros ou de ouro, mirar o novo e único Sumo Sacerdote esvaído de sangue no altar da cruz e a ser insultado e vexado – tudo isto é mais que surpreendente.

Não obstante, Francisco acentuou que Jesus sofreu toda esta humilhação para tocar até ao fundo a nossa realidade humana, atravessar toda a nossa existência, todo o nosso mal, aproximar-Se de nós, não nos deixando sozinhos no sofrimento e na morte, para nos recuperar, para nos salvar. Enfim, como disse, Jesus sobe à cruz para descer ao nosso sofrimento. E o Papa explicitou:

Prova os nossos piores estados de ânimo: o falimento, a rejeição geral, a traição do amigo e até o abandono de Deus. Experimenta na sua carne as nossas contradições mais dilacerantes e, assim, as redime e transforma. O seu amor aproxima-se das nossas fragilidades, chega até onde mais nos envergonhamos.”.

Assim, ficamos a saber que não estamos sozinhos, mas que “Deus está connosco em cada ferida, em cada susto” e, por isso, “nenhum mal, nenhum pecado tem a última palavra”, pois “Deus vence”, sendo que “a palma da vitória passa pelo madeiro da cruz”, pelo que “os ramos e a cruz estão juntos”. Longe de nós a tentação de, como comentava um padre passionista, aclamarmos Cristo como fez a multidão em Jerusalém, porque Eles os ensinou, os ouviu, curou e saciou, mas, ao ver que o poder Lhe estava a escapar, deixou-O entregue a Si próprio (já não lhes interessava) e, assolada pelos chefes, pediu reiteradamente a crucifixão.   

Devemos, antes, correspondendo à exortação de Francisco, pedir a graça do assombro, pois, “a vida cristã, sem surpresa, torna-se cinzenta” e, para testemunharmos a alegria de ter encontrado Jesus, temos de nos deixar “surpreender cada dia pelo seu amor espantoso, que nos perdoa e faz recomeçar”. Ora, “se a fé perde o assombro, torna-se surda: já não sente a maravilha da graça, deixa de sentir o gosto do Pão da vida e da Palavra, fica sem perceber a beleza dos irmãos e o dom da criação”, pelo que o Santo Padre exorta a que, “nesta Semana Santa, ergamos o olhar para a cruz a fim de recebermos a graça do assombro”. E, observando que o Espírito Santo nos dá a graça do assombro e nos convida a recomeçar do espanto e a olhar para o Crucificado, considerou que Jesus está nos últimos, nos rejeitados. A este respeito, explanou:

No Crucificado, vemos Deus humilhado, o Onipotente reduzido a um descartado. E, com a graça do assombro, compreendemos que, acolhendo quem é descartado, aproximando-nos de quem é humilhado pela vida, amamos Jesus, porque Ele está nos últimos, nos rejeitados.

E, frisando que o Evangelho, imediatamente após a morte de Jesus, nos mostra o ícone mais belo da surpresa, a cena do centurião, que, “ao vê-Lo expirar daquela maneira, disse que ‘verdadeiramente este homem era Filho de Deus’”, concluiu com uma exortação:

Hoje, Deus ainda surpreende a nossa mente e o nosso coração. Deixemos que nos impregne este assombro, olhemos para o Crucificado e digamos também nós: ‘Vós sois verdadeiramente Filho de Deus. Vós sois o meu Deus’.”

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Consumação do Batismo do Senhor na cruz

Dom António Couto, Bispo de Lamego, considera que a viagem que Jesus, “batizado com o Espírito Santo no Jordão, confirmado com o Espírito Santo no Tabor”, realizou na “sua missão filial batismal anunciando o Evangelho do Reino” e “fazendo as suas obras”, chegou ao fim, em Jerusalém, onde o seu Batismo é consumado (cf Lc 12,49‑50) na sua morte gloriosa, “única fonte do Espírito Santo para nós, porque única fonte da vida eterna verdadeiramente dada (cf At 2,32-33; Jo 19,30.34; 7,38-39). Mais ensina que, pela “missão filial batismal do Filho de Deus finalmente consumada”, fomos “batizados na sua Morte” (Rm 6,3) e fomos já, com Ele, “consepultados, corressuscitados, covivificados e cossentados na G1ória” (Ef 2,5‑6; Cl 2,12‑13: formas ver­bais usadas por Paulo em aoristo histórico). For­mamos, assim, “a Igreja que Jesus amou” (cf Ef 5,25) num amor que Paulo chama “o grande mistério” (cf Ef 5,32), “a esposa bela, a nova Jerusalém” (cf Ap 19,7‑9; 21,2.9-27) que “diz, com o Espírito, ao Senhor Jesus: Vem!” (Ap 22,17.20).

Dá o tom deste domingo a passagem de Marcos 11,1-10, que mostra o Rei messiânico a tomar posse da “Cidade do Grande Rei” (Sl 45,5.12; 47,2-3; Tb 13,11; Mt 5,35), a esposa que nascerá do seu sangue, simultaneamente cúmplice e beneficiária da morte do Esposo e que desce ao encontro do Esposo “em vestido de noiva, não de viúva” (cf Ap 21,2). O Messias toma posse da Filha de Sião e vem montado sobre o jumento da paz, não sobre cavalos de guerra, cumprindo Zacarias 9,9, que escreveu esta página de um Rei pobre, manso e humilde, em contraponto com o imponente de Alexandre Magno. Estendem-se capas e ramos de árvores no caminho tal como se fazia quando era ungido e aclamado o rei, como foi o caso de Jeú (cf 2Rs 9,13). A multidão canta “Hossana” (“Salva, por favor!”) (Sl 118,5), saudando “Aquele que Vem” (título divino) (Sl 118,26), com o Reino de David. Jesus não entra em Jerusalém como peregrino, mestre ou taumaturgo, mas como o Rei futuro prometido, pobre e humilde, anunciado em Zacarias. Por isso, nesta etapa do caminho, desde Betfagé e Betânia, perto do Monte das Oliveiras, até Jerusalém, não vai a pé, como andou nos caminhos das cidades e aldeias da Palestina, ou de barco, quando atravessava o mar da Galileia. Faz questão de percorrer este último troço da viagem montado num jumento, ainda não montado por ninguém (Mc 11,2), pois “o Rei é o primeiro em tudo”. E o prelado académico frisa que a temática do jumento montado não passa despercebida. Assim, “dos dez versículos desta passagem (Mc 11,1-10): sete ocupam-se com a minuciosa procura do jumento e com o modo simples e novo, sem arreios, como Jesus o monta”.

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A morte de Jesus resulta da sua coerência de vida e missão

A morte de Jesus tem de ser entendida no contexto da sua vida. Cedo, percebeu que o Pai O chamava a anunciar o mundo novo, de justiça, paz, liberdade e amor para todos. A concretizar este desígnio, passou pelas rotas da Palestina “fazendo o bem” e a anunciar a proximidade deste mundo novo; ensinou que Deus é amor e não exclui ninguém; ensinou que leprosos, paralíticos e cegos não podem ser marginalizados, pois não são amaldiçoados por Deus; ensinou que são os pobres e os excluídos os preferidos de Deus e os que têm um coração mais disponível para acolher o Reino; e avisou os ricos (poderosos, instalados) de que egoísmo, orgulho, autossuficiência, fechamento só levam à morte. Este projeto libertador chocou com a atmosfera de egoísmo, má vontade e opressão que dominava o mundo. As autoridades políticas e religiosas, incomodadas com a denúncia, não se dispuseram a renunciar aos mecanismos que lhes asseguravam poder, influência, domínio, privilégios; não se dispuseram a arriscar, a desinstalar-se e a aceitar a conversão. Por isso, prenderam-No, julgaram-No, condenaram-No e pregaram-No na cruz.

A morte de Jesus, consequência do anúncio do Reino, resultou das tensões e resistências à proposta do Reino e culminou a sua vida como afirmação última, porém mais radical e mais verdadeira (porque marcada com sangue), do que Jesus pregou com palavras e gestos: o amor, o dom total, o serviço. Na cruz, aparece o Homem Novo, o protótipo do homem que ama radicalmente e que faz da sua vida um dom para todos. E, porque ama, assume como missão a luta contra o pecado – contra todas as causas objetivas que geram medo, injustiça, sofrimento, exploração e morte. Assim, a cruz protagoniza o dinamismo de um mundo novo, o dinamismo do Reino.

O relato da Paixão segundo Marcos não difere significativamente dos relatos de Mateus e de Lucas. Porém, há coordenadas que Marcos sublinha. Assim, neste processo, Jesus manifesta grande serenidade e dignidade e total conformação com o que se passa. Não é passividade ou inconsciência, mas serena aceitação do caminho que Ele sabe que passa pela cruz. Marcos sugere que Jesus está plenamente conformado com a vontade do Pai e que a sua vontade é cumprir fiel e integralmente o plano de Deus, sem objeção ou resistência. Esta dignidade face ao processo que as autoridades religiosas e políticas lhe movem é atestada em várias cenas:

Segundo Mateus e Lucas, Jesus interpela diretamente Judas, quando este O entrega no monte das Oliveiras (cf Mt 26,50; Lc 22,48); em Marcos, Jesus mantém silêncio e dignidade face à traição do discípulo (cf Mc 14,45-46), sem observações ou recriminações. Mateus põe Jesus a desautorizar Pedro quando fere o servo do sumo sacerdote cortando-lhe uma orelha (cf Mt 26,52) e, segundo Lucas, Jesus pede aos discípulos que deixem agir os sequestradores (cf Lc 22,51); Marcos, porém, não apresenta, neste episódio, qualquer reação de Jesus (cf Mc 14,47), apenas referindo que isto sucede para que se cumpram as Escrituras (cf Mc 14,49), e Jesus, interrogado pelo sumo sacerdote no tribunal judaico, acerca das acusações feitas, manteve um silêncio solene e digno (cf Mc 14,61a), recusando defender-Se das acusações dos detratores.

Uma das teses fundamentais de Marcos é que Jesus é o Filho de Deus (cf Mc 1,1). Esta ideia está bem presente e sublinhada no relato da Paixão. Pouco antes de ser preso, Jesus dirige-Se a Deus (cf Mc 14,36) e chamando-Lhe “Abba” (“paizinho”, “papá”), termo não usado nas orações hebraicas como invocação de Deus, mas sim na intimidade familiar exprimindo proximidade entre filho e pai. O facto de Jesus usar esta palavra revela a comunhão entre Ele e o Pai e a relação marcada pela simplicidade, intimidade e total confiança. Não obstante o silêncio de Jesus durante o interrogatório no palácio do sumo sacerdote, Ele não hesita em deixar clara a sua divindade. Quando o sumo sacerdote Lhe pergunta diretamente se Ele é “o Messias, o Filho de Deus bendito” (Mc 14,61b), responde, sem subterfúgios: “Eu sou. E vereis o Filho do Homem sentado à direita do Todo-poderoso e vir sobre as nuvens do céu(Mc 14,62). A expressão “eu sou” (“egô eimi”) leva-nos ao nome de Deus no AT (“eu sou aquele que sou” – Ex 3,14), que é a afirmação inequívoca da dignidade divina de Jesus. A menção do “sentar-se à direita do Todo-poderoso” e “vir sobre as nuvens” sublinha a divindade de Jesus, que há de surgir no lugar de Deus como juiz soberano de toda a humanidade. E o sumo sacerdote percebe o alcance da afirmação (Ele está a arrogar-Se a condição de Filho de Deus e a prerrogativa divina por excelência – a de juiz universal), pelo que manifesta a indignação rasgando as vestes e condenando-O como blasfemo. Em Marcos, o centurião romano diz, junto da cruz de Jesus: “na verdade, este homem era Filho de Deus(Mc 15,39), o que deve ser visto como convite à “profissão de fé” da parte dos crentes. Na verdade, Jesus é o Filho de Deus que veio ao encontro de todos os homens para lhes oferecer a salvação.

Apesar de Filho de Deus, Jesus é homem que partilha a debilidade e a fragilidade da natureza humana: Pouco antes de ser preso, sentiu “pavor” e “angústia” (cf Mc 14,33), como sucede com qualquer homem ante a morte violenta; Mateus é mais moderado ao falar da tristeza e angústia de Jesus (cf Mt 26,37) e Lucas evita referir a estes sentimentos que, vincando a dimensão humana de Jesus, podiam lançar dúvidas sobre a sua divindade. No instante da morte, Jesus reza: “meu Deus, meu Deus, para que me abandonaste(Mc 15,34). É a oração do homem que experimenta a solidão, abandono e sensação de falhanço, custando-lhe a compreender a ausência e indiferença de Deus. Na verdade, o Jesus de Marcos é o homem que Se solidariza com os homens, os acompanha no sofrimento e experimenta os seus dramas, fragilidades e debilidades.

Em todas as narrativas da Paixão, Jesus enfrenta sozinho (abandonado pelas multidões e pelos próprios discípulos) o seu destino de morte; Marcos, porém, vinca a solidão de Jesus. Em Lucas, um anjo conforta Jesus, no jardim das Oliveiras (cf Lc 22,43), o que Marcos omite. Mateus conta que a mulher de Pilatos intercedeu por Jesus, pedindo ao marido que não se intrometesse “no caso desse justo” (cf Mt 27,19), enquanto Marcos não faz qualquer interferência deste tipo. João, além de Pedro, refere a presença de um “outro discípulo conhecido do sumo sacerdote” no palácio de Anás (Jo 18,15); Marcos, para lá de Pedro (que negou Jesus três vezes), nunca refere a presença de qualquer outro discípulo. Lucas nota a presença de mulheres ao longo do caminho do calvário, que “batiam no peito e se lamentavam por Ele” (Lc 23,27-31); Marcos não fala de alguém que se lamentasse no caminho de Jesus em direção ao lugar da execução (só após a morte de Jesus, observa que algumas mulheres que O seguiam e serviam quando estava na Galileia estavam ali a “contemplar de longe” – Mc 15,40-41).Abandonado pelos discípulos, escarnecido pela multidão, condenado pelos líderes, torturado pelos soldados, Jesus percorre na solidão, no abandono, na indiferença de todos, o seu caminho de morte. O grito de Jesus na cruz (“meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste” – Mc 15,34), início do Salmo 22 (cf Sl 22,2) é a expressão dramática da solidão que Jesus sente à sua volta. Só Marcos relata o episódio do jovem que seguia Jesus envolto apenas num lençol e que fugiu nu quando os guardas o tentaram agarrar (cf Mc 14,51-52). Para alguns comentadores, o jovem será o próprio evangelista, mas é provável que Marcos tenha introduzido o episódio para marcar plasticamente a atitude dos discípulos que, desiludidos e amedrontados ante o falhanço do projeto que os mobilizou, largaram tudo, quando viram o líder preso, e fugiram.

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O relato da Paixão de Marcos 14,1-15,47 soma 119 dos 677 versículos de todo o Evangelho de Marcos e marca o ritmo da “Semana Santa” ou “Semana Maior”, “Semana Grande” (para os orientais) ou “Semana Autêntica” (para o antigo rito de Milão). São, no dizer do Bispo de Lamego, momentos decisivos em que a Esposa, tornada bela por graça, segue o Esposo passo a passo: a unção para a sepultura em Betânia (Mc 14,3-9), a Ceia Primeira (e não última) (Mc 14,12-31), a oração em Getsémani (Mc 14,32-42), a prisão e o abandono por todos (Mc 14,43-52), os processos e a condenação (Jesus afirma‑se “o Bendito”, “o Filho de Deus”, “o Messias”, “o Rei”) (Mc 14,53 – 15,14), a en­trega à morte por Pilatos (Mc 15,15), correspondendo à entrega por Deus (1Cor 11,23), a coroa de espinhos, a cruz, as três tentações por parte dos que passavam, dos sacerdotes, dos demais cruci­ficados: “salva‑te a ti mesmo”, “desce da cruz” (Mc 15,29‑32), a oração de todo o Salmo 22, a começar em “Meu Deus, meu Deus, para que me abandonaste?”, e a terminar “esta é a obra do Senhor”, a ago­nia e a Morte precedida do grande grito (Mc 15,33-34.37), que indica a Vitória de Deus, e a sepultura. É “a proclamação da máxima Obra de Deus no mundo”, a que deve seguir‑se “a conversão do coração” e, sobretudo, “o louvor no coração”.

Na verdade, pronunciar as primeiras palavras do Salmo implica, segundo a praxe judaica, a recitação do Salmo inteiro. E o Salmo 22 tem uma primeira parte de fortíssima lamentação (v. 2-22), passa para uma segunda parte que exprime a consolação por ver Deus ao nosso lado, tão próximo de nós (v. 23-27) e terminando em verdadeira exultação (v. 28-32). E Dom António Couto, para quem este salmo é “oração que nasce na Paixão e termina na Páscoa”, refere que “Jacques Bossuet (1627-1704) declarava bem-aventurados aqueles que, recitando este Salmo, se encontram com Jesus, tão santamente tristes e tão divinamente felizes”.

Anota o Bispo de Lamego que, na cronologia dos Sinóticos, a quinta-feira desta semana é o dia da Preparação da Páscoa, comendo-se a Ceia Pascal após o pôr-do-sol (para os hebreus é sexta-feira, pois o dia começa ao pôr do sol). Esta cronologia vê na Ceia de Jesus com os discípulos uma Ceia Pascal. E, segundo ela, Jesus é preso, julgado, condenado, crucificado, morto e sepultado em sexta-feira, dia da Páscoa dos judeus, o que seria estranho. João apresenta outra cronologia, segundo a qual Jesus terá comido uma Ceia, a sua Ceia Nova em quinta-feira, mas não a Ceia ritual da Páscoa dos judeus, e foi preso, julgado, condenado, crucificado, morto e sepultado, em sexta-feira, dia da Preparação, antes da Ceia ritual da Páscoa dos judeus, que para João é no sábado. No seu Livro sobre Jesus de Nazaré, Bento XVI defende, como outros estudiosos, a cronologia joanina. Ora, como as Igrejas do Ocidente seguem a cronologia dos Sinóticos, a nossa Eucaristia é com pão ázimo, segundo o ritual da ceia pascal dos judeus; e as Igrejas do Oriente, que seguem a cronologia joanina, fazem a Eucaristia com pão comum, por não derivar do ritual da Páscoa dos judeus.

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Outros lugares textuais que focam a gloriosa morte de Jesus

Do AT o Domingo de Ramos colhe o terceiro canto do Servo de Javé (Is 50,4-7). Ergue-se esta figura missionária de servo totalmente nas mãos de Deus desde a sua predestinação desde o seio materno (Is 49,1.5) até à exaltação e glorificação (Is 52,13), porque ousou passar pela entrega à morte (Is 53,12), de tal modo que Deus o pode chamar “meu Servo”. Neste domingo, o Servo é o discípulo a quem Deus abre os ouvidos até ao coração para ouvir bem a reconfortante Palavra de Deus e poder levar esta palavra de consolo aos necessitados dela.

Não é designado como profeta, mas é profeta e mais que profeta, pois a sua vocação está umbilicalmente associada à Palavra e à missão; a sua vida passa pelo sofrimento e dor; e o seu percurso é marcado pela total confiança em Deus. Por isso, será exaltado e glorificado diante de todos os povos, ou seja, a sua missão tem uma dimensão universal.   

“Tornando o rosto duro como pedra” (Is 50,7), apresenta-se como um Servo, não insensível e indiferente, mas decidido a levar até ao fim a missão que lhe é confiada. Tal será dito de Jesus em Lucas 9,51, quando toma a decisão inabalável de se dirigir para Jerusalém.

Em paralelo com o Servo, cantado por Isaías, vem Jesus apresentado por Paulo aos Filipenses (Fl 2,6-11), mas agora com um rosto, um nome: Jesus recebeu, na sua humanidade, o nome divino, incomparável (Fl 2,9). Agora, todas as criaturas adoram o nome Jesus (Fl 2,10) e “toda a língua” (todo o ser humano racional) professa que “Senhor é Jesus Cristo”. Notar a ordem dos três termos, errada nas versões modernas: Senhor, isto é, Deus eterno, é o Homem-Jesus Cristo. O acento cai, pois, sobre Senhor. O fim em vista: a Glória do Pai com o Espírito (Fl 2,11). Neste aspeto a tradução de Frederico Lourenço é concorde com a de António Couto. Assim, “Kýrios Iêsoûs Khristòs eis dóxan Theoû patrós” é traduzido por “Senhor <é> Jesus Cristo para glória de Deus Pai”.

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Concluindo

A Semana Santa convida-nos a aceitar a surpresa de Deus e a exultar com ela. Com efeito, o Senhor que, subindo à Cruz, desce ao nosso sofrimento, é glorificado pelo Pai e é constituído o Senhor para glória de Deus Pai, glória que é juntar-nos a todos como filhos no Filho em comunhão universal e em intimidade com o Deus de misericórdia cumprindo toda a justiça do Reino, já longe do sofrimento e da dor. Isto implica a abjuração de toda a traição, de toda a negação e de todo o abandono; e postula a verdadeira e total conversão ao Evangelho e à conformação da vida com esta Boa Nova no dinamismo dum Igreja que está em saída e em testemunho.    

2021.03.28 – Louro de Carvalho

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