A burocracia
passa de mecanismo de organização eficaz a poder sem rosto e a empecilho.
Como se
refere no caderno Economia do Expresso de 19 de março, Carlos Miguel, Secretário de Estado Adjunto do
Desenvolvimento Regional declara “guerra
à burocracia nacional dos fundos europeus”, no âmbito do PRR (Plano de Recuperação e Resiliência) e não só, revelada na “teia”
de pareceres, que tudo “emperra, trava” e “chateia”.
O governante que acompanha o investimento municipal enquanto braço direito da
Ministra da Coesão Territorial diz que “a Administração
Central tem urdido uma teia de pareceres vinculativos que tudo emperra, trava,
demora, chateia, na maior parte das vezes para satisfazer pequenos poderes
instituídos”. Assim, no Portugal 2020,
os investimentos municipais arrancaram tão tarde que houve autarcas que
chegaram a 2021 com 0% dos fundos europeus executados. Por isso, este membro do
Executivo defende que só com um “enorme esforço de desburocratização” se podem
prevenir novos atrasos no arranque do Portugal 2030 e do PRR, o que postula termos
de partir “para uma cultura de responsabilidade e confiança, fazendo tudo da
forma mais linear e transparente, sem descuidar a responsabilidade técnica e
política”.
O governante, que foi presidente da Câmara Municipal de Torres Vedras e
Secretário de Estado das Autarquias Locais, sustenta que, enquanto os
municípios preparam os projetos a candidatar à nova vaga de fundos europeus, “o
Estado deve agilizar os procedimentos administrativos”. Trata-se de “coisas
simples” que podem fazer toda a diferença, como pôr fim a pareceres
vinculativos de entidades da Administração Central que sejam excessivos ou desnecessários.
Por exemplo, diz o Secretário de Estado, “se um empresário pede um
licenciamento camarário para um edifício, tem de apresentar os respetivos
projetos e declaração dos técnicos, comprovando que esse projeto cumpre todas
as normas e responsabilizando-se por isso”, sendo que “os técnicos camarários
não vão aferir se a placa está bem ou mal calculada”; ao invés, se o empresário
“fizer uma candidatura de eficiência energética para o mesmo edifício, os
projetos e declarações técnicas são alvo de uma avaliação de um organismo da
Administração Central, por um técnico com habilitação igual à do autor do
projeto e que demorará meses a dar parecer”.
Assim, preconiza “uma cultura de responsabilidade na autoria do projeto”,
podendo e devendo a Administração Central “fiscalizar a execução da obra”, e interroga-se
sobre a necessidade do parecer “se o projeto já é feito por um técnico
credenciado”.
Carlos Miguel não esconde a questão e o objetivo desta carga burocrática,
ao dizer:
“Convém explicar que os maiores obstáculos
aos investimentos até nem provêm dos regulamentos europeus, mas foram criados
ao longo de décadas, numa tentativa de blindar a aplicação dos fundos e ter a
certeza de que são tão escrutinados quanto possível”.
E põe o dedo na ferida a nível conceptual:
“Em Portugal, confunde-se maior
transparência com maior burocracia, quando maior transparência deve
corresponder a maior simplicidade, legibilidade e escrutínio”.
Depois, referindo-se aos elevados montantes dos fundos europeus e do
relativamente pouco tempo disponível para deles usufruir, sustenta que “a
aceleração dos fundos europeus também passa pela agilização das regras dos
contratos públicos”. Lembrando que o Governo tem tentado simplificar e
desburocratizar as atuais regras, aumentando a sua eficiência, lamenta que a
proposta de simplificação do código dos contratos públicos (CCP), apesar de ter limites muito claros e de ter sido
aprovada em outubro passado pela Assembleia da República, tenha sido incompreendida
pela opinião pública e terminado no veto do Presidente da República. E alerta
para o facto de, enquanto a questão não for resolvida, continuarmos “presos a
processos que atrasam, dificultam e complicam a vida a quem quer, deve e pode
fazer investimento”.
Ora, isto afeta as empresas e o Estado, criando a situação de paralisia
funcional com a repetição de etapas de controlo muitas vezes redundantes. Daí
resulta, no dizer do governante, que, “enquanto não se perceber que alterações
destas não são sinónimo de diminuição da transparência, mas de aumento da
eficácia, não avançaremos”.
***
Também a cientista
Elvira Fortunato, vice-reitora da Universidade Nova de Lisboa e líder da equipa
de investigação do Centro de Investigação de Materiais (CENIMAT), em julho de
2018, se mostrou contra a burocracia na investigação, referindo no site do CENIMAT, que, a 1 de janeiro daquele ano, o CCP
sofreu alterações profundas, entre as quais se conta a baixa dos tetos para
aquisição produtos, agora com patamares relativamente pequenos (75
mil euros). E,
enquanto, dantes, esses patamares eram “por produto”, agora são “por empresa”. Assim,
uma empresa que vendesse mil produtos “tinha esse patamar vezes mil”, ao passo
que “agora só o tem uma vez”. No final de maio de 2018, o Governo aumentou o
teto para 221 mil euros para cada ano em vez dos anteriores três anos. Porém, o
que se pretendia “era uma situação idêntica à do tempo do professor Mariano
Gago”, que “simplesmente isentou a investigação destes tetos”. E não perde a
esperança na simplificação do processo, dizendo, por exemplo, que “uma coisa é
aplicar isto a um hospital que compra milhões de coisas” e outra será aplicá-lo
na investigação onde não se compram coisas aos milhões, mas compram-se “poucas
coisas, mas muito caras”.
É óbvio que não quer inserir no âmbito da
desburocratização instrumentos ou máquinas de enorme vulto, como o caso do microscópio,
para o qual teve de haver concurso internacional, em razão dos seu valor muito
grande. Refere-se a coisas simples como os consumíveis, os reagentes para laboratório
em que há completo bloqueio. Chegou reunir com o
Primeiro-Ministro em maio daquele ano de 2018 ficando com a impressão de que o
Chefe do Executivo ficou sensibilizado e acreditando que parte destas
alterações já tivera a ver com esse encontro. Com efeito, o Primeiro-Ministro
disse que “o CCP era o TPC dele”. Mas a cientista acredita que quem faz estas
leis “não tem noção das implicações que depois têm no terreno”.
Também acusava de funcionar “muito mal em Portugal”
a plataforma do Portugal 2020. Desde 2017, o CENIMAT,
através da FCT (Fundação para a Ciência e Tecnologia), tem de usar essa plataforma
informática incluindo “uma série de informação que não faz sentido para estes projetos
de investigação”. E contou que, num encontro com a Ministra Maria Manuel Leitão
Marques, lhe mostrara o exemplo de um projeto europeu, para 3,5 milhões, de 40
páginas (um
ficheiro Word que se transformamos em PDF e de que se faz o upload). Em contraste, mostrou-lhe o
normal do Portugal 2020, onde se recebe, no máximo, 200 mil euros, com 200
páginas. Por isso, infere:
“Há toda uma burocracia que não se percebe.
E se formos a ver, a fonte de financiamento é a mesma: são verbas europeias.
Aqui em Portugal, ligamos o complicador e temos fobia de simplificar as coisas.
Não se percebe. O nível de burocracia é horroroso e não se percebe.”.
E, a falar da burocracia, até parece o Papa quando
fala da economia que mata:
“Essa burocracia mata a investigação no
antes e no depois. Para além da burocracia das próprias candidaturas, no
Portugal 2020, já depois do projeto aprovado ela continua. Num projeto europeu,
os relatórios financeiros são extremamente simplificados; aqui em Portugal são
extremamente dificultados.”.
Há 5 meses, em entrevista ao Expresso,
disse que a burocracia da Administração Pública “era diabólica”, por não
conseguir gastar dois milhões dos 3,5 milhões de euros da bolsa do ERC (Conselho de Investigação Europeu) que
ganhou para comprar um grande microscópio eletrónico para o centro de
investigação que lidera, pois estava, há mais de um ano, a tratar de um
concurso público para a sua aquisição.
Desta feita, também em
entrevista à Revista do Expresso, de 12 de março, diz que a
situação não mudou. Porém, aponta um dado novo. Foi recentemente eleita para o CNCTI (Conselho
Nacional de Investigação, Tecnologia e Inovação), que tem 20 representantes das empresas e da
academia. Foram convocados para uma reunião com os ministros da Economia e da
Ciência para se pronunciarem sobre o PRR. E foi abordada a desburocratização a
partir dum relatório feito pela cientista, por José Manuel Mendonça, presidente
do INESC TEC, e por António Cunha, ora presidente da Comissão de Coordenação e
Desenvolvimento Regional do Norte. Identificaram 27 soluções e medidas de
simplificação. Contudo, nada se fez, apesar de a cientista ter alertado, na
mencionada reunião, que “o sucesso do PRR dependerá precisamente da simplificação
da Administração Pública, porque vamos ter muito dinheiro em simultâneo”, a
saber: o resto do Portugal 2020 que não foi gasto (o
limite é 2023), o
Orçamento de Estado, o Programa Portugal 2030 e o PRR. Será uma ‘indigestão de
dinheiro’, o que significa a necessidade de “o saber gerir muito bem”, porque
se não simplificarmos, ou gastaremos mal ou não executaremos.
Pensa que, no limite, Portugal gastará o dinheiro
que lhe é atribuído, mas com “o risco de gastar depressa e mal”. Portanto, é necessário
simplificar e gizar regras transparentes “para se poder executar bem e nos
prazos”, pois devolver dinheiro “é impensável”, dada a premência da crise.
Não estranha ausência de verbas no PRR para a investigação científica. E explica:
“O programa destina-se basicamente a ajudar
a economia. Mas vão existir as Agendas Mobilizadoras e depois abrem-se chamadas
(concursos) para projetos que o Governo identificou. E formam-se então
consórcios coordenados por empresas para se candidatarem, onde é obrigatória a
participação de universidades ou centros de investigação, porque as empresas
não podem gerar mais inovação se não tiverem o conhecimento que vem das
universidades.”.
***
Quem lida no quotidiano com os departamentos da administração pública –
desde os mais simples e próximos aos mais altos e distantes – debate-se com
problemas burocráticos: ou porque o requerente não prova que é interessado ou
porque o assunto transcende o departamento em causa ou porque não se observou
um determinado formalismo ou não se obtiveram pareceres suficientes. Quando não
há problema, cria-se. Aboliu-se o imposto de selo de estampilha e de recibo,
mas inventam-se taxas alternativas. E, aquando de candidaturas a projetos;
procuram-se falhas procedimentais ou lacunas de preenchimento; exigem-se
pareceres desnecessários e redundantes; e exíguos departamentos querem ficar na
posse dum exemplar total da candidatura.
Carlos Miguel e Elvira Fortunato têm toda a razão. E não sei se, neste
âmbito, sabem da missa a metade em relação ao que se passa, por exemplo, nas
escolas, serviços de finanças, conservatórias, câmaras municipais, tribunais, secretarias-gerais,
etc.. Nalguns lugares, uma pessoa influente consegue a descolagem dum processo,
o que se devia conseguir pelas vias ordinárias, alegadamente pelos muitos
processos. Às vezes, facilitam o trabalho de agências, advogados e
solicitadores em detrimento do cidadão comum. Porquê num país de cidadãos? Tudo
isto acontece sob a invocação do cumprimento de ordens de entidades que são apresentadas
ao cidadão comum em abstrato ou sem rosto: a lei, o governo, o tribunal, o
Estado, a câmara, a polícia… Recordo que, em tempos (em 1999), numa formação sobre metodologia de trabalho de
projeto, apesar de ser consensual tal metodologia se estribar na bordagem
sistémica, os formadores não olvidaram a necessidade de apresentar as linhas da
abordagem burocrática, a única aceitável em candidaturas a financiamento conceção,
execução e avaliação de projetos. E a apregoada transparência fica eclipsada na
burocracia em nome da eficácia ineficiente!
***
Pequeno excursus
sobre a burocracia
“Burocracia”, termo surgido no
século XVII, de sentido negativo para referir o poder abusivo do serviço
administrativo público e privado, permanece associado a ineficiência e
desperdício.
Remonta ao termo grego “purrós” (“cor
de fogo”), donde o latino “burrus” (“avermelhado”), que no latim
vulgar se dizia bura(m) (pano grosseiro de
lã de cor avermelhada, que, em francês, era burel). Esse tecido (pardo, marrom ou preto), usado para vestimenta de monges e penitentes, usava-se
também para forrar a superfície sobre a qual se faziam contas, pelo que passou
a designar a mesa de trabalho e se estendeu às escrivaninhas de repartição
pública. Daí o termo francês “bureau”, que se referia à mesa de trabalho coberta com esse tecido e, por sinédoque,
passou a designar o escritório. E, a “bura”
juntou-se “kratía” (do verbo “kratéô”:
mando), que significa governo, poder.
A sociologia tornou o termo
“burocracia” um conceito importante para a análise das sociedades,
principalmente através do contributo de Max Weber, segundo o qual a
burocracia deve ser analisada do ângulo dum fenómeno situado historicamente e
cujas marcas são: subordinação à autoridade que define as competências segundo
regras fixas; hierarquia das funções; gestão racional plasmada em documentos
escritos; separação entre espaço doméstico e assuntos privados dos
funcionários; distinção rigorosa entre património público e fortuna pessoal;
especialização assente na formação profissional ou aprendizagem, que está na
base da seleção; atividade a tempo inteiro; e tecnicidade de funções, com
regras próprias, assente na impessoalidade e na abstração.
Para Freund, este ideal
de burocracia surgiu tendo em conta o desenvolvimento duma economia monetária,
a constituição dos Estados-nações modernos e dos grandes partidos políticos, o
crescimento do consumo de massas, a superioridade técnica da burocracia
relativamente a outras formas de organização, a concentração dos meios numa
autoridade central e um nivelamento das diferenças económicas e sociais. E,
para Weber, a análise sociológica da burocracia não se restringe à recusa deste
fenómeno como alvo negativo, nem à adesão acrítica, mas tem subjacente um
processo de racionalização do tipo instrumental, que tende a expandir-se a todos
os aspetos da vida quotidiana. Assim, uma primeira linha de investigação privilegia
os aspetos mais societais da definição weberiana, de modo que os grandes
partidos e sindicatos adotam a lógica burocrática sob a forma da lei de ferro
da oligarquia, vindo os funcionários a libertar-se do controlo dos membros da
organização e a monopolizar o poder de decisão.
O mecanismo organizacional, embora
conceda solidez de estrutura, induz mudanças graves na organização de massa
invertendo as posições dos líderes e dos liderados. Nestes termos, todo o
partido ou sindicato se divide entre a minoria de dirigentes e a maioria de
dirigidos. E lá está a máquina ou o aparelho a comandar os acontecimentos e,
por vezes, a triturar pessoas.
Por outro lado, a burocracia está ligada
à racionalização económica, que opera num regime fundado na exploração, e a
burocratização desenvolve-se no âmbito dum sistema de dominação social vigente
tanto em países “socialistas” como nas democracias ocidentais.
Entretanto, a linha
positivista aponta para uma sociologia das organizações centrada no seu grau de
burocratização, preconizando a superioridade da organização burocrática.
Todavia, muitas investigações sociológicas mostram que se trata dum modelo
organizacional atravessado por algumas disfuncionalidades, nomeadamente despersonalização,
redundância, duplicação de agentes a desempenhar as mesmas tarefas, excessos,
atrasos, custos. Segundo Merton, a rígida disciplina exigida pela organização
provoca um deslocamento de fins, assumindo as regras não como meios mas como
fins. A pressão para se submeter aos textos e o ritualismo resultante provocam rigidez
na organização e tensões na relação com os clientes. Selznick entende que a
delegação de autoridade ao longo da escala hierárquica provoca o aumento das
divergências de interesse e fins entre grupos de diferentes especialidades.
Como resultado, aumenta a distância entre os objetivos e a sua realização. Na
verdade, o excesso de controlo destinado a
aumentar a produtividade provoca tensões; e a generalização das regras reforça
as ocasiões de se servir delas como meio de proteção contra a autoridade e o
controlo, ou seja, a regra serve para o funcionário se proteger contra a ação
de vigilância e torna-se objeto de negociação, em vez de ser o garante da
aplicação automática das decisões centralizadas.
Michel Crozier, que define, nos
anos 60 do século XX, a burocracia como “o modelo de relações humanas que
permitem o estabelecimento e a cristalização de rotinas administrativas”,
interroga-se sobre o motivo por que tal sistema, que paralisa os quadros numa
situação de rotina e produz tantas frustrações nos empregados, se desenvolve e
resiste a todas as pressões de mudança. E admite ser, para funcionários, “o
meio de evitar as relações face a face, as relações de dependência pessoal”,
não suportando o “tom autoritário”. Enfim, tais disfuncionamentos agem sistematicamente
e reforçam-se mutuamente, originando o “círculo vicioso burocrático”,
caraterizado pelo aumento de regras impessoais, centralização de decisões,
isolamento de cada estrato ou categoria profissional, aumento concomitante da
pressão do grupo sobre o indivíduo e desenvolvimento de relações de poder
paralelas em torno de zonas de incerteza que subsistem.
(cf Burocracia in Infopédia; Burocracia in Wiquipédia; Macedo,
Daniel. A Teoria Administrativa e a
Gestão da Ciência. Belo Horizonte, 2008)
***
Concluindo
Aquilo que, por disciplina,
organização, estruturação e documentação, poderia ser causa e ensejo de eficácia,
segurança e satisfação de trabalhadores e clientes, transforma-se em poder sem
rosto, caprichoso e exercido por quem não é seu legítimo detentor. Dá imagem
distorcida do que deve ser a boa administração e as boas práticas, gera atrasos
na prestação de serviços e na satisfação de interesses legítimos e pode ser teia
de entrave ao desenvolvimento.
Obviamente, não se pretende a total
desburocratização, mas apenas fazer com que todas as organizações (públicas ou privadas), pela simplificação, sirvam o Estado, as empresas e,
sobretudo, os cidadãos. Quanto ao mais, zelem a segurança de pessoas, bens e serviços
e se comportem como bem oleadas máquinas ou aparelhos em prol do bem comum, ao
serviço das pessoas e não à sua aniquilação ou diminuição.
2021.03.22 – Louro de Carvalho
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