segunda-feira, 1 de março de 2021

Do significado da transfiguração em contexto e modo quaresmais

 

Em qualquer um dos anos do ciclo A, B e C, o II domingo da Quaresma apresenta-nos o Evangelho da transfiguração do Senhor para proclamação e meditação. E isto não surge por acaso. Tem, antes, um significado espiritual e prático.

Neste ano B, somos convidados a atentar na perícopa evangélica de Marcos (Mc 9,2-10) inserida na segunda parte do seu Evangelho que se inicia com um anúncio da Paixão feito por Jesus (cf Mc 8,31-32), a que Pedro reagiu mal, e com a instrução sobre as atitudes típicas do discípulo: renúncia a si mesmo, assunção da cruz e seguimento de Jesus (cf Mc 8,34-38). Os discípulos já sabiam que Ele era o Messias que Israel esperava (cf Mc 8,29), como Pedro confessara, mas acreditavam que a missão messiânica se concretizaria num triunfo militar sobre os opressores romanos. Por isso, o evangelista explica aos crentes a quem dirige o Evangelho que o projeto messiânico de Jesus se concretizará, não em triunfo mundano, mas na cruz, no dom da vida.

Tendo ouvido falar do caminho da cruz e atentado no que Jesus pede aos que O querem seguir, os discípulos sentem-se frustrados, pois divisam o inexorável fracasso da aventura em que apostaram e veem desvanecer-se os seus sonhos de glória e honrarias, perguntando-se se vale a pena seguir um mestre destes. É neste contexto que se enquadra a transfiguração ou teofania da glória de Jesus qual luz ao fundo do túnel da rejeição, Paixão, Morte e Sepultura do Mestre.

Dito de outro modo, a transfiguração quer dizer-nos que, apesar da cruz, que está iminente, o Filho predileto do Pai garante aos discípulos que a missão a cuja adesão os convida vem de Deus e dá aos que nela participam ativamente a coroa da glória, não terrena, mas divinizante. 

A transfiguração é uma teofania, isto é, uma manifestação de Deus, pelo que o narrador lança mão de todos os ingredientes que, no imaginário judaico, acompanham as manifestações de Deus: o monte, a voz do céu, as aparições, as vestes brilhantes, a nuvem e o medo e perturbação dos que testemunham o encontro com o divino.

O monte aponta para uma revelação, sendo ali que Deus Se revela e estabelece uma aliança com o seu Povo. A mudança do rosto e as vestes brilhantes (muitíssimo brancas) evocam o resplendor de Moisés, ao descer do Sinai (cf Ex 34,29), após o encontro com Deus e a receção da Lei. A nuvem, indica a presença ativa de Deus, pois, através dela, Ele manifestava a sua presença e a suprema condução do Povo pelo deserto (cf Ex 40,34-38; Nm 9,18-23; 10,34). Moisés e Elias compendiam a Lei e os Profetas e são personagens que, segundo a catequese judaica, apareceriam no dia do Senhor, quando se manifestasse a salvação definitiva (cf Dt 18,15-18; Ml 3,22-23). O temor e perturbação dos discípulos são a reação humana ante a manifestação da grandeza, omnipotência e majestade de Deus (cf Ex 19,16; 20,18-21). As tendas aludem à festa das tendas, em que se celebrava o tempo do êxodo, quando o Povo de Deus habitou em tendas, no deserto.

A tradição identifica o monte alto da Transfiguração (Mc 9,2) com o Tabor, monte arredondado que se ergue nos seus 582 metros na planície galilaica de Jesrael ou Esdrelon. No sopé ainda hoje se encontra a aldeia de Daburiyya, que evoca a profetisa Débora.

As Igrejas do Oriente chamam ao episódio da Transfiguração Metamorfose (metamórphôsis), a partir do segmento “E transformou-se (metemorphôthê) diante deles (Pedro, Tiago e João), e as suas vestes tornaram-se resplandecentes, muito brancas” (Mc 9,2-3). O branco é a cor divina e a luz é o seu vestido. Por isso, o Apóstolo exorta: “Procedei como filhos da luz”, e lembra que “o fruto da luz está em toda a espécie de bondade, justiça e verdade(Ef 5,8.9).

A mensagem fulcral é a que pretende dizer quem é Jesus. E o hagiógrafo deixa claro que Jesus é o Filho amado de Deus, em quem se manifesta a glória do Pai, e o Messias salvador esperado por Israel, anunciado pela Lei e pelos Profetas. É o novo Moisés através de quem o próprio Deus dá ao seu Povo a nova Lei (a das Bem-aventuranças) e propõe a nova Aliança, de que nascerá um novo Povo de Deus com quem Deus palmilhará as rotas da história e da nova liberdade.

De facto, quando Pedro sugere permanecer ali e fazer três tendas, uma para Jesus, outra para Moisés e outra para Elias (Jesus nem respondeu a isso), não estava a perceber que Jesus ultrapassa em relevância Moisés e Elias. É como eles, mas é sobretudo mais que eles. Por outro lado, não tinha reparado que a cena da glória e do resplendor não era para agora, mas para depois da cruz. Mais: a cena da glória não era exclusivamente para Jesus, mas também para todos os que O seguem como Ele quer. Por isso, a voz que vem do Céu e se ouve ali naquele monte tem uma dupla finalidade: dizer quem é Jesus, o Filho muito amado do Pai; e apelar a que O ouçamos e façamos como Ele.

Não podendo esquecer que no I domingo da Quaresma assumimos o Evangelho das tentações, temos agora de escutar Jesus para, como Ele, afastarmos a espetacularidade caprichosa do milagre que não tenha em vista a salvação de todos os homens e do homem todo, recusarmos a ostentação do poder, do protagonismo e da vaidade, rejeitarmos a acumulação de riquezas à custa de tudo e de todos, aceitarmos viver com todos, mesmo com as feras que nos caluniam e perseguem, e aceitarmos servir quem precisa e ser, na humildade, servidos pelos anjos do Céu e da Terra quando estivermos em contexto de necessidade ou carência.

Por isso, estar sempre no Tabor, para já, não. É preciso voltar à terra, abraçar e levar a cruz até ao fim, escutando o Mestre, maior que a Lei e que a Profecia. E, sim, depois da cruz, virá a ressurreição, anunciada pela glória de Deus que se manifesta em Jesus, pelas “vestes brilhantes, muitíssimo brancas”, que lembram a túnica branca do “jovem” sentado junto do túmulo de Jesus e que anuncia às mulheres a ressurreição (cf Mc 16,5-7) e pela recomendação de Jesus de “que não contassem a ninguém o que tinham visto, enquanto o Filho do Homem não ressuscitasse dos mortos” (Mc 9,9).

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Batizado com o Espírito Santo (Mc 1,9-10), chamado pelo Pai o meu Filho, o Amado (Mc 1,11), tentado durante 40 dias no deserto e superando a provação, dominando os animais e a selvagem animalidade (Mc 1,13), Jesus, sempre vinculado ao Pai, vincula-se à nossa condição humana e vincula-nos a Si: “Vamos (ágômen) pregar”, diz no princípio (Mc 1,38), na hora da Missão, como o diz na hora da Paixão (Mc 14,42). O seu caminho filial e batismal é também o nosso.

Marcos entende que Jesus nos fez deixar para trás os nossos planos (Mc 1,37) e nos levou consigo a anunciar o Evangelho pelas vias da Galileia (Mc 1,38), prolepse da vida cristã, discipular e apostólica, que passa pela via da Paixão (Mc 14,41-42). A locução “no caminho” (en tê hodô), usada para o seguimento de Jesus (Mc 8,27-10,52), aí ouvida por 5 vezes (Mc 8,27; 9,33.34; 10,32.52), ajuda-nos a compreender melhor que o discípulo deve aprender a renunciar, “dizer não” (apernéomai) a si mesmo (Mc 8,34), expressão empregue no texto grego de Isaías para dizer “desfazer-se dos seus ídolos de ouro e prata”, obras de mão pecadora (Is 31,7), para fazer seu o caminho de Jesus.

Também a perícopa em referência nesta dominga mostra que a iniciativa é de Jesus, que toma consigo (paralambánô) Pedro, Tiago e João, e os faz subir (anaphérô) a um monte alto. A seguir, passa para Deus com o verbo na passiva teológica, “foi transfigurado” (metemorphôthê: aoristo passivo de metamorphéô) (Mc 9,2). Já uma vez Jesus tomara consigo Pedro, Tiago e João aquando da ressuscitação da filha de Jairo (Mc 5,35-43).

Levá-los a um monte alto significa que a revelação significada pelo monte se vai passar cai fora da agitação do quotidiano. Assim, a transfiguração de Jesus não ocorre na praça pública ou ante uma grande multidão, nem é narrada a figura do transfigurado; apenas é evocada e se fala das suas vestes brancas de uma brancura não terrena (Mc 9,3). Fala-se da aparição – à letra, “fez-se ver (ôpthê: aoristo passivo de horáô) a eles” (autoîs) – de Moisés e Elias (Mc 9,4) para compreendermos que Jesus não surge de improviso, mas culmina toda a longa história da solicitude de Deus com o seu povo. Moisés e Elias é que se fazem ver a Pedro, Tiago e João, e não são estes que se põem a ver Moisés e Elias. De per si, os seus olhos não têm capacidade para ver tanto, mas beneficiam desta visão. E é assim que são apresentadas as aparições de Deus no Antigo Testamento e as do Ressuscitado no Novo Testamento.

Pedro reage a tudo isto (Mc 9,5) de forma aparentemente generosa, mas que não se ajusta ao contexto. Com efeito, tendas terrenas não podem abrigar seres celestes; Jesus é mais que Moisés e Elias; e a demonstração do Tabor é um simples lampejo do que virá no fim de toda a caminhada de cruz. Por isso, diz o narrador que Pedro “não sabia o que dizia” (Mc 9,6).

A introdução da nuvem e da voz, dois elementos divinos a simbolizar a presença velada de Deus e sua transcendência (Ex 24,15-18), constituem o cume da narrativa. Da nuvem vem a voz de Deus, o único que sabe dizer quem é o transfigurado: “Este é o meu Filho, o Amado: escutai-O” (“hoûtós estin hô yiós mou hô agapêtós, akoúete autoû”: Mc 9,8).

Há aqui algumas diferenças em relação ao cenário do Batismo. Lá, a voz de Deus vem do céu; aqui vem da nuvem. Lá dirige-se a Jesus, em 2.ª pessoa: “Tu és o meu Filho, o Amado(Mc 1,11); aqui, dirige-se a nós, em 3.ª pessoa (“Este é …”). Lá a intenção de Deus é apresentar-nos o Seu próprio Filho; aqui a essa intenção vem acoplada a tarefa que incumbe ao discípulo. Por isso, vem a seguir o imperativo: “Escutai-O(Mc 9,8). E, assim, o Pai liga Si o Filho do modo mais profundo: não se Se revela a si mesmo, como no Êxodo, mas revela o Filho, e vincula-nos ao Filho, sendo Ele a Palavra que devemos escutar, a Pessoa a quem devemos prestar atenção, sendo de advertir que o Filho é Aquele que recebe a vida e Aquele que é incumbido duma missão. Deus qualifica-se como Criador e Pai que dá a vida e como Filho que a recebe para a dar. Ora, nós, escutando Jesus, fugindo da tentação como Ele o Fez, tomando a nossa cruz e seguindo-O, seremos transfigurados pela Ressurreição, partilharemos a missão universal de Jesus, seremos com Ele, por Ele e Nele, filhos no Filho, como Ele far-nos-emos ouvir e com Ele entraremos em comunhão com o Pai no Espírito.

Estamos, pois, como Pedro, Tiago e João, a sós com Jesus (“não viram ninguém a não ser Jesus com eles”) no alto do monte da Revelação, da Missão e da Comunhão – da Transfiguração à Ressurreição, mas passando pela via da Cruz rumo à Missão e à Comunhão.      

Por fim, há que entender a ordem de Jesus de “não contarem (diêgéomai) a ninguém o que viram senão quando o Filho do Homem ressuscitar dos mortos” (Mc 9,9) como a inibição de desligar a transfiguração da ressurreição e da verdadeira missão messiânica. Depois, temos que aguardar a força do Alto para testemunharmos, com força e por todo o mundo, que a Jesus Deus Pai O Ressuscitou e O Exaltou à sua direita. Importa, pois, que não falemos antes do tempo, como somos tentados a fazer, mas que seja o Espírito Santo a falar em nós e por nós. Na verdade, Jesus adverte-nos de que, ao sermos conduzidos e entregues aos chefes e seus verdugos, não nos devemos preocupar com o que vamos falar (laléô), mas o que nos for dado (dothê: conjuntivo aoristo passivo de dídômi) nessa hora. Ou seja, não seremos nós quem fala, mas o Espírito Santo (cf Mc 13,11). Como ensina Dom António Couto, falar, com o verbo laléô, “é linguagem de revelação e ultrapassa os níveis da nossa competência”.

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Figura antecipada no tempo da lição da revelação transfiguradora vem a cena de Abraão e Isaac, que iam juntos (Gn 22,1-18). Abraão é vencedor da prova da posse idolátrica que se nos apega e a que nós nos apegamos. Relativamente a Abraão, o narrador chama a Isaac “seu” filho (Gn 22,3.6.9.10.13), e Abraão diz para Isaac “meu” filho (Gn 22,7.8). Isaac é o filho da promessa, um dom, que não se retém. Segundo o anjo do Senhor, Abraão passa a prova justamente porque não reteve o seu filho único longe de Deus (Gn 22,12.16). Deu-o a Deus e deu-se a Deus na sua paternidade, “fazendo subir em holocausto”, não um cordeiro (Gn 22,7-8), mas um carneiro (Gn 22,13). Neste episódio, podemos compreender que, em vez de sacrificar Isaac, Abraão sacrificará a vontade de o possuir como sua propriedade. Assim, Abraão é o anti-Adam. Foi libertado das amarras da posse para poder estar disponível para seguir as ordens divinas, ser o depositário da Promessa divina e ser imagem de Deus Pai que também não reteve para Si o seu Filho único, mas o doou em redenção da multidão criando a enorme família humana, filha da promessa divina e da liberdade que só Deus sabe conceder.

Testemunhas da susodita libertação abraâmica são os dois servos depositários do dizer de Abraão: “Vamos (eu e o menino) lá acima adorar e voltaremos para vós(Gn 22,5). E, após a ação de adoração lá em cima, o narrador dirá: “Voltou Abraão para os servos(Gn 22,19). São, enfim, testemunhas da subida de Abraão e Isaac e do regresso apenas de Abraão – lição abnegação de Abraão e de inteira liberdade do filho.

Por outro lado, o monte do holocausto do carneiro em vez de Isaac mostra que a sociedade humana tem de zelar pela vida humana, contra o costume de oferecer aos deuses e a Deus, como se o nosso Deus gostasse disso, vítimas humanas em sacrifício. Este zelo pela vida humana veiculado pelo anjo do Senhor faz de Abrão antiCaim, cuidador do filho, do irmão, do próximo. A partir de Abraão, não é lícito matar fazer violência, gerar a guerra em nome de Deus.

A pari, a seguir a Cristo e com Ele, Paulo, na Carta aos Romanos (Rm 8,31-34), fala-nos do desígnio de Deus – “Deus entregou o seu Filho por nós(Rm 8,32) – anunciado no Antigo Testamento, realizado em Cristo, batizado, confirmado e entregue para a Morte gloriosa em que nós fomos batizados e confirmados com o Espírito Santo e com o fogo. E foi‑nos dado a conhecer desígnio ou mistério (Rm 16,25‑26) de Deus anunciado, realizado e dado a conhecer, sendo nossa missão filial batismal proclamá‑lo e testemunhá‑lo como o Apóstolo o proclamou e testemunhou perante todos, judeus e gregos, os de perto e dos de longe.

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Em suma, a Transfiguração em tom quaresmal diz-nos quem é Jesus e quem seremos nós. Para tanto, teremos de escutar a voz do Pai, vinda do Céu ou da nuvem, no rio ou no monte, e escutar o Filho, o Amado. Porém, mais do que escutá-Lo; é preciso libertarmo-nos dos critérios mundanais, segui-Lo e aceitar a cruz para almejar e viver a ressurreição transfiguradora. Depois, seremos testemunhas e apóstolos capacitados para a entrada em comunhão com Pai pelo Filho no Espírito, em rede com todos os irmãos e irmãs, na grande faina da pesca de Deus.

2021.03.01 – Louro de Carvalho

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