Em qualquer um dos anos do ciclo A, B e C, o II domingo da
Quaresma apresenta-nos o Evangelho da transfiguração do Senhor para proclamação
e meditação. E isto não surge por acaso. Tem, antes, um significado espiritual
e prático.
Neste ano B, somos convidados a atentar na perícopa
evangélica de Marcos (Mc
9,2-10) inserida na segunda
parte do seu Evangelho que se inicia com um anúncio da Paixão feito por Jesus (cf Mc 8,31-32), a que Pedro reagiu mal, e com a
instrução sobre as atitudes típicas do discípulo: renúncia a si mesmo, assunção
da cruz e seguimento de Jesus (cf Mc 8,34-38). Os
discípulos já sabiam que Ele era o Messias que Israel esperava (cf Mc 8,29), como Pedro confessara, mas
acreditavam que a missão messiânica se concretizaria num triunfo militar sobre
os opressores romanos. Por isso, o evangelista explica aos crentes a quem
dirige o Evangelho que o projeto messiânico de Jesus se concretizará, não em triunfo
mundano, mas na cruz, no dom da vida.
Tendo ouvido falar do caminho da cruz e atentado no que Jesus
pede aos que O querem seguir, os discípulos sentem-se frustrados, pois divisam
o inexorável fracasso da aventura em que apostaram e veem desvanecer-se os seus
sonhos de glória e honrarias, perguntando-se se vale a pena seguir um mestre destes.
É neste contexto que se enquadra a transfiguração ou teofania da glória de
Jesus qual luz ao fundo do túnel da rejeição, Paixão, Morte e Sepultura do
Mestre.
Dito de outro modo, a transfiguração quer dizer-nos que,
apesar da cruz, que está iminente, o Filho predileto do Pai garante aos
discípulos que a missão a cuja adesão os convida vem de Deus e dá aos que nela
participam ativamente a coroa da glória, não terrena, mas divinizante.
A transfiguração é uma teofania, isto é, uma manifestação de
Deus, pelo que o narrador lança mão de todos os ingredientes que, no imaginário
judaico, acompanham as manifestações de Deus: o monte, a voz do céu, as
aparições, as vestes brilhantes, a nuvem e o medo e perturbação dos que
testemunham o encontro com o divino.
O monte aponta para uma revelação, sendo ali que Deus Se
revela e estabelece uma aliança com o seu Povo. A mudança do rosto e as vestes
brilhantes (muitíssimo
brancas) evocam o
resplendor de Moisés, ao descer do Sinai (cf Ex 34,29), após o encontro com Deus e a receção da Lei. A nuvem, indica a presença
ativa de Deus, pois, através dela, Ele manifestava a sua presença e a suprema
condução do Povo pelo deserto (cf Ex 40,34-38; Nm 9,18-23; 10,34). Moisés e Elias compendiam a Lei e os Profetas e são
personagens que, segundo a catequese judaica, apareceriam no dia do Senhor,
quando se manifestasse a salvação definitiva (cf Dt 18,15-18; Ml 3,22-23). O temor e perturbação dos
discípulos são a reação humana ante a manifestação da grandeza, omnipotência e
majestade de Deus (cf Ex
19,16; 20,18-21). As
tendas aludem à festa das tendas, em que se celebrava o tempo do êxodo, quando
o Povo de Deus habitou em tendas, no deserto.
A tradição identifica o monte alto da Transfiguração (Mc 9,2) com o Tabor, monte arredondado que se ergue nos seus
582 metros na planície galilaica de Jesrael ou Esdrelon. No sopé ainda hoje se
encontra a aldeia de Daburiyya, que evoca a profetisa Débora.
As Igrejas do Oriente chamam ao episódio da Transfiguração Metamorfose
(metamórphôsis), a partir do segmento “E transformou-se (metemorphôthê)
diante deles (Pedro,
Tiago e João), e as suas
vestes tornaram-se resplandecentes, muito brancas” (Mc 9,2-3). O branco é a cor divina e a luz é o
seu vestido. Por isso, o Apóstolo exorta: “Procedei
como filhos da luz”, e lembra que “o
fruto da luz está em toda a espécie de bondade, justiça e verdade” (Ef 5,8.9).
A mensagem fulcral é a que pretende dizer quem é Jesus. E o
hagiógrafo deixa claro que Jesus é o Filho amado de Deus, em quem se manifesta
a glória do Pai, e o Messias salvador esperado por Israel, anunciado pela Lei e
pelos Profetas. É o novo Moisés através de quem o próprio Deus dá ao seu Povo a
nova Lei (a das Bem-aventuranças) e propõe a nova Aliança, de que nascerá
um novo Povo de Deus com quem Deus palmilhará as rotas da história e da nova
liberdade.
De facto, quando Pedro sugere permanecer ali e fazer três
tendas, uma para Jesus, outra para Moisés e outra para Elias (Jesus nem respondeu a isso), não estava a perceber que Jesus
ultrapassa em relevância Moisés e Elias. É como eles, mas é sobretudo mais que
eles. Por outro lado, não tinha reparado que a cena da glória e do resplendor
não era para agora, mas para depois da cruz. Mais: a cena da glória não era
exclusivamente para Jesus, mas também para todos os que O seguem como Ele quer.
Por isso, a voz que vem do Céu e se ouve ali naquele monte tem uma dupla
finalidade: dizer quem é Jesus, o Filho muito amado do Pai; e apelar a que O
ouçamos e façamos como Ele.
Não podendo esquecer que no I domingo da Quaresma assumimos o
Evangelho das tentações, temos agora de escutar Jesus para, como Ele,
afastarmos a espetacularidade caprichosa do milagre que não tenha em vista a
salvação de todos os homens e do homem todo, recusarmos a ostentação do poder,
do protagonismo e da vaidade, rejeitarmos a acumulação de riquezas à custa de
tudo e de todos, aceitarmos viver com todos, mesmo com as feras que nos
caluniam e perseguem, e aceitarmos servir quem precisa e ser, na humildade,
servidos pelos anjos do Céu e da Terra quando estivermos em contexto de
necessidade ou carência.
Por isso, estar sempre no Tabor, para já, não. É preciso
voltar à terra, abraçar e levar a cruz até ao fim, escutando o Mestre, maior
que a Lei e que a Profecia. E, sim, depois da cruz, virá a ressurreição,
anunciada pela glória de Deus que se manifesta em Jesus, pelas “vestes
brilhantes, muitíssimo brancas”, que lembram a túnica branca do “jovem” sentado
junto do túmulo de Jesus e que anuncia às mulheres a ressurreição (cf Mc 16,5-7) e pela recomendação de Jesus de “que
não contassem a ninguém o que tinham visto, enquanto o Filho do Homem não
ressuscitasse dos mortos” (Mc
9,9).
***
Batizado com o Espírito Santo (Mc 1,9-10), chamado pelo Pai o meu Filho, o
Amado (Mc 1,11), tentado durante 40 dias no deserto
e superando a provação, dominando os animais e a selvagem animalidade (Mc 1,13), Jesus, sempre vinculado ao Pai,
vincula-se à nossa condição humana e vincula-nos a Si: “Vamos (ágômen)
pregar”, diz no
princípio (Mc 1,38), na hora da Missão, como o diz na
hora da Paixão (Mc 14,42). O seu caminho filial e batismal é
também o nosso.
Marcos entende que Jesus nos fez deixar para trás os
nossos planos (Mc 1,37) e nos levou consigo a anunciar o
Evangelho pelas vias da Galileia (Mc 1,38), prolepse da vida cristã, discipular e apostólica, que passa pela via da
Paixão (Mc 14,41-42). A locução “no caminho” (en tê hodô), usada para o
seguimento de Jesus (Mc
8,27-10,52), aí ouvida
por 5 vezes (Mc 8,27;
9,33.34; 10,32.52),
ajuda-nos a compreender melhor que o discípulo deve aprender a renunciar, “dizer
não” (apernéomai) a si mesmo (Mc 8,34),
expressão empregue no texto grego de Isaías para dizer “desfazer-se dos seus
ídolos de ouro e prata”, obras de mão pecadora (Is 31,7), para fazer seu o caminho de Jesus.
Também a perícopa em referência nesta dominga mostra
que a iniciativa é de Jesus, que toma consigo (paralambánô) Pedro, Tiago e João, e os faz subir (anaphérô) a um monte alto.
A seguir, passa para Deus com o verbo na passiva teológica, “foi transfigurado”
(metemorphôthê: aoristo passivo de metamorphéô) (Mc
9,2). Já uma vez Jesus
tomara consigo Pedro, Tiago e João aquando da ressuscitação da filha de Jairo (Mc 5,35-43).
Levá-los a um monte alto significa que a revelação
significada pelo monte se vai passar cai fora da agitação do quotidiano. Assim,
a transfiguração de Jesus não ocorre na praça pública ou ante uma grande
multidão, nem é narrada a figura do transfigurado; apenas é evocada e se fala
das suas vestes brancas de uma brancura não terrena (Mc 9,3). Fala-se da aparição – à letra, “fez-se ver (ôpthê:
aoristo passivo de horáô) a eles” (autoîs) – de Moisés e Elias (Mc 9,4) para compreendermos que Jesus não surge de improviso, mas culmina toda a
longa história da solicitude de Deus com o seu povo. Moisés e Elias é que se
fazem ver a Pedro, Tiago e João, e não são estes que se põem a ver Moisés e
Elias. De per si, os seus olhos não têm capacidade para ver tanto, mas
beneficiam desta visão. E é assim que são apresentadas as aparições de Deus no
Antigo Testamento e as do Ressuscitado no Novo Testamento.
Pedro reage a tudo isto (Mc 9,5) de forma aparentemente generosa, mas que não se ajusta ao
contexto. Com efeito, tendas terrenas não podem abrigar seres celestes; Jesus é
mais que Moisés e Elias; e a demonstração do Tabor é um simples lampejo do que
virá no fim de toda a caminhada de cruz. Por isso, diz o narrador que Pedro
“não sabia o que dizia” (Mc
9,6).
A introdução da nuvem e da voz, dois elementos divinos
a simbolizar a presença velada de Deus e sua transcendência (Ex 24,15-18), constituem o cume da narrativa. Da
nuvem vem a voz de Deus, o único que sabe dizer quem é o transfigurado: “Este é
o meu Filho, o Amado: escutai-O” (“hoûtós estin hô yiós
mou hô agapêtós, akoúete autoû”: Mc 9,8).
Há aqui algumas diferenças em relação ao cenário do
Batismo. Lá, a voz de Deus vem do céu; aqui vem da nuvem. Lá dirige-se a Jesus,
em 2.ª pessoa: “Tu és o meu Filho, o
Amado” (Mc 1,11); aqui, dirige-se a nós, em 3.ª
pessoa (“Este é …”). Lá a intenção de Deus é apresentar-nos o Seu próprio
Filho; aqui a essa intenção vem acoplada a tarefa que incumbe ao discípulo. Por
isso, vem a seguir o imperativo: “Escutai-O”
(Mc 9,8). E, assim, o Pai liga Si o Filho do
modo mais profundo: não se Se revela a si mesmo, como no Êxodo, mas revela o
Filho, e vincula-nos ao Filho, sendo Ele a Palavra que devemos escutar, a
Pessoa a quem devemos prestar atenção, sendo de advertir que o Filho é Aquele
que recebe a vida e Aquele que é incumbido duma missão. Deus qualifica-se como
Criador e Pai que dá a vida e como Filho que a recebe para a dar. Ora, nós,
escutando Jesus, fugindo da tentação como Ele o Fez, tomando a nossa cruz e
seguindo-O, seremos transfigurados pela Ressurreição, partilharemos a missão universal
de Jesus, seremos com Ele, por Ele e Nele, filhos no Filho, como Ele
far-nos-emos ouvir e com Ele entraremos em comunhão com o Pai no Espírito.
Estamos, pois, como Pedro, Tiago e João, a sós com
Jesus (“não viram ninguém a não ser Jesus com eles”) no alto do monte da Revelação, da
Missão e da Comunhão – da Transfiguração à Ressurreição, mas passando pela via
da Cruz rumo à Missão e à Comunhão.
Por fim, há que entender a ordem de Jesus de “não
contarem (diêgéomai) a ninguém o que viram senão quando o Filho do Homem
ressuscitar dos mortos” (Mc
9,9) como a inibição de
desligar a transfiguração da ressurreição e da verdadeira missão messiânica. Depois,
temos que aguardar a força do Alto para testemunharmos, com força e por todo o
mundo, que a Jesus Deus Pai O Ressuscitou e O Exaltou à sua direita. Importa,
pois, que não falemos antes do tempo, como somos tentados a fazer, mas que seja
o Espírito Santo a falar em nós e por nós. Na verdade, Jesus adverte-nos de
que, ao sermos conduzidos e entregues aos chefes e seus verdugos, não nos
devemos preocupar com o que vamos falar (laléô), mas o que nos for dado (dothê: conjuntivo aoristo passivo de dídômi)
nessa hora. Ou seja, não seremos nós quem fala, mas o Espírito Santo (cf Mc 13,11). Como ensina Dom António Couto, falar,
com o verbo laléô, “é linguagem de revelação e
ultrapassa os níveis da nossa competência”.
***
Figura antecipada no tempo da lição da revelação transfiguradora
vem a cena de Abraão e Isaac, que iam juntos (Gn 22,1-18). Abraão é vencedor da prova da posse idolátrica que se nos
apega e a que nós nos apegamos. Relativamente a Abraão, o narrador chama a
Isaac “seu” filho (Gn
22,3.6.9.10.13), e Abraão
diz para Isaac “meu” filho (Gn 22,7.8). Isaac
é o filho da promessa, um dom, que não se retém. Segundo o anjo do Senhor,
Abraão passa a prova justamente porque não reteve o seu filho único longe de
Deus (Gn 22,12.16). Deu-o a Deus e deu-se a Deus na sua
paternidade, “fazendo subir em holocausto”, não um cordeiro (Gn 22,7-8), mas um carneiro (Gn 22,13). Neste episódio, podemos compreender que, em vez de sacrificar Isaac,
Abraão sacrificará a vontade de o possuir como sua propriedade. Assim, Abraão é
o anti-Adam. Foi libertado das amarras da posse
para poder estar disponível para seguir as ordens divinas, ser o depositário da
Promessa divina e ser imagem de Deus Pai que também não reteve para Si o seu
Filho único, mas o doou em redenção da multidão criando a enorme família
humana, filha da promessa divina e da liberdade que só Deus sabe conceder.
Testemunhas da susodita libertação abraâmica são os
dois servos depositários do dizer de Abraão: “Vamos (eu e o
menino) lá acima adorar e voltaremos para vós” (Gn
22,5). E, após a ação de
adoração lá em cima, o narrador dirá: “Voltou Abraão para os servos” (Gn 22,19). São, enfim, testemunhas da subida de
Abraão e Isaac e do regresso apenas de Abraão – lição abnegação de Abraão e de
inteira liberdade do filho.
Por outro lado, o monte do holocausto do carneiro em
vez de Isaac mostra que a sociedade humana tem de zelar pela vida humana,
contra o costume de oferecer aos deuses e a Deus, como se o nosso Deus gostasse
disso, vítimas humanas em sacrifício. Este zelo pela vida humana veiculado pelo
anjo do Senhor faz de Abrão antiCaim,
cuidador do filho, do irmão, do próximo. A partir de Abraão, não é lícito matar
fazer violência, gerar a guerra em nome de Deus.
A pari, a seguir a Cristo e com Ele, Paulo,
na Carta aos Romanos (Rm
8,31-34), fala-nos do
desígnio de Deus – “Deus entregou o seu
Filho por nós” (Rm
8,32) – anunciado no
Antigo Testamento, realizado em Cristo, batizado, confirmado e entregue para a
Morte gloriosa em que nós fomos batizados e confirmados com o Espírito Santo e
com o fogo. E foi‑nos dado a conhecer desígnio ou mistério (Rm 16,25‑26) de Deus anunciado, realizado e dado a conhecer, sendo nossa missão
filial batismal proclamá‑lo e testemunhá‑lo como o Apóstolo o proclamou e testemunhou
perante todos, judeus e gregos, os de perto e dos de longe.
***
Em suma, a Transfiguração em tom quaresmal diz-nos
quem é Jesus e quem seremos nós. Para tanto, teremos de escutar a voz do Pai,
vinda do Céu ou da nuvem, no rio ou no monte, e escutar o Filho, o Amado. Porém,
mais do que escutá-Lo; é preciso libertarmo-nos dos critérios mundanais,
segui-Lo e aceitar a cruz para almejar e viver a ressurreição transfiguradora. Depois,
seremos testemunhas e apóstolos capacitados para a entrada em comunhão com Pai
pelo Filho no Espírito, em rede com todos os irmãos e irmãs, na grande faina da
pesca de Deus.
2021.03.01
– Louro de Carvalho
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