O segmento discursivo em epígrafe remata a perícopa do
4.º Evangelho (Jo 2,13-25) tomada para a Liturgia da Palavra da
Missa do 4.º domingo da Quaresma no Ano B, marcando a postura de Jesus sobre a
reação dos judeus ao desafio que lhes fez sobre a destruição “deste Santuário” (naós) e a subsequente reedificação em três
dias.
Porém, atendendo a que o Cónego Toni Vítor de Sousa,
pároco do Coração de Jesus no Funchal, chamou a atenção para o facto de no 1.º
domingo nos ter sido apresentada em 1.ª leitura a aliança (global) de Deus com Noé, no 2.º domingo a aliança (universalíssima) com Abraão, o contexto
histórico-bíblico que move o Papa No Iraque, e agora a aliança (particular, mas concreta e exemplar) com o Povo de Israel, há que fazer
uma visita ao Decálogo entregue por Deus ao Povo através de Moisés. Aliás, o
Cardeal Patriarca de Lisboa sugeriu o exame de consciência através dos
mandamentos que aprendemos na catequese, que são a atualização do Código da
Aliança plasmada no livro do Êxodo e no do Deuteronómio.
O conteúdo do texto proposto como 1.ª leitura (Ex
20,1-17) insere-se
no conjunto de tradições que referem a Aliança entre Javé e Israel (cf Ex 19-40) celebrada num monte, algures no
deserto do Sinai, o monte onde Javé Se revelara a Moisés. E uma tradição cristã
(século IV d. C.) identifica o monte com o Gebel Musah
(“monte de Moisés”), de 2244 m de altitude, situado a
sul da península sinaítica, o qual é, ainda hoje, um lugar de peregrinação para
judeus e cristãos.
A Aliança do Sinai é apresentada pelos catequistas de Israel
através duma estrutura literária semelhante aos formulários jurídicos do mundo
antigo para os acordos políticos entre duas partes, nomeadamente entre um
senhor e o seu vassalo, em que o senhor, recordando ao vassalo a sua ação,
generosidade, e benefícios, formulava as cláusulas da Aliança, isto é, o
conjunto das obrigações que o vassalo assumia para com o seu senhor.
De entre as cláusulas da Aliança do Sinai, sobressai um bloco
especial com as dez obrigações fundamentais que Israel assume ante o seu Deus: o
decálogo ou os dez mandamentos ou as “dez palavras”. Este é o coração da
Aliança que define o caminho que Israel deve percorrer para ser o Povo de Deus.
É uma lista irregular, com mandamentos enunciados com brevidade e secura, sem
nenhuma justificação (“não
matarás”; “não roubarás”)
e outros desenvolvidos por um comentário explicativo (cf Ex 20,4.17), uma motivação (cf Ex 20,7) ou uma promessa (cf Ex 20,12). Deus fala ora em 1.ª pessoa (cf Ex 20,2.5-6), ora em 3.ª pessoa (cf Ex 20,7.11.12). Dois preceitos vêm formulados pela
positiva (cf Ex 20,8:
“lembra-te”; Ex 20,12: “honra”), ao passo que os outros são formulados pela negativa (“não matarás”; “não roubarás”), o que significa que o decálogo
sofreu, ao longo do tempo, por motivos pastorais e catequéticos, retoques,
acrescentos, comentários, modificações.
Moisés teve relação com estas leis que estão no centro da Aliança,
mas o texto atual, que não é de Moisés, é muito trabalhado e sofreu muitas
elaborações ao longo dos séculos. Ainda que estes preceitos façam lembrar
algumas proibições encontradas na Babilónia e no Egito, ocupam um lugar à parte
no conjunto dos formulários dos povos do Crescente Fértil, pois constituem um
núcleo legal equilibrado e despido do que nos outros povos é magia,
superstição, tabu.
O decálogo abrange os dois vetores fundamentais da vida humana:
a relação do homem com Deus e a relação de cada homem com o seu próximo. Assim,
os 4 primeiros preceitos referem-se à relação de Israel com Deus (vv 3-11). Dois são totalmente originais – o
que obriga a não ter outro Deus, outro Senhor, outra referência; e o que proíbe
construir imagens de Deus –, pois não há paralelo em nenhuma das religiões
antigas. Nestes termos, o dado fulcral é Javé como a referência fundamental da
vida do Povo, o centro à volta do qual gravita toda a vida de Israel. É preciso
que Israel saiba que só em Deus está a vida e a salvação (v. 3: “não terás mais nenhum deus”), reconheça a absoluta transcendência
do Senhor (que não pode
ser reproduzida em criatura feita pelo homem), não se prostrando ante obras criadas pela mão do
homem (v. 4: não farás
para ti qualquer imagem esculpida… não hás de prostrar-te diante delas, nem
prestar-lhes culto”), perceba
que não pode manipular Deus e usá-Lo em prol de planos e interesses puramente
humanos (v. 7: “não hás de
invocar o nome do Senhor teu Deus em apoio do que não tem fundamento”) e assuma que só o Senhor é o dono do
tempo e reserve espaço para o encontro e o louvor do Senhor (v. 8: “hás de lembrar-te do dia de
sábado para o santificares”). Já os outros 6 preceitos, que abarcam a relação comunitária (vv. 12-17) tentando inculcar o respeito
absoluto pelo próximo – vida, bens e direitos na comunidade, constituem a magna
carta da liberdade, justiça e respeito pela pessoa e pela sua dignidade,
devendo cada membro da comunidade reconhecer a sua dependência dos outros e
aceitar a pertença a uma família e cultura (v. 12: “honra teu pai e tua mãe”), respeitar a vida do irmão (v. 13: “não matarás”), defender a família e respeitar a
relação familiar (v. 14:
“não cometerás adultério”) respeitar os bens e a liberdade dos outros membros da comunidade (v. 15: “não tomarás para ti” –
pessoas ou a coisas, podendo traduzir-se por “não roubarás” ou por “não
privarás de liberdade o teu irmão, não o reduzindo à escravidão”), respeitar o bom nome e fama do
irmão, sempre testemunhando sempre com verdade ante o tribunal e garantindo a
fiabilidade da justiça como base da correta ordem social (v. 16: “não levantarás falso
testemunho contra o teu próximo”) e respeitar os “bens básicos” que asseguram ao irmão a
subsistência e procuram evitar que o coração dos membros da comunidade do Povo
de Deus seja dominado pela cobiça e pelos instintos egoístas (v. 17: “não cobiçarás a casa do teu
próximo, não desejarás a mulher dele, nem o criado ou a criada, o boi ou o
jumento, nem coisa alguma que lhe pertença”).
Porque exige Deus a fidelidade do Povo a estas orientações de
vida? A resposta está na cimalha do decálogo: “Eu sou o Senhor, teu Deus, que te fiz sair da terra do Egito, da casa
da servidão” (v. 2). Na verdade, o Deus libertador está
interessado em que Israel se liberte definitivamente da escravidão e se torne
livre e feliz. E os “mandamentos” são um contributo de Deus para isso. Ao pôr estes
marcos no itinerário do Povo, Deus não lhe cerceia a liberdade, antes lhe
propõe uma senda de liberdade e vida. Pretende ajudá-lo a deixar a escravidão
do egoísmo, autossuficiência, injustiça, comodismo, paixões, cobiça e
exploração. Os mandamentos são prova do amor de Deus a Israel e indicam-lhe a
via para ser feliz. O Povo, aceitando aquelas indicações e vivendo de acordo
com elas, responderá ao amor de Deus, será feliz e constituir-se-á como exemplo
para os outros povos. Não deve fechar-se num nacionalismo particularista nem
expor-se à idolatria e à corrupção, mas seguir a ânsia divina da expansão e da
comunhão universal, porque Deus é amor e o amor é difusivo e expansivo: não tem
fronteiras nem restrições.
Assim, na ótica de Dom António Couto, esta página
serve-nos hoje a Palavra de Deus que alimenta a vida nova dos seus filhos. “Estas palavras”, que disse Deus (v.1), constituem um conjunto de 10 mandamentos que cobrem
todo o âmbito da ação moral. E o prelado lamecense recomenda que se privilegie
o nome “mandamento” em vez de “lei”, pois “o mandamento supõe um rosto, neste
caso o rosto de Deus, um Deus com rosto, que nos chama a cada um e ama e ordena e
suplica, e nos institui”,
enquanto “a lei supõe um legislador sem rosto, que nada tem a ver com o Deus do
Livro do Êxodo e da Escritura Santa”. Saídas diretamente da boca de
Deus, “estas
palavras” são
o alimento de que deve nutrir‑se o Povo santo de Deus do Antigo Testamento (AT) (cf
DT 8,3) e o Povo dos
batizados (Mt 4,4; Lc 4,4) que, “à luz da Ressurreição, faz
anamnese da vida histórica de Jesus” e crê na Palavra da Escritura (Antigo Testamento) e do Evangelho – “que há que guardar
sábia e amorosamente, pois ela é a nossa vida” (cf Dt 32,47).
Entretanto,
muitas vezes o Povo caía na tentação da idolatria atraído pela magia dos povos
vizinhos, os reis privilegiavam alianças com os de outros povos e os
mandamentos cifravam-se nas práticas puramente exteriores. A cada passo os
profetas intervinham para chamar a atenção para a necessidade de purificação, de
voltar para o único Deus e de interiorizar a aliança e os mandamentos enquanto
conforto da alma e liberdade do espírito. O
profeta Zacarias liga explicitamente o “dia do Senhor” (o dia em que Deus vai intervir na história e construir um
mundo novo, através do Messias) com a purificação do culto e a eliminação dos comerciantes
que estão “no Templo do Senhor do universo” (cf Zc
14,21).
E assim se assume a leitura da passagem do Evangelho
para esta dominga como um ato, embora duro, de expurgação da comercialização do
Templo por parte de Jesus. Expulsar os vendilhões do Templo a azorrague e
derrubar as mesas dos cambistas significa purificar o Templo e purificar a vida
das pessoas e restituir-lhes o dom da oração. E mais do que isso é olhar para
Jesus como Tempo novo e Templo novo, novo espaço relacional, caminho novo
aberto para o Pai, e passar da Páscoa judaica à Páscoa de Jesus, do Templo
antigo de pedra ao Santuário novo de carne, tendo de permeio o caminho da memória
que começam a fazer os discípulos.
Na verdade,
estando próxima a Páscoa dos judeus, Jesus subiu (anébê) a Jerusalém. Encontrando no Templo (en
tôi hierôi) os
vendedores de bois, ovelhas e pombas, e os cambistas sentados, fez um azorrague
de cordas e expulsou todos do Templo, as ovelhas e os bois, bem como os
cambistas, espalhou as moedas, derrubou as mesas e disse aos que vendiam as
pombas: “Tirai isto daqui! Não façais da casa
do meu Pai (tòn oîkon toû patrós mou) casa de comércio” (oîkon emporíou). E
os discípulos recordaram-se do que está escrito: “O zelo da tua casa (hô dzêlos toû oíkou sou) me devorará” (kataphágetaí
me).
Então os judeus perguntaram-lhe que sinal lhes dava de
que podia fazer aquilo. E Ele desafiou-os: “Destruí este santuário (tòn
naón toûton) e em três dias o levantarei” (en trisìn
hêméris egerô
autón).
Repare-se que o evangelista, para o Templo de pedra, emprega
o termo “hierós” e põe na boca de
Jesus, para a mesma realidade, o termo “oíkos”
(casa), mas para o templo ou santuário para
o qual Jesus desafia os judeus, emprega o termo “naós”.
Os judeus replicaram: “Em 46 anos foi edificado este
santuário (naós),
e tu em três dias o levantarás (egereîs)?”. Porém, o evangelista esclarece que Jesus falava do
santuário do seu corpo (toû naoû toû sômatos autoû). E os discípulos, quando O viram ressuscitado dos mortos (êgérthê), recordaram-se do
que Ele que tinha dito e acreditaram na Escritura e na palavra que Ele disse.
A cena é
contextuada e datada. O lugar é Jerusalém e o Templo. O tempo é a Páscoa. A
festa é, na tradição bíblica, um encontro marcado com Deus e com os outros,
pelo que é sempre um espaço de alegria, filialidade e fraternidade. E, se a
festa é de peregrinação, como é a Páscoa (as outras duas são a do Pentecostes e a das Tendas), então a alegria e os sentimentos
concomitantes são ainda mais intensos, pois, como ensina Dom António Couto, a
palavra hebraica para festa de peregrinação é hag (plural hagîm), que remete para o verbo hag (dançar) e deriva de hûg, que significa “círculo” (circular – andar em círculo – é viver). Por isso, festa de peregrinação é
familiar, encontrista, alegre, musical, dançante, vital (lareira e roda em caminho). Encontro, filialidade, fraternidade
são marcas de Jesus: diz casa (oíkos) e casa do meu Pai, em vez de Templo de pedra (hierós), sendo a casa o lugar do encontro e da
intimidade, não de coisas, mercado, consumo.
O gesto que o Evangelho nos relata deve entender-se neste
enquadramento. Quando Jesus pega no azorrague, expulsa do Templo os vendedores,
deita por terra os trocos dos banqueiros e derruba as mesas dos cambistas está
a revelar-Se como “o Messias” e a anunciar que chegaram os novos tempos, os
tempos messiânicos. E, ao expulsar também as ovelhas e os bois que serviam para
os ritos sacrificiais que Israel oferecia a Javé (João
é o único dos evangelistas a referir este pormenor), mostra que não
propõe só a reforma, mas a abolição, do culto de Jerusalém, que era algo sem
sentido, pois, ao transformarem a casa de Deus num mercado, os líderes judaicos
tinham suprimido a presença de Deus. Além disso, o culto no Templo era nefasto:
em nome de Deus, criava exploração, miséria, injustiça e, por isso, em lugar de
potenciar a relação do homem com Deus, afastava o homem de Deus. Jesus, o
Filho, com a autoridade que Lhe vem do Pai, diz “basta” a uma mentira com a
qual Deus não pode continuar a pactuar.
Os líderes, indignados, perguntam pelas credenciais que lhe permitem tão
radical atitude.
Recorrendo à figura literária do
“mal-entendido”, Jesus desafia-os a destruir o Templo, que Ele o reconstruirá
em 3 dias. Eles vão destruir, não o Templo, mas o corpo de Jesus. E não O
conseguem eliminar porque Ele ressuscita. E a ressurreição garante que Jesus
vem de Deus e que a sua atuação tem o selo de garantia de Deus.
Se o Templo como casa continua a ser necessário para a reunião e a oração
do Povo, todavia, o culto tem de ser em espírito e verdade (vd Jo 4,23.24) e ter como consequência
a atenção perene ao faminto, sedento, nu, peregrino, doente, vulnerável,
descartado e preso (vd Mt 25,31-46).
E São Paulo continua a lição do Mestre sobre a nova Sabedoria
(1Cor 1,22-25).
Enquanto os judeus pedem sinais (Jo 2,18;1Cor
1,22) e os gregos
procuram a sabedoria
deste mundo (1Cor 1,22), os batizados e confirmados,
continuam de olhos postos no único sinal da Cruz Gloriosa, escândalo para os
judeus e loucura para os gentios (tanto um grupo como o outro estavam agarrados à sua verdade), que recusavam a nova Sabedoria de
Deus, qual galvaniza o coração dos verdadeiros discípulos e projeta para a
humanidade todo o ser e missão da Igreja.
Diz o Evangelho:
“Muitos,
ao verem os milagres que fazia, acreditaram no seu nome. Mas Jesus não se fiava
deles, porque os conhecia a todos e não precisava de que Lhe dessem informações
sobre ninguém: Ele bem sabia o que há no homem.”.
Ora, Ele não se fia na fé baseada apenas nos milagres:
é passageira e pode ser fingida ou configurar a paga por um favor. Ele quer a
fé sincera, que venha do coração e dê para persistir.
Não vale a pena tentar enganá-Lo, que Ele bem nos
conhece. E é bom que Jesus nos queira conhecer e não de que Se envergonhe em
nós, porque precisamos de que nos acolha, guie e ampare. Como contrapartida,
quer que O sigamos. E, em vez da malícia, havemos de fazer questão de Lhe
apresentar um coração generoso, disponível e sempre disposto à purificação
redentora. Talvez lá cheguemos com os mandamentos relidos segundo o espírito
dos verdadeiros profetas e, sobretudo, à luz das bem-aventuranças.
Que Ele saiba de facto o que há em nós como homens,
mas que isso seja bom!
2021.03.07
– Louro de Carvalho
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