segunda-feira, 8 de março de 2021

Ele bem sabia o que há no homem

 

O segmento discursivo em epígrafe remata a perícopa do 4.º Evangelho (Jo 2,13-25) tomada para a Liturgia da Palavra da Missa do 4.º domingo da Quaresma no Ano B, marcando a postura de Jesus sobre a reação dos judeus ao desafio que lhes fez sobre a destruição “deste Santuário” (naós) e a subsequente reedificação em três dias.

Porém, atendendo a que o Cónego Toni Vítor de Sousa, pároco do Coração de Jesus no Funchal, chamou a atenção para o facto de no 1.º domingo nos ter sido apresentada em 1.ª leitura a aliança (global) de Deus com Noé, no 2.º domingo a aliança (universalíssima) com Abraão, o contexto histórico-bíblico que move o Papa No Iraque, e agora a aliança (particular, mas concreta e exemplar) com o Povo de Israel, há que fazer uma visita ao Decálogo entregue por Deus ao Povo através de Moisés. Aliás, o Cardeal Patriarca de Lisboa sugeriu o exame de consciência através dos mandamentos que aprendemos na catequese, que são a atualização do Código da Aliança plasmada no livro do Êxodo e no do Deuteronómio.

O conteúdo do texto proposto como 1.ª leitura (Ex 20,1-17) insere-se no conjunto de tradições que referem a Aliança entre Javé e Israel (cf Ex 19-40) celebrada num monte, algures no deserto do Sinai, o monte onde Javé Se revelara a Moisés. E uma tradição cristã (século IV d. C.) identifica o monte com o Gebel Musah (“monte de Moisés”), de 2244 m de altitude, situado a sul da península sinaítica, o qual é, ainda hoje, um lugar de peregrinação para judeus e cristãos.

A Aliança do Sinai é apresentada pelos catequistas de Israel através duma estrutura literária semelhante aos formulários jurídicos do mundo antigo para os acordos políticos entre duas partes, nomeadamente entre um senhor e o seu vassalo, em que o senhor, recordando ao vassalo a sua ação, generosidade, e benefícios, formulava as cláusulas da Aliança, isto é, o conjunto das obrigações que o vassalo assumia para com o seu senhor.

De entre as cláusulas da Aliança do Sinai, sobressai um bloco especial com as dez obrigações fundamentais que Israel assume ante o seu Deus: o decálogo ou os dez mandamentos ou as “dez palavras”. Este é o coração da Aliança que define o caminho que Israel deve percorrer para ser o Povo de Deus. É uma lista irregular, com mandamentos enunciados com brevidade e secura, sem nenhuma justificação (“não matarás”; “não roubarás”) e outros desenvolvidos por um comentário explicativo (cf Ex 20,4.17), uma motivação (cf Ex 20,7) ou uma promessa (cf Ex 20,12). Deus fala ora em 1.ª pessoa (cf Ex 20,2.5-6), ora em 3.ª pessoa (cf Ex 20,7.11.12). Dois preceitos vêm formulados pela positiva (cf Ex 20,8: “lembra-te”; Ex 20,12: “honra”), ao passo que os outros são formulados pela negativa (“não matarás”; “não roubarás”), o que significa que o decálogo sofreu, ao longo do tempo, por motivos pastorais e catequéticos, retoques, acrescentos, comentários, modificações.

Moisés teve relação com estas leis que estão no centro da Aliança, mas o texto atual, que não é de Moisés, é muito trabalhado e sofreu muitas elaborações ao longo dos séculos. Ainda que estes preceitos façam lembrar algumas proibições encontradas na Babilónia e no Egito, ocupam um lugar à parte no conjunto dos formulários dos povos do Crescente Fértil, pois constituem um núcleo legal equilibrado e despido do que nos outros povos é magia, superstição, tabu.

O decálogo abrange os dois vetores fundamentais da vida humana: a relação do homem com Deus e a relação de cada homem com o seu próximo. Assim, os 4 primeiros preceitos referem-se à relação de Israel com Deus (vv 3-11). Dois são totalmente originais – o que obriga a não ter outro Deus, outro Senhor, outra referência; e o que proíbe construir imagens de Deus –, pois não há paralelo em nenhuma das religiões antigas. Nestes termos, o dado fulcral é Javé como a referência fundamental da vida do Povo, o centro à volta do qual gravita toda a vida de Israel. É preciso que Israel saiba que só em Deus está a vida e a salvação (v. 3: “não terás mais nenhum deus”), reconheça a absoluta transcendência do Senhor (que não pode ser reproduzida em criatura feita pelo homem), não se prostrando ante obras criadas pela mão do homem (v. 4: não farás para ti qualquer imagem esculpida… não hás de prostrar-te diante delas, nem prestar-lhes culto”), perceba que não pode manipular Deus e usá-Lo em prol de planos e interesses puramente humanos (v. 7: “não hás de invocar o nome do Senhor teu Deus em apoio do que não tem fundamento”) e assuma que só o Senhor é o dono do tempo e reserve espaço para o encontro e o louvor do Senhor (v. 8: “hás de lembrar-te do dia de sábado para o santificares”). Já os outros 6 preceitos, que abarcam a relação comunitária (vv. 12-17) tentando inculcar o respeito absoluto pelo próximo – vida, bens e direitos na comunidade, constituem a magna carta da liberdade, justiça e respeito pela pessoa e pela sua dignidade, devendo cada membro da comunidade reconhecer a sua dependência dos outros e aceitar a pertença a uma família e cultura (v. 12: “honra teu pai e tua mãe”), respeitar a vida do irmão (v. 13: “não matarás”), defender a família e respeitar a relação familiar (v. 14: “não cometerás adultério”) respeitar os bens e a liberdade dos outros membros da comunidade (v. 15: “não tomarás para ti” – pessoas ou a coisas, podendo traduzir-se por “não roubarás” ou por “não privarás de liberdade o teu irmão, não o reduzindo à escravidão”), respeitar o bom nome e fama do irmão, sempre testemunhando sempre com verdade ante o tribunal e garantindo a fiabilidade da justiça como base da correta ordem social (v. 16: “não levantarás falso testemunho contra o teu próximo”) e respeitar os “bens básicos” que asseguram ao irmão a subsistência e procuram evitar que o coração dos membros da comunidade do Povo de Deus seja dominado pela cobiça e pelos instintos egoístas (v. 17: “não cobiçarás a casa do teu próximo, não desejarás a mulher dele, nem o criado ou a criada, o boi ou o jumento, nem coisa alguma que lhe pertença”).

Porque exige Deus a fidelidade do Povo a estas orientações de vida? A resposta está na cimalha do decálogo: “Eu sou o Senhor, teu Deus, que te fiz sair da terra do Egito, da casa da servidão(v. 2). Na verdade, o Deus libertador está interessado em que Israel se liberte definitivamente da escravidão e se torne livre e feliz. E os “mandamentos” são um contributo de Deus para isso. Ao pôr estes marcos no itinerário do Povo, Deus não lhe cerceia a liberdade, antes lhe propõe uma senda de liberdade e vida. Pretende ajudá-lo a deixar a escravidão do egoísmo, autossuficiência, injustiça, comodismo, paixões, cobiça e exploração. Os mandamentos são prova do amor de Deus a Israel e indicam-lhe a via para ser feliz. O Povo, aceitando aquelas indicações e vivendo de acordo com elas, responderá ao amor de Deus, será feliz e constituir-se-á como exemplo para os outros povos. Não deve fechar-se num nacionalismo particularista nem expor-se à idolatria e à corrupção, mas seguir a ânsia divina da expansão e da comunhão universal, porque Deus é amor e o amor é difusivo e expansivo: não tem fronteiras nem restrições.

Assim, na ótica de Dom António Couto, esta página serve-nos hoje a Palavra de Deus que alimenta a vida nova dos seus filhos. “Estas palavras”, que disse Deus (v.1), constituem um con­junto de 10 mandamentos que cobrem todo o âmbito da ação moral. E o prelado lamecense recomenda que se privilegie o nome “mandamento” em vez de “lei”, pois “o mandamento supõe um rosto, neste caso o rosto de Deus, um Deus com rosto, que nos chama a cada um e ama e ordena e suplica, e nos institui”, enquanto “a lei supõe um legislador sem rosto, que nada tem a ver com o Deus do Livro do Êxodo e da Escritura Santa”. Saí­das diretamente da boca de Deus, “estas palavras” são o alimento de que deve nutrir‑se o Povo santo de Deus do Antigo Testamento (AT) (cf DT 8,3) e o Povo dos batizados (Mt 4,4; Lc 4,4) que, “à luz da Ressurreição, faz anamnese da vida his­tórica de Jesus” e crê na Palavra da Escritura (Antigo Testamento) e do Evangelho – “que há que guardar sábia e amorosa­mente, pois ela é a nossa vida” (cf Dt 32,47).

Entretanto, muitas vezes o Povo caía na tentação da idolatria atraído pela magia dos povos vizinhos, os reis privilegiavam alianças com os de outros povos e os mandamentos cifravam-se nas práticas puramente exteriores. A cada passo os profetas intervinham para chamar a atenção para a necessidade de purificação, de voltar para o único Deus e de interiorizar a aliança e os mandamentos enquanto conforto da alma e liberdade do espírito. O profeta Zacarias liga explicitamente o “dia do Senhor” (o dia em que Deus vai intervir na história e construir um mundo novo, através do Messias) com a purificação do culto e a eliminação dos comerciantes que estão “no Templo do Senhor do universo” (cf Zc 14,21).           

E assim se assume a leitura da passagem do Evangelho para esta dominga como um ato, embora duro, de expurgação da comercialização do Templo por parte de Jesus. Expulsar os vendilhões do Templo a azorrague e derrubar as mesas dos cambistas significa purificar o Templo e purificar a vida das pessoas e restituir-lhes o dom da oração. E mais do que isso é olhar para Jesus como Tempo novo e Templo novo, novo espaço relacional, caminho novo aberto para o Pai, e passar da Páscoa judaica à Páscoa de Jesus, do Templo antigo de pedra ao Santuário novo de carne, tendo de permeio o caminho da memória que começam a fazer os discípulos.

Na verdade, estando próxima a Páscoa dos judeus, Jesus subiu (anébê) a Jerusalém. Encontrando no Templo (en tôi hierôi) os vendedores de bois, ovelhas e pombas, e os cambistas sentados, fez um azorrague de cordas e expulsou todos do Templo, as ovelhas e os bois, bem como os cambistas, espalhou as moedas, derrubou as mesas e disse aos que vendiam as pombas: “Tirai isto daqui! Não façais da casa do meu Pai (tòn oîkon toû patrós mou) casa de comércio(oîkon emporíou). E os discípulos recordaram-se do que está escrito: “O zelo da tua casa (hô dzêlos toû oíkou sou) me devorará(kataphágetaí me).

Então os judeus perguntaram-lhe que sinal lhes dava de que podia fazer aquilo. E Ele desafiou-os: “Destruí este santuário (tòn naón toûton) e em três dias o levantarei” (en trisìn hêméris egerô autón)

Repare-se que o evangelista, para o Templo de pedra, emprega o termo “hierós” e põe na boca de Jesus, para a mesma realidade, o termo “oíkos(casa), mas para o templo ou santuário para o qual Jesus desafia os judeus, emprega o termo “naós”.

Os judeus replicaram: “Em 46 anos foi edificado este santuário (naós), e tu em três dias o levantarás (egereîs)?”. Porém, o evangelista esclarece que Jesus falava do santuário do seu corpo (toû naoû toû sômatos autoû). E os discípulos, quando O viram ressuscitado dos mortos (êgérthê), recordaram-se do que Ele que tinha dito e acreditaram na Escritura e na palavra que Ele disse.

A cena é contextuada e datada. O lugar é Jerusalém e o Templo. O tempo é a Páscoa. A festa é, na tradição bíblica, um encontro marcado com Deus e com os outros, pelo que é sempre um espaço de alegria, filialidade e fraternidade. E, se a festa é de peregrinação, como é a Páscoa (as outras duas são a do Pentecostes e a das Tendas), então a alegria e os sentimentos concomitantes são ainda mais intensos, pois, como ensina Dom António Couto, a palavra hebraica para festa de peregrinação é hag (plural hagîm), que remete para o verbo hag (dançar) e deriva de hûg, que significa “círculo” (circular – andar em círculo – é viver). Por isso, festa de peregrinação é familiar, encontrista, alegre, musical, dançante, vital (lareira e roda em caminho). Encontro, filialidade, fraternidade são marcas de Jesus: diz casa (oíkos) e casa do meu Pai, em vez de Templo de pedra (hierós), sendo a casa o lugar do encontro e da intimidade, não de coisas, mercado, consumo.

O gesto que o Evangelho nos relata deve entender-se neste enquadramento. Quando Jesus pega no azorrague, expulsa do Templo os vendedores, deita por terra os trocos dos banqueiros e derruba as mesas dos cambistas está a revelar-Se como “o Messias” e a anunciar que chegaram os novos tempos, os tempos messiânicos. E, ao expulsar também as ovelhas e os bois que serviam para os ritos sacrificiais que Israel oferecia a Javé (João é o único dos evangelistas a referir este pormenor), mostra que não propõe só a reforma, mas a abolição, do culto de Jerusalém, que era algo sem sentido, pois, ao transformarem a casa de Deus num mercado, os líderes judaicos tinham suprimido a presença de Deus. Além disso, o culto no Templo era nefasto: em nome de Deus, criava exploração, miséria, injustiça e, por isso, em lugar de potenciar a relação do homem com Deus, afastava o homem de Deus. Jesus, o Filho, com a autoridade que Lhe vem do Pai, diz “basta” a uma mentira com a qual Deus não pode continuar a pactuar.

Os líderes, indignados, perguntam pelas credenciais que lhe permitem tão radical atitude.
Recorrendo à figura literária do “mal-entendido”, Jesus desafia-os a destruir o Templo, que Ele o reconstruirá em 3 dias. Eles vão destruir, não o Templo, mas o corpo de Jesus. E não O conseguem eliminar porque Ele ressuscita. E a ressurreição garante que Jesus vem de Deus e que a sua atuação tem o selo de garantia de Deus.

Se o Templo como casa continua a ser necessário para a reunião e a oração do Povo, todavia, o culto tem de ser em espírito e verdade (vd Jo 4,23.24) e ter como consequência a atenção perene ao faminto, sedento, nu, peregrino, doente, vulnerável, descartado e preso (vd Mt 25,31-46).   

E São Paulo continua a lição do Mestre sobre a nova Sabedoria (1Cor 1,22-25). Enquanto os judeus pedem sinais (Jo 2,18;1Cor 1,22) e os gregos procuram a sabedoria des­te mundo (1Cor 1,22), os batizados e confirmados, continuam de olhos postos no único sinal da Cruz Gloriosa, escândalo para os judeus e loucura para os gentios (tanto um grupo como o outro estavam agarrados à sua verdade), que recusavam a nova Sabedoria de Deus, qual galvaniza o coração dos verdadeiros discípulos e projeta para a humanidade todo o ser e missão da Igreja.

Diz o Evangelho:

Muitos, ao verem os milagres que fazia, acreditaram no seu nome. Mas Jesus não se fiava deles, porque os conhecia a todos e não precisava de que Lhe dessem informações sobre ninguém: Ele bem sabia o que há no homem.”.

Ora, Ele não se fia na fé baseada apenas nos milagres: é passageira e pode ser fingida ou configurar a paga por um favor. Ele quer a fé sincera, que venha do coração e dê para persistir.

Não vale a pena tentar enganá-Lo, que Ele bem nos conhece. E é bom que Jesus nos queira conhecer e não de que Se envergonhe em nós, porque precisamos de que nos acolha, guie e ampare. Como contrapartida, quer que O sigamos. E, em vez da malícia, havemos de fazer questão de Lhe apresentar um coração generoso, disponível e sempre disposto à purificação redentora. Talvez lá cheguemos com os mandamentos relidos segundo o espírito dos verdadeiros profetas e, sobretudo, à luz das bem-aventuranças.

Que Ele saiba de facto o que há em nós como homens, mas que isso seja bom!

2021.03.07 – Louro de Carvalho

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