quarta-feira, 24 de março de 2021

Afinal, o Novo Banco resultou duma fantasia financeira

 

Aquando da resolução do BES a 3 de agosto de 2014, de que resultou o Novo Banco (NB) como banco bom, contra o banco mau que foi criado mantendo-se a designação de Banco Espírito Santo (para religiosos puritanos, uma blasfémia), o Fundo de Resolução (FdR), o seu único acionista, capitalizou o NB com 4,9 mil milhões de euros (3,9 mil milhões emprestados pelos cofres públicos), montante que o Banco de Portugal (BdP), que determinou a resolução, considerou suficiente, ao invés do Banco Central Europeu (BCE), que alertava para a insuficiência.

Agora, foi referido à comissão parlamentar de inquérito (CPI) que aquele montante não dava folga para enfrentar os problemas futuros – tese que Vítor Bento, o primeiro presidente do NB, defende há anos. Porém, na sua audição parlamentar, o agora presidente do conselho de administração da SIBS (gestora do Multibanco) referiu que hoje é mais fácil ter essa certeza do que então, afirmando que, na altura, havia “um fantasma” e uma “ilusão” a toldar o momento.

Depois de reiteradamente questionado sobre os problemas do balanço inicial do NB, disse aos deputados que “o capital dos bancos em si é uma variável que tem uma componente de incerteza muito grande”. E defendeu que “o capital dotado estava demasiado à pele”, o que se tornou negativo para os ratings do banco e tinha influência negativa na avaliação das contrapartes, do risco que o banco representava, nomeadamente, nas linhas de mercado. Com tais incertezas, não se restabeleceu com suficiência a confiança no banco, que perdia cada vez mais recursos, aliás como explanara na semana anterior o administrador financeiro de então, João Moreira Rato.

Também referiu Vítor Bento que os administradores não foram “envolvidos nas necessidades de capital”. E, sem entrar nas oposições que marcaram intervenções anteriores contra o BdP quando liderado por Carlos Costa (a relação foi tensa porque o ex-governador queria uma venda rápida do NB e Bento precisava de 5 anos para o efeito), disse que, a seguir à resolução, a administração se apercebera do balanço do banco recebido e da fragilidade do capital.

A insuficiência de capital foi visível ao longo dos anos seguintes e, segundo as estimativas do agora presidente não executivo da SIBS, houve várias medidas, como a anulação de algumas provisões (incluindo a linha de crédito ao BES Angola) e a transferência de dívida, no fim de 2015 – medidas que totalizaram quase 3,5 mil milhões em dois anos e que permitiram compensar as falhas de capital, deixando os rácios de capital deixassem de estar em mínimos.

Os responsáveis do BdP à data dos factos disseram que o dinheiro era suficiente para assegurar os rácios, mas que teriam preferido dar folga superior. Todavia, tal intenção foi travada em reunião do Ministério das Finanças de Maria Luís Albuquerque com a Comissão Europeia. No entanto, Bento lembrou que não era tão impossível discutir com as autoridades europeias novas condições para o NB, pois até o processo de capitalização da CGD, em 2016, que era tido como impossível quando Centeno era Ministro das Finanças, tornou-se possível com um projeto credível. O Executivo PSD/CDS que sempre apontou a dificuldade de negociar com Bruxelas e a exigência de reestruturação que se seguiria.

E, segundo Vítor Bento, o problema em torno do BES e do NB resultou dum contexto, o do “fantasma” e da “ilusão” – duas condicionantes que marcaram as escolhas feitas. O fantasma, era o BPN, nacionalizado em 2008 e só reprivatizado em 2012 na venda por 40 milhões, com perdas que se temiam que superassem os 5 mil milhões para o erário; e a ilusão era o valor do banco, acreditando o BdP que venderia o NB por cerca de 4,9 mil milhões. Tendo saído do NB pouco mais de um mês após a sua constituição, decidiu não responder em público à campanha de descredibilização de que foi alvo, “para não acrescentar problemas aos que já existiam”, pois não quis criar problemas ao sucessor, Eduardo Stock da Cunha, nem ao BdP. Porém, deixa no ar a questão de não se saber porque não foi vendido o NB em 2015 e que valor que estava em cima da mesa então. Com efeito, tanto valeria tê-lo vendido por 0 euros em 2015 como em 2017!

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A CPI em curso às perdas causadas pelo banco classificado como “bom” continua a recuar no tempo e a discutir que entidades (ou entidade) foram determinantes para definir o dinheiro que o banco recebeu à nascença, quando a administração já considerava necessária a entrada de mais fundos, sendo isso o que pretendia fazer. Porém, o BdP quis avançar para a venda imediata que, na prática, implicou a injeção de capital pelo FdR de pelo menos mais 3 mil milhões daquele acionista nos anos seguintes.

João Moreira Rato, o primeiro administrador financeiro do NB e ora presidente da administração do Banco CTT, garantiu que não esteve envolvido na definição do montante de capitalização inicial.

Contou que foram atempadamente comunicadas ao BdP as preocupações da administração sobre a suficiência do capital para fazer face às dificuldades que pudessem advir nos meses que se iam seguir. E, não estando envolvidos os administradores na definição do capital de arranque do NB, não sabiam quais os critérios que determinaram o montante de 4,9 mil milhões, uma vez que “o processo de resolução e os detalhes eram vagos”. Com a capitalização inicial, os rácios, que medem a solidez financeira e capacidade de fazer face aos riscos, ficavam em torno de 7% e 8%, níveis mínimos exigidos pelo supervisor, mas tais requisitos cresceriam com as exigências de regulação e supervisão, pelo que o banco precisaria de capital fresco. E, na altura, o supervisor liderado por Carlos Costa nem concordou, nem discordou em relação à necessidade de mais capital: “recebeu a comunicação e não houve resposta”.

O antigo CFO esclareceu que “os riscos que o banco tinha na altura eram conhecidos, não só nas carteiras de crédito”, mas também na posição na Portugal Telecom, em que havia uma posição cambial em dólares, com vários fatores de risco. E o BdP sabia que podia não haver capital suficiente para lidar com os problemas “de algumas exposições que estavam no balanço”.

Os responsáveis do BdP já ouvidos na CPI (Pedro Duarte Neves e Luís Costa Ferreira) também já disseram que preferiam que o banco tivesse recebido mais 500 milhões de euros aquando da sua constituição, mas que saíram duma reunião do Ministério das Finanças, onde estava presente a Comissão Europeia, com a indicação de que essa almofada não seria colocada no banco.

Em 2014, a solução seria recapitalizar o banco através de aumentos graduais de capital com recurso a investidores privados, nunca tendo sido discutida a entrada de mais dinheiro público no NB. O BES, sob Ricardo Salgado, tinha sido dos poucos bancos que recorreu à linha da troika direcionada para os bancos.

A decisão de resolução apanhou de surpresa o BES. Vítor Bento, o último presidente daquele banco, diz que, se soubesse o que iria encontrar, não teria aceitado a tarefa. Na verdade, a entrada na nova administração para o BES a substituir a equipa de Ricardo Salgado era para ser após a aprovação das contas do semestre. Porém, a entrada foi antecipada e teve conhecimento das contas apenas no final de junho. E o mesmo Vítor Bento relembrou aos deputados aspetos que tinha já contado na comissão de inquérito ao BES, em 2014 e 2015: o BdP, dias antes de anunciar a resolução, deu oportunidade a que procurasse capital junto de privados, tendo o CEO respondido que a opção era impossível de pôr em prática; o Governo de então mostrou indisponibilidade de o BES vir a receber dinheiro da linha de capitalização pública que ficara dos tempos da troika (depois de Salgado recusar, durante anos, precisar daquele dinheiro).

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João Costa Pinto, ex-presidente do conselho de auditoria do Banco de Portugal e da Comissão que produziu o “Relatório da Comissão de Avaliação das Decisões e Atuação do Banco de Portugal na Supervisão do BES”, disse na CPI que o relatório ficou na gaveta do supervisor “durante anos”, não tendo merecido discussão interna. E, deixando velada crítica a Carlos Costa, disse: “Para se mudar tem de se reconhecer que errou. Se não se reconhece, não se muda”. E Costa Pinto desvendou um pedaço do relatório confidencial: uma intervenção mais enérgica e atempada do Banco de Portugal teria evitado ou minimizado problemas no BES.

O relator disse não conseguir encontrar uma explicação para o destino que foi dado ao relatório, sendo que só quem o pediu (o governador Carlos Costa) poderá explicar as razões por que o relatório “não terá sido durante muito tempo, anos, objeto de qualquer discussão interna”; sustentou que o BdP “devia ter procedido internamente a uma análise do relatório”, que foi para isso que “foi produzido”; mais tarde, afirmou que o BdP “fez mal” ao não ter feito essa discussão interna, pois “teria permitido fazer uma avaliação do que correu mal”; e atirou: 

Para se mudar tem de se reconhecer que errou. Se não se reconhece, não se muda. Porque é que a discussão não foi feita ou porque o relatório foi fechado? Não sei, não sou eu que devo responder a isso.”.

O relatório, chegado aos deputados da CPI com o selo de “confidencialidade” – 600 páginas com que se avaliam os três anos que antecederam a resolução do BES – foi elaborado por uma comissão independente presidida por Costa Pinto, e que contou com a ajuda da consultora Boston Consulting Group. E Costa Pinto, adiantando que não alteraria nada no relatório, disse:

À luz da informação a que a comissão teve acesso – e foi praticamente toda –, não posso garantir que tenha havido informação que tenha passado ao lado, as conclusões do relatório não vejo que tivessem de ser alteradas”.

Mais disse aos deputados que a comissão independente concluiu que “a supervisão não atuou em tempo útil nem com a energia com que devia ter atuado” antes do colapso do BES. E concluiu, em momentos distintos, que “uma atuação mais enérgica poderia ter evitado ou minimizado problemas”. Um dos exemplos que a comissão independente detetou em relação à “apatia” do BdP no caso BES diz respeito a uma nota interna do BdP que nunca “subiu” à administração e que, em 2011 (três anos antes da resolução), já deixava alertas sobre a complexidade da estrutura do GES e sobre as dificuldades supervisão. E contou Costa Pinto:

Os técnicos que subscreveram essa nota chamaram a atenção para as dificuldades de acompanhamento do GES da parte da supervisão devido à extrema complexidade da estrutura do grupo e ao facto de a holding mãe, que era ao nível do qual se analisava as contas consolidadas, ter sede no Luxemburgo. (…) Essa holding podia tomar a decisão de abrir filiais em paraísos fiscais, fugindo ao controlo da supervisão do Banco de Portugal.”.

O problema detetado pelo relatório: não há “indicações de que essa nota tem subido ao conselho de administração”, sendo que “essa nota terá sido entregue pelo diretor de supervisão ao vice-governador e não terá tido consequências”. 

Não obstante, Costa Pinto disse que estes factos não desresponsabilizam a gestão do BES/GES nem o facto de o poder político se ter afastado de todo o processo na altura. Com efeito, sendo o BES “uma instituição sistémica da maior importância”, a atuação sobre o “grupo não se podia limitar a ser uma intervenção de nível técnico ou de supervisão”. Assim, “uma intervenção mais enérgica e que evitasse os problemas que o relatório identifica teria de ter uma componente política”. E é de questionar como, tendo sido, na altura da troika, disponibilizada uma linha de 12 mil milhões de euros para ajuda a bancos, o BES nunca se tenha socorrido deste instrumento.

Mais Costa Pinto observou que o BdP dispunha de instrumentos para afastar Ricardo Salgado mais cedo (o banqueiro saiu só a 20 de junho de 2014, quase mês e meio antes da resolução), pois os artigos 33.º e 141.º do RGIC (Regime Geral das Instituições de Crédito) davam instrumentos ao BdP para intervir na administração do BES, desde a substituição até à nomeação de administradores.

Mas não se pense que o deponente só criticou a última fase do BES. Não duvida de que “boa parte das perdas” do BES/NB “poderiam ter sido evitadas”. Deixou duras críticas à forma como foi feita a venda da instituição em 2017 e à própria gestão do banco: vender créditos em pacote, em que se misturam alhos com bugalhos, é receita para o desastre. E atirou:

Se vamos discutir as perdas e os prejuízos que têm vindo a ser assumidos por dinheiros públicos na sequência do colapso do grupo BES, temos de avaliar o que ocorreu no Novo Banco depois da resolução. (…) Estou convencido de que boa parte das perdas poderiam ter sido evitadas.”.

À cabeça das críticas ao processo de venda ao fundo Lone Star, em outubro de 2017, está a “excecional” dimensão do mecanismo de capital contingente no valor de 3,9 mil milhões de euros e que permitiu uma limpeza acelerada do balanço do banco que só teria como resultado “perdas substanciais”. Até hoje, o NB já pediu 3.000 milhões de euros ao FdR no âmbito do acordo de capital contingente que visou “proteger os interesses” do acionista americano.

No seguimento da sua intervenção, o ex-vice-governador do BdP atacou as vendas de ativos tóxicos que a gestão de António Ramalho tem executado nos últimos anos e que estão na base dos prejuízos volumosos do NB e das injeções do FdR. A este respeito, considerou:

Quando se avança para um fire sale, vendas apressadas, tudo muda. As perdas de valor são imediatas. (…) Quando se decide agregar em pacote créditos em que se misturam alhos e bugalhos, coisas boas e más, é receita para o desastre. Quando se recorre a fundos que querem ganhar por ano 15 a 20%, o que implica desvalorizações dos ativos que não podem ser inferiores a 50%… Quando tudo isso acontece, não pode haver senão perdas substanciais.”.

O economista disse que não se deviam ter misturado créditos garantidos pelo FdR com créditos não garantidos. E, questionado sobre a razão por que o NB ficou a gerir os ativos tóxicos que estavam dentro do perímetro do acordo, destacou que havia a alternativa de colocar um fundo especializado a fazer essa gestão. A este respeito, dando como exemplo os resgastes que aconteceram no Reino Unido (Lloyds e Royal Bank of Scotland), discorreu:

Porque é que não foi? Se esse fundo tivesse sido criado, se essa parte do balanço tivesse saído, teriam de entrar capitais no Novo Banco. Teriam de entrar fundos públicos para se fazer dessa maneira. Se os ativos seriam geridos com outro profissionalismo? Os ativos teriam sido geridos com tempo, o valor poderia ter sido extraído de outra maneira, as perdas teriam sido outras.”.

Fernando Negrão, presidente da CPI, deu por concluída a audição com um apontamento:

Esta audição pode representar o fim de um ciclo, do ciclo do ‘não vi, não ouvi e não cheirei’.”.  

António Ramalho, CEO do NB, em carta à CPI, considera as declarações de Costa Pinto sobre a venda de ativos problemáticos “opiniões imprecisas e desfasadas da realidade”.

Porém, é de recordar que, em entrevista ao ECO no ano passado, Costa Pinto já tinha abordado o tema: defendeu a nacionalização do NB em vez da venda; e criticou o “mecanismo perverso” criado com a venda do NB ao fundo americano Lone Star.

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Como aceitaram os administradores o NB não conhecendo os critérios de capitalização? Como se entende a discrepância entre o BCE e a Comissão Europeia? Que pressa, incúria e incompetência moveram o BdP e o seu agente de venda do NB? Que segredos esperar?

2021.03.24 – Louro de Carvalho

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