Aquando da resolução do BES a 3 de agosto de 2014, de
que resultou o Novo Banco (NB) como banco bom, contra o banco mau que foi criado
mantendo-se a designação de Banco Espírito Santo (para religiosos
puritanos, uma blasfémia), o Fundo de Resolução (FdR), o seu único acionista, capitalizou o NB com 4,9 mil
milhões de euros (3,9 mil milhões emprestados pelos
cofres públicos), montante que o Banco de Portugal (BdP), que determinou a resolução, considerou
suficiente, ao invés do Banco Central Europeu (BCE), que alertava para a insuficiência.
Agora, foi referido à comissão parlamentar de
inquérito (CPI) que aquele montante não dava folga para enfrentar os problemas futuros –
tese que Vítor Bento, o primeiro presidente do NB, defende há anos. Porém, na
sua audição parlamentar, o agora presidente do conselho de administração da
SIBS (gestora do Multibanco) referiu que hoje é mais fácil ter essa certeza do que então, afirmando que,
na altura, havia “um fantasma” e uma “ilusão” a toldar o momento.
Depois de reiteradamente questionado sobre os
problemas do balanço inicial do NB, disse aos deputados que “o capital dos
bancos em si é uma variável que tem uma componente de incerteza muito grande”.
E defendeu que “o capital dotado estava demasiado à pele”, o que se tornou negativo
para os ratings do banco e tinha influência negativa na
avaliação das contrapartes, do risco que o banco representava, nomeadamente,
nas linhas de mercado. Com tais incertezas, não se restabeleceu com suficiência
a confiança no banco, que perdia cada vez mais recursos, aliás como explanara na
semana anterior o administrador financeiro de então, João Moreira Rato.
Também referiu Vítor Bento que os administradores não
foram “envolvidos nas necessidades de capital”. E, sem entrar nas oposições que
marcaram intervenções anteriores contra o BdP quando liderado por Carlos Costa (a relação foi tensa porque o ex-governador queria uma venda rápida do NB e
Bento precisava de 5 anos para o efeito), disse que, a seguir à resolução, a administração se apercebera do balanço
do banco recebido e da fragilidade do capital.
A insuficiência de capital foi visível ao longo dos
anos seguintes e, segundo as estimativas do agora presidente não executivo da
SIBS, houve várias medidas, como a anulação de algumas provisões (incluindo a linha de crédito ao BES Angola) e a transferência de dívida, no fim de 2015 – medidas
que totalizaram quase 3,5 mil milhões em dois anos e que permitiram compensar
as falhas de capital, deixando os rácios de capital deixassem de estar em
mínimos.
Os responsáveis do BdP à data dos factos disseram que
o dinheiro era suficiente para assegurar os rácios, mas que teriam preferido
dar folga superior. Todavia, tal intenção foi travada em reunião do Ministério
das Finanças de Maria Luís Albuquerque com a Comissão Europeia. No entanto,
Bento lembrou que não era tão impossível discutir com as autoridades europeias novas
condições para o NB, pois até o processo de capitalização da CGD, em 2016, que
era tido como impossível quando Centeno era Ministro das Finanças, tornou-se
possível com um projeto credível. O Executivo PSD/CDS que sempre apontou a
dificuldade de negociar com Bruxelas e a exigência de reestruturação que se
seguiria.
E, segundo Vítor Bento, o problema em torno do BES e
do NB resultou dum contexto, o do “fantasma” e da “ilusão” – duas
condicionantes que marcaram as escolhas feitas. O fantasma, era o BPN,
nacionalizado em 2008 e só reprivatizado em 2012 na venda por 40 milhões, com
perdas que se temiam que superassem os 5 mil milhões para o erário; e a ilusão
era o valor do banco, acreditando o BdP que venderia o NB por cerca de 4,9 mil
milhões. Tendo saído do NB pouco mais de um mês após a sua constituição, decidiu
não responder em público à campanha de descredibilização de que foi alvo, “para
não acrescentar problemas aos que já existiam”, pois não quis criar problemas
ao sucessor, Eduardo Stock da Cunha, nem ao BdP. Porém, deixa no ar a questão
de não se saber porque não foi vendido o NB em 2015 e que valor que estava em
cima da mesa então. Com efeito, tanto valeria tê-lo vendido por 0 euros em 2015
como em 2017!
***
A CPI em curso às perdas causadas pelo banco
classificado como “bom” continua a recuar no tempo e a discutir que entidades (ou entidade) foram determinantes para definir o dinheiro que o banco recebeu à
nascença, quando a administração já considerava necessária a entrada de mais
fundos, sendo isso o que pretendia fazer. Porém, o BdP quis avançar para a
venda imediata que, na prática, implicou a injeção de capital pelo FdR de pelo
menos mais 3 mil milhões daquele acionista nos anos seguintes.
João Moreira Rato, o primeiro administrador financeiro
do NB e ora presidente da administração do Banco CTT, garantiu que não esteve
envolvido na definição do montante de capitalização inicial.
Contou que foram atempadamente comunicadas ao BdP as
preocupações da administração sobre a suficiência do capital para fazer face às
dificuldades que pudessem advir nos meses que se iam seguir. E, não estando
envolvidos os administradores na definição do capital de arranque do NB, não
sabiam quais os critérios que determinaram o montante de 4,9 mil milhões, uma
vez que “o processo de resolução e os detalhes eram vagos”. Com a capitalização
inicial, os rácios, que medem a solidez financeira e capacidade de fazer face
aos riscos, ficavam em torno de 7% e 8%, níveis mínimos exigidos pelo
supervisor, mas tais requisitos cresceriam com as exigências de regulação e
supervisão, pelo que o banco precisaria de capital fresco. E, na altura, o
supervisor liderado por Carlos Costa nem concordou, nem discordou em relação à
necessidade de mais capital: “recebeu a
comunicação e não houve resposta”.
O antigo CFO esclareceu que “os riscos que o banco
tinha na altura eram conhecidos, não só nas carteiras de crédito”, mas também na
posição na Portugal Telecom, em que havia uma posição cambial em dólares, com
vários fatores de risco. E o BdP sabia que podia não haver capital suficiente
para lidar com os problemas “de algumas exposições que estavam no balanço”.
Os responsáveis do BdP já ouvidos na CPI (Pedro Duarte Neves e Luís Costa Ferreira) também já disseram que preferiam que o banco tivesse
recebido mais 500 milhões de euros aquando da sua constituição, mas que saíram
duma reunião do Ministério das Finanças, onde estava presente a Comissão
Europeia, com a indicação de que essa almofada não seria colocada no banco.
Em 2014, a solução seria recapitalizar o banco através
de aumentos graduais de capital com recurso a investidores privados, nunca
tendo sido discutida a entrada de mais dinheiro público no NB. O BES, sob
Ricardo Salgado, tinha sido dos poucos bancos que recorreu à linha da troika
direcionada para os bancos.
A decisão de resolução apanhou de surpresa o BES.
Vítor Bento, o último presidente daquele banco, diz que, se soubesse o que iria
encontrar, não teria aceitado a tarefa. Na verdade, a entrada na nova
administração para o BES a substituir a equipa de Ricardo Salgado era para ser após
a aprovação das contas do semestre. Porém, a entrada foi antecipada e teve
conhecimento das contas apenas no final de junho. E o mesmo Vítor Bento relembrou
aos deputados aspetos que tinha já contado na comissão de inquérito ao BES, em
2014 e 2015: o BdP, dias antes de anunciar a resolução, deu oportunidade a que
procurasse capital junto de privados, tendo o CEO respondido que a opção era impossível
de pôr em prática; o Governo de então mostrou indisponibilidade de o BES vir a
receber dinheiro da linha de capitalização pública que ficara dos tempos da troika
(depois de Salgado recusar, durante anos, precisar daquele dinheiro).
***
João Costa Pinto, ex-presidente do conselho de
auditoria do Banco de Portugal e da Comissão que produziu o “Relatório da Comissão de Avaliação das
Decisões e Atuação do Banco de Portugal na Supervisão do BES”, disse na CPI
que o relatório ficou na gaveta do supervisor “durante anos”, não tendo
merecido discussão interna. E, deixando velada crítica a Carlos Costa, disse: “Para se mudar tem de se reconhecer que
errou. Se não se reconhece, não se muda”. E Costa Pinto desvendou um pedaço
do relatório confidencial: uma intervenção “mais enérgica” e atempada do
Banco de Portugal teria evitado ou minimizado problemas no BES.
O relator disse não conseguir encontrar uma explicação
para o destino que foi dado ao relatório, sendo que só quem o pediu (o governador Carlos Costa) poderá explicar as razões por que o relatório “não terá sido durante muito
tempo, anos, objeto de qualquer discussão interna”; sustentou que o BdP “devia ter procedido internamente a uma análise do relatório”,
que foi para isso que “foi produzido”; mais tarde, afirmou que o BdP “fez mal”
ao não ter feito essa discussão interna, pois “teria permitido fazer uma
avaliação do que correu mal”; e atirou:
“Para se mudar tem de se reconhecer que
errou. Se não se reconhece, não se muda. Porque é que a discussão não foi feita ou porque o relatório foi
fechado? Não sei, não sou eu que devo responder a isso.”.
O relatório, chegado aos deputados da CPI com o selo
de “confidencialidade” – 600 páginas com que se avaliam os três anos que
antecederam a resolução do BES – foi elaborado por uma comissão independente
presidida por Costa Pinto, e que contou com a ajuda da consultora Boston
Consulting Group. E Costa Pinto, adiantando que não alteraria nada no
relatório, disse:
“À luz da informação a que a
comissão teve acesso – e foi praticamente toda –, não posso garantir que tenha
havido informação que tenha passado ao lado, as conclusões do relatório não
vejo que tivessem de ser alteradas”.
Mais disse aos deputados que a comissão
independente concluiu que “a supervisão não atuou em tempo útil nem com a
energia com que devia ter atuado” antes do colapso do BES. E concluiu, em
momentos distintos, que “uma atuação mais enérgica
poderia ter evitado ou minimizado problemas”. Um dos exemplos que a
comissão independente detetou em relação à “apatia” do BdP no caso BES diz
respeito a uma nota interna do BdP que nunca “subiu” à administração e que,
em 2011 (três anos antes da resolução), já deixava alertas sobre a complexidade
da estrutura do GES e sobre as dificuldades supervisão. E contou Costa Pinto:
“Os técnicos que subscreveram essa
nota chamaram a atenção para as dificuldades de acompanhamento do GES da parte
da supervisão devido à extrema complexidade da estrutura do grupo e ao facto de
a holding mãe, que era ao nível do qual se analisava as contas consolidadas,
ter sede no Luxemburgo. (…) Essa holding podia tomar a decisão de abrir filiais
em paraísos fiscais, fugindo ao controlo da supervisão do Banco de Portugal.”.
O problema detetado pelo relatório: não há “indicações
de que essa nota tem subido ao conselho de administração”, sendo que “essa nota terá sido entregue pelo diretor de supervisão ao
vice-governador e não terá tido consequências”.
Não obstante, Costa Pinto disse que estes factos não
desresponsabilizam a gestão do BES/GES nem o facto de o poder político
se ter afastado de todo o processo na altura. Com efeito, sendo o BES “uma
instituição sistémica da maior importância”, a atuação sobre o “grupo não se
podia limitar a ser uma intervenção de nível técnico ou de supervisão”. Assim,
“uma intervenção mais enérgica e que evitasse os problemas que o relatório
identifica teria de ter uma componente política”. E é
de questionar como, tendo sido, na altura da troika, disponibilizada uma linha
de 12 mil milhões de euros para ajuda a bancos, o BES nunca se tenha socorrido
deste instrumento.
Mais Costa Pinto observou que o BdP dispunha de instrumentos para afastar Ricardo Salgado mais
cedo (o banqueiro saiu só a 20 de junho de 2014, quase mês
e meio antes da resolução), pois os artigos 33.º e 141.º do RGIC (Regime Geral das
Instituições de Crédito) davam instrumentos ao BdP para intervir na administração do BES, desde a
substituição até à nomeação de administradores.
Mas não se pense que o deponente só criticou a última fase do BES. Não duvida
de que “boa parte das perdas” do BES/NB “poderiam ter sido evitadas”. Deixou
duras críticas à forma como foi feita a venda da instituição em 2017 e à
própria gestão do banco: “vender créditos em pacote, em que se misturam alhos com bugalhos, é
receita para o desastre”. E atirou:
“Se vamos discutir as perdas e os
prejuízos que têm vindo a ser assumidos por dinheiros públicos na sequência do
colapso do grupo BES, temos de avaliar o que ocorreu no Novo Banco depois da
resolução. (…) Estou convencido de que boa parte das perdas poderiam ter sido
evitadas.”.
À cabeça das críticas ao processo de venda ao fundo
Lone Star, em outubro de 2017, está a “excecional” dimensão
do mecanismo de capital contingente no valor de 3,9 mil milhões de euros e que
permitiu uma limpeza acelerada do balanço do banco que só teria como resultado
“perdas substanciais”. Até hoje, o NB já pediu 3.000 milhões de euros ao FdR no
âmbito do acordo de capital contingente que visou “proteger os interesses” do
acionista americano.
No seguimento da sua intervenção, o ex-vice-governador
do BdP atacou as vendas de ativos tóxicos que a gestão de António Ramalho tem
executado nos últimos anos e que estão na base dos prejuízos volumosos do NB e
das injeções do FdR. A este respeito, considerou:
“Quando se avança para um fire sale,
vendas apressadas, tudo muda. As perdas de valor são imediatas. (…)
Quando se decide agregar em pacote créditos em que se misturam alhos e
bugalhos, coisas boas e más, é receita para o desastre. Quando se recorre a
fundos que querem ganhar por ano 15 a 20%, o que implica desvalorizações dos ativos
que não podem ser inferiores a 50%… Quando tudo isso acontece, não
pode haver senão perdas substanciais.”.
O economista disse que não se deviam ter misturado
créditos garantidos pelo FdR com créditos não garantidos. E, questionado sobre
a razão por que o NB ficou a gerir os ativos tóxicos que estavam dentro do
perímetro do acordo, destacou que havia a alternativa de colocar um fundo
especializado a fazer essa gestão. A este respeito, dando como exemplo os
resgastes que aconteceram no Reino Unido (Lloyds e Royal Bank of Scotland), discorreu:
“Porque é que não foi? Se esse fundo
tivesse sido criado, se essa parte do balanço tivesse saído, teriam de entrar
capitais no Novo Banco. Teriam de entrar fundos públicos para se fazer dessa
maneira. Se os ativos seriam geridos com outro profissionalismo? Os ativos teriam sido geridos com tempo, o valor poderia ter
sido extraído de outra maneira, as perdas teriam sido outras.”.
Fernando Negrão, presidente da CPI, deu por concluída
a audição com um apontamento:
“Esta audição pode representar o fim
de um ciclo, do ciclo do ‘não vi, não ouvi e não cheirei’.”.
António Ramalho, CEO
do NB, em carta à CPI, considera as declarações de Costa Pinto sobre a venda de
ativos problemáticos “opiniões imprecisas e desfasadas da realidade”.
Porém, é de recordar que, em entrevista ao ECO no ano passado, Costa Pinto já tinha
abordado o tema: defendeu a nacionalização do NB em vez da venda; e criticou
o “mecanismo perverso” criado com a venda do NB ao fundo
americano Lone Star.
***
Como aceitaram os administradores o NB não conhecendo
os critérios de capitalização? Como se entende a discrepância entre o BCE e a
Comissão Europeia? Que pressa, incúria e incompetência moveram o BdP e o seu
agente de venda do NB? Que segredos esperar?
2021.03.24 – Louro de Carvalho
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