sábado, 20 de março de 2021

Nova Lei Orgânica de Bases da Organização das Forças Armadas

 

O Ministro da Defesa Nacional (MDN) apresentou, no dia 19 de março, ao Conselho de Estado, a revolução que o Governo quer promover na estrutura superior do comando das Forças Armadas (FA), estribado no apoio do bloco central político.

Pela Lei Orgânica n.º 1-A/2009, de 7 de julho, foi aprovada a Lei Orgânica de Bases da Organização das Forças Armadas (LOBOFA), ficando assim revogada a Lei n.º 111/91, de 29 de Agosto, alterada pela lei n.º 18/95, de 13 de julho. Foi, no dizer dos observadores, uma reforma incompleta (no Governo do PS) que outra aprofundou no Governo do PSD/CDS, com as alterações introduzidas pela Lei Orgânica n.º 6/2014, de 1 de setembro, vindo tal reforma a esbarrar então nas chefias militares.

Porém, a reforma de Cravinho aponta para uma fórmula que está a ser contrariada por dezenas de oficiais-generais na reforma, antigos chefes militares, incluindo Ramalho Eanes, antigo Presidente da República, CEME e CEMGFA, e os próprios chefes de Estado-Maior dos três ramos, que apresentam reservas fortes às alterações, mas sem força para as frear.

Nos termos do projeto de proposta de lei, o Governo assume que o Chefe do Estado-Maior das Forças Armadas (CEMGFA) será o principal responsável pela execução das prioridades estratégicas definidas para as Forças Armadas “como um todo”, o que retira força aos ramos e às respetivas chefias. Com efeito, o preâmbulo da proposta da nova LOBOFA refere claramente que o Exército, a Marinha e a Força Aérea perdem competências de decisão em matérias do seu interesse específico. Assim, em matérias em que os chefes dos ramos tinham poder deliberativo no Conselho de Chefes de Estado-Maior, serão ouvidos só a título consultivo. Como se lê no documento, “é centralizado no EMGFA o planeamento estratégico associado ao Conceito Estratégico Militar (CEM), Sistemas de Forças e Dispositivo (SFD), e Lei de Programação Militar (LPM), com vista à “minimização de redundâncias de competências e de estruturas e o esclarecimento de situações que podem ser equívocas quanto à linha de comando.

Atualmente, Exército, Marinha e Força Aérea recrutam o pessoal, preparam recursos humanos e materiais, treinam as forças e fornecem-nas ao CEMGFA, que as emprega em missões internacionais, cooperação técnico-militar, na NATO, etc. Em linguagem LOBOFA, tem o CEMGFA como função o “comando conjunto para as operações militares” e assegura o “exercício do comando operacional das forças e meios”; é o responsável pelo “planeamento e implementação da estratégia militar operacional”; tem na sua dependência hierárquica os chefes de Estado-Maior dos ramos (o que só acontece desde 2014) “para as questões que envolvam a prontidão, o emprego e a sustentação de forças”; responde em permanência ao Ministro da Defesa; e é responsável pela saúde militar, pelas informações militares e cibersegurança.

O Governo quer reforçar estes poderes no topo da hierarquia, à imagem do que sucede noutros países da NATO, criando uma espécie de Chief of Defense (CHOD), que detém, na prática, o comando de todas as FA, mas sem acabar com os ramos. Assim, “todas as áreas da atividade militar” dependerão do CEMGFA, “incluindo o planeamento, direção e controlo da execução da estratégia de defesa militar, a administração de recursos e capacidades militares”. Ou seja, transita quase tudo para a alçada do CEMGFA, o que agrada ao almirante Silva Ribeiro, exceto atividades como a busca e salvamento marítimo ou aéreo, o recrutamento e o treino das forças. E o Ministro alega que a maioria dos países da NATO tem uma estrutura destas e a reforma está prevista no programa do Governo. Contudo, é de assinalar que há uma perda de poder por parte das chefias: tudo o que é operacional, como o Comando das Forças Terrestres, o Comando Naval e o Comando da Força Aérea, fica sob a égide do CEMGFA. Além disso, um ponto que indispõe os chefes dos ramos é o facto de o Conselho de Chefes de Estado-Maior, onde se aprovam as promoções a oficial-general, as propostas da Lei de Programação Militar (para compra de equipamento) ou os Orçamentos do Estado, perder caráter deliberativo, passando o órgão a ser apenas órgão consultivo. E, com esta configuração, as chefias deixam de despachar diretamente com o Ministro, que terá o CHOD como principal interlocutor, o que também lhes desagrada.

Este conjunto de alterações, que envolve uma nova arquitetura no topo da instituição militar e uma certa desgraduação dos chefes militares e dos ramos levou o GREI (Grupo de Reflexão Estratégica Independente), que junta quase 40 oficiais-generais, a escrever o Presidente da República em protesto e motivou uma intervenção crítica do ex-Presidente Ramalho Eanes no Conselho de Estado sobre o tema, em que a esmagadora maioria dos presentes se manifestou a favor da reforma, com destaque para Rui Rio.

Embora o Presidente da República queira equilibrar a proposta atenuando a perda de poder e prestígio dos chefes militares, como referiu no final das reuniões do CSDN (Conselho Superior de Defesa Nacional) e do Conselho de Estado, o Governo tenciona mesmo retirar-lhes competências. Os chefes de Estado-Maior dos ramos passam a “principais conselheiros do CEMGFA”, mas com o foco nos “assuntos específicos dos seus ramos”, mantendo a responsabilidade pela geração, aprontamento e sustentação dos meios e das forças a empenhar. Quer dizer que, apesar de tudo, “o Conselho de Chefes de Estado-Maior passa a órgão de consulta”, que é aquilo que mais desagrada às altas patentes e que Marcelo gostaria de ver limado. Com efeito, “são transformadas em funções consultivas” as competências deliberativas que o conselho tinha relativamente a matérias tão determinantes como a elaboração do conceito estratégico militar, do sistema de forças e do dispositivo, da LPM (que estabelece os investimentos em equipamento) e da Lei de Infraestruturas Militares (que define os imóveis a alienar).

O Governo assume estas mudanças na LOBOFA com apoio na filosofia de interoperabilidade que se desenvolve há anos na doutrina militar: para “promover uma maior eficácia do comando operacional conjunto, permitindo coordenar melhor os meios navais, terrestres e aéreos e cada vez mais também os espaciais e cibernéticos”, que exigem respostas integradas. E sustenta-se na conveniência de Portugal seguir o exemplo dos aliados na NATO que já adotaram este modelo, inferindo que “são estes mesmos desafios e objetivos que levaram a grande maioria dos países aliados com Forças Armadas de referência”, a “proceder a reformas de fundo” do comando superior, onde se verificou uma “tendência para o reforço do poder do CEMGFA e do comando conjunto das FA”. O caminho é no sentido de o CEMGFA, agora o almirante Silva Ribeiro, recém-reconduzido, ser uma espécie de Chief of Defense, como é traduzido em países anglo-saxónicos, com poderes militares, mas também políticos.

As alterações à LOBOFA e, consequentemente, à Lei de Defesa Nacional (LDN) podem “esmagar” os chefes dos ramos. Na verdade, os efetivos “são fixados trienalmente” pelo CEMGFA, e os ramos são apenas “ouvidos” nessa matéria; e o reforço de poderes do CEMGFA é grande. Se, dantes os chefes militares participavam na elaboração dos anteprojetos da LPM, para a aquisição de armamento, de futuro passam apenas a emitir parecer; e toda a atividade operacional passa para a alçada do CEMGFA (os comandos de componente terrestre, marítima e aérea), ficando os ramos apenas com o comando de atividades operacionais como a busca e salvamento marítima ou aérea.

Outro aspeto controverso para as chefias é a relação com o Ministro. Se a LOBOFA estabelecia que “os Chefes de Estado-Maior dos ramos relacionam-se diretamente com o Ministro da Defesa Nacional nos aspetos relacionados com a gestão corrente de recursos do respetivo ramo”, Cravinho desgradua a influência dos chefes do Exército, da Marinha e da Força Aérea, que deixam de ir a despacho com ele: tornam-se “conselheiros do Ministro”, mas só no âmbito do Conselho Superior Militar (órgão de consulta do Ministro). A relação direta fica limitada às questões conexas com a busca e salvamento e com a “execução” de projetos no âmbito da LPM (equipamento) e da LIM (imobiliário).

O processo legislativo está só no começo e com a recomendação do Presidente d República no sentido de a lei ser mais “equilibrada”. E o Ministro demonstrou abertura em obter saídas que permitam aos chefes militares manter o prestígio, ficando por saber se a contestação alastrará dentro e fora da instituição militar. Contudo, é de registar que o esboço da proposta de lei já teve a concordância das chefias do Exército, da Marinha e da Força Aérea, no CSDN, de 15 de março, ainda que as críticas e as reservas sejam suficientes para Marcelo estar empenhado em conseguir que o Governo equilibre a proposta de modo que o reforço dos poderes do CEMGFA não esmague os chefes dos ramos.

Se a perda de poder já deixaria as chefias desconfortáveis, o facto de o Ministro ter envia­do o projeto definitivo, para apreciação 6 horas antes do Conselho de Chefes de Estado-Maior de 12 de março e o de as alterações terem sido aprovadas de véspera, no Conselho de Ministros que decidiu o desconfinamento, levaram alguns a pensar que o atraso terá sido propositado.

Na reunião dos três chefes com o CEMGFA, os generais Nunes da Fonseca (Exército), Joaquim Borrego (Força Aérea) e o almirante António Calado (Armada) colocaram as suas reservas.

As críticas tiveram eco, de tal modo que, depois de garantir que ninguém tinha nada a obstar ao avanço da legislação, Marcelo tentou, em síntese final, equilibrar posições: mesmo sem mexer na componente operacional, que passa para o CEMGFA, é preciso prosseguir seguindo sugestões das chefias. Assim, durante o processo legislativo, “quer na sua tramitação quer na sua eventual aplicação, é fundamental o papel dos chefes dos três ramos das Forças Armadas”, lê-se no texto publicado pela Presidência da República – o que significa que Marcelo quer mitigar, pelo menos, a transformação do conselho de Chefes de Estado-Maior em órgão consultivo e o fim do despacho do Ministro com cada um dos três chefes.

As opiniões públicas de militares na reserva contra a reforma têm-se multiplicado nas últimas semanas. O general Rovisco Duarte, ex-chefe do Estado-Maior do Exército, diz haver “um sentimento geral de incompreensão, porque há coisas mais urgentes” a tratar nas FA, até porque “na covid-19 a articulação funcionou” e “a mobilização conjunta nunca deixou de ser feita, hierarquicamente dependente do CEMGFA”, pelo que, “numa altura destas, isto é descabido e inoportuno”. O ex-CEMGFA Luís Araújo é mais duro, dizendo que “nem economizamos, só duplicamos estruturas”, e alega que “esta estrutura vai exaurir os ramos nos Estados-Maiores, porque o CEMGFA para fazer um centro de comando terá de ir buscar recursos aos ramos já exauridos de pessoal”. Alexandre Reis Rodrigues, vice-almirante na reserva, em artigo no “DN”, sustentou que o CEMGFA, com os novos poderes, terá de criar um centro de comando conjunto que englobe todas as valências operacionais dos ramos, que terá custos e, por razões de “segurança”, não poderá ser no edifício do EMGFA e do Ministério da Defesa Nacional.

Na carta susodita carta do GREI, os militares argumentaram contra a necessidade de mais esta revisão à LDN e à LOBOFA. A mensagem para o comandante supremo, subscrita por antigos chefes como o almirante Melo Gomes (ex-chefe do Estado-Maior da Armada) ou o general Pinto Ramalho (ex-chefe do Exército) – que escreveu um editorial muito crítico na “Revista Militar” – contesta o novo modelo de organização. Há 12 anos (em 2009), estes subscritores da mensagem contribuí­ram para evitar que avançasse na totalidade uma decisão no mesmo sentido, sendo Ministro da Defesa Nacional Nuno Severiano Teixeira.

É de registar que, entre os militares, até agora só uma voz se fez ouvir a favor da reforma: o general Valença Pinto, do Exército, que era CEMGFA nessa época e que disse à Lusa que esta é uma forma de “promover e assegurar uma melhor lógica de coordenação do aparelho da Defesa Nacional”, acrescentando:

Os chefes dos Estados-Maiores devem claramente estar subordinados ao CEMGFA, mantendo as responsabilidades fundamentais que têm: no plano da formação, aprontamento e sustentação das forças”.

Em 2014, o Governo PSD/CDS de Passos Coelho voltou à carga pela mão do Ministro José Pedro Aguiar-Branco. Porém, os chefes militares inviabilizaram o aprofundamento da reforma. Alterou-se a lei, o comandante operacional passou a ser CEMGFA, com os chefes dos ramos na sua dependência, mas ficou-se a meio caminho. Para Luís Araújo, que resistiu às duas alterações como comandante da Força Aérea e como CEMGFA, com este desenho em que os chefes passam a “ajudantezinhos” e não despacham com a tutela, “o Ministro também perde poder: perde conhecimento da situação dos ramos e só sabe o que o CEMGFA lhe quiser dizer”.

A grande razão para João Gomes Cravinho conseguir o que os seus antecessores não alcançaram em 2009 e 2014 é o apoio prévio do PSD, pois estão em causa leis de valor reforçado. O Ministro terá apresentado a reforma (constante dos programas do PS e do PSD) às chefias como facto consumado pelo Bloco Central. E Ângelo Correia, responsável pela área da Defesa no Conselho Estratégico Nacional do PSD, deu uma conferência de imprensa sobre o tema, em que admitiu a existência de conversas. Tendo o Ministro pedido opinião ao PSD, este expôs as suas ideias, em geral, alinhadas com as do Governo, uma vez que a “organização dos países ocidentais” se tem pautado “pela emergência de conceitos novos: maior velocidade de decisão, economia de custos e redução de duplicações e desentendimentos entre os ramos”. Mais: Ângelo Correia, no pressuposto de que o Ministro da Defesa Nacional praticamente só tem competências em matéria militar, quando o conceito de defesa é mais abrangente, cabendo às FA a defesa militar da República (vd CRP, art.º 275.º, n.º 1), propôs a figura de um Ministro de Estado e da Defesa Nacional que tutele a defesa militar, a segurança interna e externa e a proteção civil.     

Por mim, julgo que é tempo de pensar mais no reforço dos meios e dos efetivos e acabar com as capelinhas no Estado e nas FA, pôr o MDN tutelar todas as valências da defesa, segurança e proteção civil, mas manter o caráter deliberativo do Conselho de Chefes de Estado-Maior e o despacho com os chefes dos ramos. Satisfaz-se o desígnio do Bloco Central, evita-se o risco apontado por Luís Araújo e os chefes deixam de ser meros ajudantes do CEMGFA.

2021.03.20 – Louro de Carvalho   

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