O Ministro da Defesa Nacional (MDN) apresentou, no dia 19 de março, ao Conselho de Estado, a revolução que o
Governo quer promover na estrutura superior do comando das Forças Armadas (FA), estribado no apoio do bloco central político.
Pela Lei Orgânica n.º 1-A/2009, de 7 de julho, foi aprovada a
Lei Orgânica de Bases da Organização das Forças Armadas (LOBOFA), ficando assim revogada a Lei n.º
111/91, de 29 de Agosto, alterada pela lei n.º 18/95, de 13 de julho. Foi,
no dizer dos observadores, uma reforma incompleta (no Governo
do PS) que outra aprofundou no Governo do
PSD/CDS, com as alterações introduzidas pela Lei Orgânica n.º 6/2014, de
1 de setembro, vindo tal reforma a esbarrar então nas chefias militares.
Porém, a reforma de Cravinho aponta para uma fórmula que está a ser contrariada por
dezenas de oficiais-generais na reforma,
antigos chefes militares, incluindo Ramalho Eanes, antigo Presidente da
República, CEME e CEMGFA, e os próprios chefes
de Estado-Maior dos três ramos, que apresentam reservas fortes às
alterações, mas sem força para as frear.
Nos termos do projeto de proposta de lei, o
Governo assume que o Chefe do Estado-Maior das Forças Armadas (CEMGFA) será o principal responsável pela execução das prioridades
estratégicas definidas para
as Forças Armadas “como um todo”, o que retira força aos ramos e às respetivas
chefias. Com efeito, o preâmbulo da proposta da nova LOBOFA refere claramente
que o Exército, a Marinha e a Força Aérea
perdem competências de decisão em matérias do seu interesse específico.
Assim, em matérias em que os chefes dos ramos tinham poder deliberativo no
Conselho de Chefes de Estado-Maior, serão ouvidos só a título consultivo. Como se
lê no documento, “é centralizado no EMGFA o planeamento
estratégico associado ao Conceito Estratégico Militar (CEM), Sistemas de Forças e Dispositivo (SFD), e Lei de Programação Militar (LPM) ”, com vista
à “minimização de redundâncias de
competências e de estruturas e o esclarecimento de situações que
podem ser equívocas quanto à linha de comando”.
Atualmente, Exército,
Marinha e Força Aérea recrutam o pessoal, preparam recursos humanos e
materiais, treinam as forças e fornecem-nas ao CEMGFA, que as emprega em
missões internacionais, cooperação técnico-militar, na NATO, etc. Em linguagem LOBOFA,
tem o CEMGFA como função o “comando conjunto para as operações militares” e
assegura o “exercício do comando operacional das forças e meios”; é o
responsável pelo “planeamento e implementação da estratégia militar
operacional”; tem na sua dependência hierárquica os chefes de Estado-Maior dos
ramos (o
que só acontece desde 2014)
“para as questões que envolvam a prontidão, o emprego e a sustentação de
forças”; responde em permanência ao Ministro da Defesa; e é responsável pela
saúde militar, pelas informações militares e cibersegurança.
O Governo quer reforçar estes poderes no topo da hierarquia,
à imagem do que sucede noutros países da NATO, criando uma espécie de Chief of Defense (CHOD), que detém, na prática, o comando de todas as FA, mas
sem acabar com os ramos. Assim, “todas as áreas da atividade militar” dependerão
do CEMGFA, “incluindo o planeamento, direção e controlo da execução da
estratégia de defesa militar, a administração de recursos e capacidades
militares”. Ou seja, transita quase tudo para a alçada do CEMGFA, o que agrada
ao almirante Silva Ribeiro, exceto atividades como a busca e salvamento marítimo
ou aéreo, o recrutamento e o treino das forças. E o Ministro alega que a
maioria dos países da NATO tem uma estrutura destas e a reforma está prevista
no programa do Governo. Contudo, é de assinalar que há uma perda de poder por
parte das chefias: tudo o que é operacional, como o Comando das Forças
Terrestres, o Comando Naval e o Comando da Força Aérea, fica sob a égide do
CEMGFA. Além disso, um ponto que indispõe os chefes dos ramos é o facto de o
Conselho de Chefes de Estado-Maior, onde se aprovam as promoções a
oficial-general, as propostas da Lei de Programação Militar (para compra de equipamento) ou os Orçamentos do Estado, perder
caráter deliberativo, passando o órgão a ser apenas órgão consultivo. E, com
esta configuração, as chefias deixam de despachar diretamente com o Ministro,
que terá o CHOD como principal interlocutor, o que também lhes desagrada.
Este conjunto de alterações, que envolve uma nova arquitetura no topo da instituição
militar e uma certa desgraduação dos chefes militares
e dos ramos levou o GREI (Grupo de Reflexão Estratégica Independente), que junta quase 40 oficiais-generais, a escrever o
Presidente da República em protesto e motivou
uma intervenção crítica do ex-Presidente Ramalho Eanes no Conselho de Estado sobre
o tema, em que a esmagadora maioria dos presentes se manifestou a favor da
reforma, com destaque para Rui Rio.
Embora o Presidente da República queira equilibrar a proposta atenuando a perda de poder e prestígio
dos chefes militares, como referiu no final das reuniões do CSDN (Conselho
Superior de Defesa Nacional) e do
Conselho de Estado, o Governo tenciona mesmo retirar-lhes competências. Os
chefes de Estado-Maior dos ramos passam
a “principais conselheiros do CEMGFA”, mas com o foco nos “assuntos específicos
dos seus ramos”, mantendo a responsabilidade pela geração, aprontamento
e sustentação dos meios e das forças a empenhar. Quer dizer que, apesar de
tudo, “o Conselho de Chefes de Estado-Maior
passa a órgão de consulta”, que é aquilo que mais desagrada às altas
patentes e que Marcelo gostaria de ver limado. Com efeito, “são transformadas
em funções consultivas” as competências deliberativas que o conselho tinha
relativamente a matérias tão determinantes como a elaboração do conceito
estratégico militar, do sistema de forças e do dispositivo, da LPM (que
estabelece os investimentos em equipamento) e da Lei de Infraestruturas Militares (que define os imóveis a alienar).
O Governo assume estas mudanças na LOBOFA com apoio na filosofia de interoperabilidade
que se desenvolve há anos na doutrina militar: para
“promover uma maior eficácia do comando operacional conjunto, permitindo
coordenar melhor os meios navais, terrestres e aéreos e cada vez
mais também os espaciais e cibernéticos”, que exigem respostas integradas. E sustenta-se
na conveniência de Portugal seguir o exemplo dos aliados na NATO que já
adotaram este modelo, inferindo que “são
estes mesmos desafios e objetivos que levaram a grande maioria dos países
aliados com Forças Armadas de referência”, a “proceder a reformas de fundo” do
comando superior, onde se verificou uma “tendência para o reforço do poder do
CEMGFA e do comando conjunto das FA”. O caminho é no sentido de o CEMGFA, agora
o almirante Silva Ribeiro, recém-reconduzido, ser uma espécie de Chief of Defense, como é traduzido em países
anglo-saxónicos, com poderes militares, mas também políticos.
As alterações à LOBOFA e, consequentemente, à Lei de Defesa Nacional (LDN) podem “esmagar” os chefes dos ramos. Na verdade, os efetivos “são fixados trienalmente”
pelo CEMGFA, e os ramos são apenas “ouvidos” nessa matéria; e o reforço
de poderes do CEMGFA é grande. Se, dantes os chefes militares participavam na
elaboração dos anteprojetos da LPM, para a aquisição de armamento, de futuro
passam apenas a emitir parecer; e toda a atividade operacional passa para a
alçada do CEMGFA (os comandos de componente terrestre, marítima e aérea), ficando os
ramos apenas com o comando de atividades operacionais como a busca e salvamento
marítima ou aérea.
Outro aspeto controverso para as chefias é a relação com o Ministro. Se a
LOBOFA estabelecia que “os Chefes de Estado-Maior dos ramos relacionam-se
diretamente com o Ministro da Defesa Nacional nos aspetos relacionados com a
gestão corrente de recursos do respetivo ramo”, Cravinho desgradua a influência dos
chefes do Exército, da Marinha e da Força Aérea, que deixam de ir a despacho
com ele: tornam-se “conselheiros do Ministro”, mas só no âmbito do
Conselho Superior Militar (órgão de consulta do Ministro). A relação direta fica limitada às questões conexas
com a busca e salvamento e com a “execução” de projetos no âmbito da LPM (equipamento) e da LIM (imobiliário).
O processo legislativo está só no começo e com a recomendação do Presidente
d República no sentido de a lei ser mais “equilibrada”. E o Ministro demonstrou
abertura em obter saídas que permitam aos chefes militares manter o prestígio,
ficando por saber se a contestação alastrará dentro e fora da instituição
militar. Contudo, é de registar que o esboço da proposta de lei já teve a concordância das
chefias do Exército, da Marinha e da Força Aérea, no CSDN, de 15 de março, ainda
que as críticas e as reservas sejam suficientes para Marcelo estar empenhado em
conseguir que o Governo equilibre a proposta de modo que o reforço dos poderes
do CEMGFA não esmague os chefes dos ramos.
Se a perda de poder já deixaria as chefias desconfortáveis, o
facto de o Ministro ter enviado o projeto definitivo, para apreciação 6 horas
antes do Conselho de Chefes de Estado-Maior de 12 de março e o de as alterações
terem sido aprovadas de véspera, no Conselho de Ministros que decidiu o desconfinamento,
levaram alguns a pensar que o atraso terá sido propositado.
Na reunião dos três chefes
com o CEMGFA, os generais Nunes da Fonseca (Exército), Joaquim Borrego (Força
Aérea) e o almirante
António Calado (Armada) colocaram as suas reservas.
As críticas
tiveram eco, de tal modo que, depois de garantir que ninguém tinha nada a
obstar ao avanço da legislação, Marcelo tentou, em síntese final, equilibrar
posições: mesmo sem mexer na componente operacional, que passa para o CEMGFA, é
preciso prosseguir seguindo sugestões das chefias. Assim, durante o processo
legislativo, “quer na sua tramitação quer na sua eventual aplicação, é
fundamental o papel dos chefes dos três ramos das Forças Armadas”, lê-se no
texto publicado pela Presidência da República – o que significa que Marcelo
quer mitigar, pelo menos, a transformação do conselho de Chefes de Estado-Maior
em órgão consultivo e o fim do despacho do Ministro com cada um dos três
chefes.
As opiniões
públicas de militares na reserva contra a reforma têm-se multiplicado nas
últimas semanas. O general Rovisco Duarte, ex-chefe do Estado-Maior do
Exército, diz haver “um sentimento geral de incompreensão, porque há coisas mais
urgentes” a tratar nas FA, até porque “na covid-19 a articulação funcionou” e
“a mobilização conjunta nunca deixou de ser feita, hierarquicamente dependente
do CEMGFA”, pelo que, “numa altura destas, isto é descabido e inoportuno”. O ex-CEMGFA
Luís Araújo é mais duro, dizendo que “nem economizamos, só duplicamos estruturas”,
e alega que “esta estrutura vai exaurir os ramos nos Estados-Maiores, porque o
CEMGFA para fazer um centro de comando terá de ir buscar recursos aos ramos já
exauridos de pessoal”. Alexandre Reis Rodrigues, vice-almirante na reserva, em
artigo no “DN”, sustentou que o
CEMGFA, com os novos poderes, terá de criar um centro de comando conjunto que
englobe todas as valências operacionais dos ramos, que terá custos e, por
razões de “segurança”, não poderá ser no edifício do EMGFA e do Ministério da
Defesa Nacional.
Na carta susodita carta do
GREI, os militares argumentaram contra a necessidade de mais esta revisão à LDN
e à LOBOFA. A mensagem para o comandante supremo, subscrita por antigos chefes
como o almirante Melo Gomes (ex-chefe do Estado-Maior da Armada) ou o general Pinto Ramalho (ex-chefe do Exército) – que escreveu um editorial muito crítico na “Revista
Militar” – contesta o novo modelo de organização. Há 12 anos (em 2009), estes subscritores da mensagem
contribuíram para evitar que avançasse na totalidade uma decisão no mesmo
sentido, sendo Ministro da Defesa Nacional Nuno Severiano Teixeira.
É de registar que, entre os militares, até agora só uma voz
se fez ouvir a favor da reforma: o general Valença Pinto, do Exército, que era
CEMGFA nessa época e que disse à Lusa
que esta é uma forma de “promover e assegurar uma melhor lógica de coordenação
do aparelho da Defesa Nacional”, acrescentando:
“Os chefes dos Estados-Maiores devem
claramente estar subordinados ao CEMGFA, mantendo as responsabilidades
fundamentais que têm: no plano da formação, aprontamento e sustentação das
forças”.
Em 2014, o
Governo PSD/CDS de Passos Coelho voltou à carga pela mão do Ministro José Pedro
Aguiar-Branco. Porém, os chefes militares inviabilizaram o aprofundamento da
reforma. Alterou-se a lei, o comandante operacional passou a ser CEMGFA, com os
chefes dos ramos na sua dependência, mas ficou-se a meio caminho. Para Luís
Araújo, que resistiu às duas alterações como comandante da Força Aérea e como
CEMGFA, com este desenho em que os chefes passam a “ajudantezinhos” e não
despacham com a tutela, “o Ministro também perde poder: perde conhecimento da
situação dos ramos e só sabe o que o CEMGFA lhe quiser dizer”.
A grande razão para João Gomes Cravinho conseguir o que os
seus antecessores não alcançaram em 2009 e 2014 é o apoio prévio do PSD, pois
estão em causa leis de valor reforçado. O Ministro terá apresentado a reforma (constante dos programas do PS e do
PSD) às chefias como
facto consumado pelo Bloco Central. E Ângelo Correia, responsável pela área da
Defesa no Conselho Estratégico Nacional do PSD, deu uma conferência de imprensa
sobre o tema, em que admitiu a existência de conversas. Tendo o Ministro pedido
opinião ao PSD, este expôs as suas ideias, em geral, alinhadas com as do
Governo, uma vez que a “organização dos países ocidentais” se tem pautado “pela
emergência de conceitos novos: maior velocidade de decisão, economia de custos
e redução de duplicações e desentendimentos entre os ramos”. Mais: Ângelo
Correia, no pressuposto de que o Ministro da Defesa Nacional praticamente só tem competências
em matéria militar, quando o conceito de defesa é mais abrangente, cabendo às
FA a defesa militar da República (vd CRP, art.º 275.º, n.º 1), propôs a figura de um Ministro de Estado e da Defesa Nacional que tutele a defesa
militar, a segurança interna e externa e a proteção civil.
Por mim,
julgo que é tempo de pensar mais no reforço dos meios e dos efetivos e acabar
com as capelinhas no Estado e nas FA, pôr o MDN tutelar todas as valências da
defesa, segurança e proteção civil, mas manter o caráter deliberativo do Conselho
de Chefes de Estado-Maior e o despacho com os chefes dos ramos. Satisfaz-se o
desígnio do Bloco Central, evita-se o risco apontado por Luís Araújo e os
chefes deixam de ser meros ajudantes do CEMGFA.
2021.03.20 –
Louro de Carvalho
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