Decorreu, neste dia 9 de março, a sessão solene da Assembleia da
República (AR)
para testemunhar a tomada de posse do Presidente da República, em cumprimento
do disposto na Constituição (CRP),
o que é, no dizer de Ferro Rodrigues, “um dos atos mais importantes da nossa democracia,
tendo como intervenientes, num exemplo perfeito de interdependência, os dois
órgãos de soberania que colhem a sua legitimidade no sufrágio universal e
direto”.
No seu discurso, o Presidente da Assembleia da República (PAR)
acusou a pandemia de não admitir que a cerimónia tivesse a dimensão devida,
como noutros tempos, mas defendeu que “o formato restrito da cerimónia” não lhe
subtrai a “solenidade, significado ou audiência atenta”.
Frisou que a eleição presidencial e a respetiva campanha se realizaram
num quadro de pandemia e sob as restrições do estado de emergência, mas que,
apesar disso, se apresentaram a sufrágio vários “candidatos, patenteando a
maior diversidade ideológica em ato semelhante, até à data”.
Vincou “a forma clara e expressiva” eleição de Marcelo Rebelo de
Sousa “com um significativo acréscimo de votos face ao resultado de 2016”. E
observou que o ato eleitoral “ocorreu na data designada, sem percalços”
tendo contrariado “os receios mais alarmistas e confirmando a desnecessidade do
recurso a expedientes circunstanciais, que seriam verdadeiras entorses à democracia”
(em seu entender o adiamento da eleição contrariaria a
democracia, do que discordo),
sendo “em contextos de crise ou em circunstâncias extraordinárias” que, segundo
Ferro Rodrigues, “temos de ser intransigentes na defesa da democracia e
exigentes no cumprimento das suas regras”. E, neste particular, deixou “uma
palavra de reconhecimento” a quem exerceu o direito de voto e a quantos “tornaram
possível este ato eleitoral”.
Do mandato presidencial, “repleto de momentos marcantes”,
salientou: a reposição de direitos e garantias retirados no tempo da troika
e o esvaziamento da tensão social e institucional; a superação da crise
económica e financeira e consecução do primeiro excedente orçamental em democracia;
os assinaláveis sucessos internacionais alcançados, nas frentes diplomática,
cultural e desportiva, com destaque para a eleição de Guterres como Secretário-Geral
das Nações Unidas – factos a que não foi alheio o prestimoso contributo do
Presidente da República.
Anotando que, nestes anos, se realizaram, “em normalidade
democrática, eleições legislativas, regionais, autárquicas e europeias”, tendo,
nalguns casos, resultado “reconfigurações do panorama político, com o
surgimento de novas forças políticas”, vincou a diversidade e inclusividade em
que se tornou a nossa democracia, “com uma representatividade acrescida,
reveladora de um Portugal com um pleno sentido da liberdade, sem restrições ou
mordaças” (o que foi visto como remoque a recentes
declarações de Cavaco Silva).
Paralelamente, Ferro Rodrigues reviu factos dramáticos, que
testaram as nossas capacidades políticas e éticas, como: os incêndios de
2017, que ceifaram mais de 100 vidas e destruíram casas, empresas, empregos; e a pandemia,
que afeta, persistente e impiedosa, toda a população e todos os setores de
atividade, com forte impacto social, económico e financeiro e um custo em vidas
humanas, que ontem ascendia a 16.565. Porém, observou que foi possível não
adicionar a isto “uma crise política”, de sérias consequências a nível interno
e ao nível da imagem externa de Portugal, tendo sido crucial o papel moderador
do Chefe de Estado.
Evocando afirmação do Presidente na noite da reeleição,
priorizou a ultrapassagem da pandemia como “objetivo que só se alcança num
esforço conjunto, enquanto comunidade”. Referiu o contributo da AR nesta luta,
autorizando as declarações de Estado de Emergência, fiscalizando as medidas do
Governo para evitar as consequências da pandemia e propondo medidas adicionais
ou alternativas. E verificou, para lá das divergências, o “reconhecimento pela
larga maioria dos agentes políticos do que é essencial e da responsabilidade
histórica que sobre nós impende”, mostrando-se convicto de que os deputados
saberão “estar à altura das suas obrigações e do contributo que lhes é exigido”.
Considerando que, debelada a pandemia, importa reparar todos os
danos causados e eliminar as debilidades estruturais que persistem e limitam o
potencial de desenvolvimento do País, frisou que, para tal, vêm sendo “apresentados
e aprovados, após discussão pública, os instrumentos e os projetos
estruturantes entendidos como fundamentais”. E observou que, mais do que as acusações
de que não se discutem os assuntos, é notória “a ausência de consequências
práticas dos debates”. E, exemplificando com “a discussão sobre a localização
do novo aeroporto de Lisboa, que leva já 52 anos, e que, a cada ano que passa,
se torna mais difícil”, disse:
“Há um momento em que é necessário dar a
discussão por concluída e decidir. É isso que esperam de nós; para isso fomos
eleitos: para tomar decisões e para resolver os problemas que afetam o País.”.
Depois, referiu a necessidade de “garantir a boa utilização dos
dinheiros públicos e dos fundos europeus”, de modo que “a recuperação prevista
não deixe ninguém para trás, que sejam asseguradas mais oportunidades de
ascensão social, sem a qual não há desenvolvimento”, sublinhando o papel
essencial da AR neste processo (o
que parece contrariar a tese de que o Presidente, a pretexto da remodelação da
sua Casa Civil, estaria a criar uma comissão para este efeito).
Diz o PAR que, neste desafio, contamos com a solidariedade e o
contributo da UE, que tem tido um papel fundamental na articulação e
mobilização dos meios necessários para uma resposta europeia na saúde pública e
na redução do impacto socioeconómico devastador desta pandemia.
No quadro do papel de Portugal na Presidência do Conselho da
União Europeia, agradeceu aos paramentares que, “nas Comissões Permanentes, têm
velado pelo respeito pelos direitos consagrados no Tratado de Lisboa aos
Parlamentos Nacionais”, e que tanto se têm empenhado “em assegurar a realização
das ações” propostas para “o Semestre em curso”.
E, sobre a atividade parlamentar nesta matéria, destacou a
visita do Colégio de Comissários e as várias iniciativas levadas a cabo, de que
realçou duas conferências interparlamentares, que tiveram um propósito comum, o
de pensar estrategicamente a Europa: uma, sobre a estabilidade e governação
económica, organizada com o Parlamento Europeu e o seu Presidente; e outra,
sobre a Política Externa e de Segurança Comum e a Política Comum de Segurança e
Defesa.
Na verdade, como bem declara o Tratado de Lisboa, “os
Parlamentos Nacionais contribuem ativamente para o bom funcionamento da União”,
pois “a cooperação
internacional sempre fez parte integrante da nossa matriz democrática e da
nossa política externa”.
Por outro lado, esta cooperação é hoje mais necessária,
porquanto “nenhum país sozinho pode vencer ou superar as consequências da
pandemia”. E, citando o Papa Francisco no sentido de que, “perante um desafio
que não conhece fronteiras, não se podem erguer barreiras”, acentuou que “os
muros do
nacionalismo e do populismo são
impotentes para travar a pandemia”.
Depois, evocando o apelo e a advertência de António Guterres sobre
a necessidade absoluta de todos terem acesso à vacinação contra a covid-19,
considerou:
“Estamos perante um imperativo ético de bem
comum e uma exigência de gestão pública, porquanto, como o mostram as variantes
do vírus, nenhum de nós estará a salvo enquanto outros lutam pela vida em
condições de miséria económica, de conflito armado ou, tão simplesmente, de
falta de acesso à saúde pública”.
Reportando-se a asserções de Marcelo na noite eleitoral de 24 de
janeiro, o PAR sublinhou o repúdio do extremismo por parte dos Portugueses, o
qual “exige ação e resposta determinadas”.
E disse que o surgimento de organizações extremistas avisam que
a democracia no mundo está sob ataque e a liberdade está em declínio há 15
anos, mesmo na UE de sólidas tradições democráticas, não chegando a um quinto a
população que vive em países totalmente livres – tendência que preocupa governos
e forças de segurança de países democráticos, bem como organizações
internacionais ou religiosas.
Enfatizou, a seguir, que a promoção do autoritarismo e da
reivindicação da sua pretensa melhor capacidade de resposta aos problemas
atuais, surge por vezes sob a capa de nacional-populismo e de movimentos inorgânicos e
que “o radicalismo e o extremismo” são “perigos para a democracia, com as dicotomias
antissistema, repletas de respostas falaciosas e impraticáveis, sem adesão à
realidade e com difícil relação com a verdade e os factos” – fenómeno que se
aproveita do atual afastamento de parte da população das instituições, partidos
políticos, associações ou sindicatos tradicionais, que sentem muitas vezes já
não os representar.
E Ferro Rodrigues insta a que não deixemos, como políticos e como
cidadãos, que “aquilo que chega a parecer uma tendência suicidária de algumas democracias
nos afete”.
Mas, como estes itens não podem esgotar as nossas preocupações,
Ferro Rodrigues sentenciou:
“Outros há que merecem a nossa melhor
atenção e que, certamente, teremos a oportunidade de sobre eles agir, como
sejam as alterações climáticas, a qualificação da população, a transição
digital, ou a questão das migrações e asilo. As mudanças estruturais de
Portugal são hoje uma necessidade histórica.”.
Por fim, assinalando que, durante o 2.º mandato de Marcelo, o
regime fundado em “25 de Abril” ultrapassará, em longevidade, o regime
salazarista e celebrará o seu 50.º aniversário, o PAR disse aprazer-lhe “que,
nessas datas marcantes, Portugal tenha na Presidência da República um defensor
acérrimo da democracia e dos seus princípios, que respeita o pluralismo e a
diferença, e que nunca desiste da justiça social”. E, afiançando a justeza
do novo mandato, confessou:
“Estou certo de que o novo mandato de Vossa
Excelência se pautará, como no que acaba de terminar, pelo mais estrito e
imparcial respeito pelos valores e princípios constitucionais, e que manterá
com a Assembleia da República as mais cordiais relações institucionais, em
total deferência pelo princípio da separação dos poderes e da interdependência,
e tendo sempre presente que é aqui, no Parlamento, que se encontra representada
a sociedade portuguesa, na sua diversidade e pluralidade”.
E protestou ao Chefe de Estado a total lealdade institucional da
AR e do seu Presidente.
***
Por seu turno, o Presidente da República, que tem dito que “os segundos
mandatos são sempre mais difíceis do que os primeiros”, no seu discurso,
elencou 5 desafios: melhor democracia, combate à covid-19, recuperação
económica, coesão social e protagonismo internacional do país.
- Quer uma “melhor democracia”, em que a tolerância, o respeito por
todos, para lá do género, cor da pele, credo, convicções pessoais, políticas e
sociais “não sejam sacrificados ao mito do português puro, da casta iluminada,
dos antigos e novos privilegiados” – democracia de limitação dos mandatos,
convergência no regime e alternativa clara na governação, estabilidade sem
pântano, justiça com segurança, renovação que evite rutura, antecipação que
impeça decadência, proximidade que impossibilite deslumbramento, arrogância,
abuso do poder.
- Quer um “combate à propagação da covid-19” em Portugal “em espírito
da mais ampla unidade possível”, para que haja menos mortos e casos de infeção
e mais vacinação, testagem e rastreio; quer o desconfinamento “com sensatez e
sucesso” e sem “nova exaustação das estruturas de saúde e dos seus heróis”.
- Quer para 2021 e para os anos que se seguem – tempo inevitavelmente
mais longo –, a total “reconstrução
da vida das pessoas”: emprego, rendimentos, empresas, saúde mental, laços
sociais, vivências e sonhos, “o que é muito mais do que recuperar, ou seja,
regressar a 2019 ou a fevereiro de 2020”.
Não
basta pensar no curto prazo. Há que acautelar o futuro com solidez.
- Quer “a coesão social”. E, a este respeito, considerou que, embora
seja o mesmo de há 5 anos e que foi eleito e reeleito nos mesmos termos, porém,
avisou que só há “verdadeira reconstrução se a pobreza se reduzir, os focos de
carência alimentar extrema desaparecerem, as desigualdades se esbaterem, a
exclusão diminuir, a clivagem entre gerações e entre territórios for superada”.
- Quer, por fim, mas não menos importante, o aprofundamento do “protagonismo
de Portugal no plano internacional” como “plataforma entre culturas, oceanos e
continentes, simbolizada pela eleição e pela desejável reeleição de António
Guterres e pela abertura a todos os azimutes da presidência portuguesa no
Conselho da União Europeia”.
O reeleito, ora empossado, apresentou o seu perfil de “independência,
espírito de compromisso e estabilidade, proximidade, afeto, preferência pelos
excluídos, honestidade, convergência no essencial, alternativa entre duas áreas
fortes, sustentáveis e credíveis, rejeição de messianismos presidenciais, no
exercício de poder ou na antecipada nostalgia do termo desse exercício, no
respeito pela diferença e pelo pluralismo, na construção da justiça social, no
orgulho de ser Portugal, de ser português”. E prosseguiu:
“Foi assim e assim
será, com qualquer maioria parlamentar, com qualquer Governo, antes e depois
das eleições autárquicas, antes e depois das eleições parlamentares, antes e depois
das eleições europeias, antes e depois dos 50 anos do 25 de abril em 2024”.
Por outro lado, realçou que, pela primeira vez em democracia um
Presidente “toma posse em estado de emergência” e que, durante a pandemia, o
Parlamento “nunca deixou de funcionar ao serviço dos portugueses”, pelo que
agradeceu aos deputados “o exemplo de dedicação à democracia, nunca aceitando
calá-la, nunca aceitando suspendê-la, nunca aceitando fazê-la refém”. E formulou
a primeira lição do dia de hoje:
“Vivemos em democracia, queremos continuar a viver
em democracia, e em democracia combater as mais graves pandemias. Preferimos a
liberdade à opressão, o diálogo ao monólogo, o pluralismo à censura, e
demonstrámo-lo realizando duas eleições em pandemia, de uma das quais resultou
a subida da oposição ao Governo.”.
É de registar que Marcelo iniciou o discurso referindo os “reformados
ou pensionistas pobres”, os “desempregados ou em lay off”, os “trabalhadores
e empresários precários”, as crianças, jovens, famílias, professores e não
docentes “atropelados em dois anos letivos”, os profissionais de saúde e os que
perderam entes queridos nestes tempos de pandemia. E vincou a urgência de “manter
e aperfeiçoar as medidas” de sobrevivência imediata do tecido social e económico
e da sua mais rápida reconstrução e “usar os fundos europeus com clareza estratégica, boa gestão,
transparência e eficácia, na resiliência social, na qualificação, na transição
energética, no digital”.
***
É óbvio que
os dois oradores puxaram pelos aspetos positivos da situação, omitindo
fenómenos de descontentamento real e crescente, o que se compreende num dia de
festa, e cada um salientou o contributo do órgão de soberania de que é o rosto,
quer deixando adivinhar um espírito de competição, quer evidenciando um sentido
de cooperação estratégica e lealdade institucional. Todavia, pelos vistos
alguém não gostou da reiteração solene da saúde atual da nossa Democracia, Deus
perdoará, que tem o poder de perdoar tudo!
2021.03.09 –
Louro de Carvalho
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