terça-feira, 9 de março de 2021

Na tomada de posse do Presidente da República reeleito

 

Decorreu, neste dia 9 de março, a sessão solene da Assembleia da República (AR) para testemunhar a tomada de posse do Presidente da República, em cumprimento do disposto na Constituição (CRP), o que é, no dizer de Ferro Rodrigues, um dos atos mais importantes da nossa democracia, tendo como intervenientes, num exemplo perfeito de interdependência, os dois órgãos de soberania que colhem a sua legitimidade no sufrágio universal e direto”.

No seu discurso, o Presidente da Assembleia da República (PAR) acusou a pandemia de não admitir que a cerimónia tivesse a dimensão devida, como noutros tempos, mas defendeu que “o formato restrito da cerimónia” não lhe subtrai a “solenidade, significado ou audiência atenta”.

Frisou que a eleição presidencial e a respetiva campanha se realizaram num quadro de pandemia e sob as restrições do estado de emergência, mas que, apesar disso, se apresentaram a sufrágio vários “candidatos, patenteando a maior diversidade ideológica em ato semelhante, até à data”.

Vincou “a forma clara e expressiva” eleição de Marcelo Rebelo de Sousa “com um significativo acréscimo de votos face ao resultado de 2016”. E observou que o ato eleitoral ocorreu na data designada, sem percalços” tendo contrariado “os receios mais alarmistas e confirmando a desnecessidade do recurso a expedientes circunstanciais, que seriam verdadeiras entorses à democracia” (em seu entender o adiamento da eleição contrariaria a democracia, do que discordo), sendo “em contextos de crise ou em circunstâncias extraordinárias” que, segundo Ferro Rodrigues, “temos de ser intransigentes na defesa da democracia e exigentes no cumprimento das suas regras”. E, neste particular, deixou “uma palavra de reconhecimento” a quem exerceu o direito de voto e a quantos “tornaram possível este ato eleitoral”.

Do mandato presidencial, “repleto de momentos marcantes”, salientou: a reposição de direitos e garantias retirados no tempo da troika e o esvaziamento da tensão social e institucional; a superação da crise económica e financeira e consecução do primeiro excedente orçamental em democracia; os assinaláveis sucessos internacionais alcançados, nas frentes diplomática, cultural e desportiva, com destaque para a eleição de Guterres como Secretário-Geral das Nações Unidas – factos a que não foi alheio o prestimoso contributo do Presidente da República.

Anotando que, nestes anos, se realizaram, “em normalidade democrática, eleições legislativas, regionais, autárquicas e europeias”, tendo, nalguns casos, resultado “reconfigurações do panorama político, com o surgimento de novas forças políticas”, vincou a diversidade e inclusividade em que se tornou a nossa democracia, “com uma representatividade acrescida, reveladora de um Portugal com um pleno sentido da liberdade, sem restrições ou mordaças” (o que foi visto como remoque a recentes declarações de Cavaco Silva).

Paralelamente, Ferro Rodrigues reviu factos dramáticos, que testaram as nossas capacidades políticas e éticas, como: os incêndios de 2017, que ceifaram mais de 100 vidas e destruíram casas, empresas, empregos; e a pandemia, que afeta, persistente e impiedosa, toda a população e todos os setores de atividade, com forte impacto social, económico e financeiro e um custo em vidas humanas, que ontem ascendia a 16.565. Porém, observou que foi possível não adicionar a isto “uma crise política”, de sérias consequências a nível interno e ao nível da imagem externa de Portugal, tendo sido crucial o papel moderador do Chefe de Estado.

Evocando afirmação do Presidente na noite da reeleição, priorizou a ultrapassagem da pandemia como “objetivo que só se alcança num esforço conjunto, enquanto comunidade”. Referiu o contributo da AR nesta luta, autorizando as declarações de Estado de Emergência, fiscalizando as medidas do Governo para evitar as consequências da pandemia e propondo medidas adicionais ou alternativas. E verificou, para lá das divergências, o “reconhecimento pela larga maioria dos agentes políticos do que é essencial e da responsabilidade histórica que sobre nós impende”, mostrando-se convicto de que os deputados saberão “estar à altura das suas obrigações e do contributo que lhes é exigido”.

Considerando que, debelada a pandemia, importa reparar todos os danos causados e eliminar as debilidades estruturais que persistem e limitam o potencial de desenvolvimento do País, frisou que, para tal, vêm sendo “apresentados e aprovados, após discussão pública, os instrumentos e os projetos estruturantes entendidos como fundamentais”. E observou que, mais do que as acusações de que não se discutem os assuntos, é notória “a ausência de consequências práticas dos debates”. E, exemplificando com “a discussão sobre a localização do novo aeroporto de Lisboa, que leva já 52 anos, e que, a cada ano que passa, se torna mais difícil”, disse:

Há um momento em que é necessário dar a discussão por concluída e decidir. É isso que esperam de nós; para isso fomos eleitos: para tomar decisões e para resolver os problemas que afetam o País.”.

Depois, referiu a necessidade de “garantir a boa utilização dos dinheiros públicos e dos fundos europeus”, de modo que “a recuperação prevista não deixe ninguém para trás, que sejam asseguradas mais oportunidades de ascensão social, sem a qual não há desenvolvimento”, sublinhando o papel essencial da AR neste processo (o que parece contrariar a tese de que o Presidente, a pretexto da remodelação da sua Casa Civil, estaria a criar uma comissão para este efeito).

Diz o PAR que, neste desafio, contamos com a solidariedade e o contributo da UE, que tem tido um papel fundamental na articulação e mobilização dos meios necessários para uma resposta europeia na saúde pública e na redução do impacto socioeconómico devastador desta pandemia.

No quadro do papel de Portugal na Presidência do Conselho da União Europeia, agradeceu aos paramentares que, “nas Comissões Permanentes, têm velado pelo respeito pelos direitos consagrados no Tratado de Lisboa aos Parlamentos Nacionais”, e que tanto se têm empenhado “em assegurar a realização das ações” propostas para “o Semestre em curso”.

E, sobre a atividade parlamentar nesta matéria, destacou a visita do Colégio de Comissários e as várias iniciativas levadas a cabo, de que realçou duas conferências interparlamentares, que tiveram um propósito comum, o de pensar estrategicamente a Europa: uma, sobre a estabilidade e governação económica, organizada com o Parlamento Europeu e o seu Presidente; e outra, sobre a Política Externa e de Segurança Comum e a Política Comum de Segurança e Defesa.

Na verdade, como bem declara o Tratado de Lisboa, “os Parlamentos Nacionais contribuem ativamente para o bom funcionamento da União”, pois “a cooperação internacional sempre fez parte integrante da nossa matriz democrática e da nossa política externa”.

Por outro lado, esta cooperação é hoje mais necessária, porquanto “nenhum país sozinho pode vencer ou superar as consequências da pandemia”. E, citando o Papa Francisco no sentido de que, “perante um desafio que não conhece fronteiras, não se podem erguer barreiras”, acentuou que “os muros do nacionalismo e do populismo são impotentes para travar a pandemia”.

Depois, evocando o apelo e a advertência de António Guterres sobre a necessidade absoluta de todos terem acesso à vacinação contra a covid-19, considerou:

Estamos perante um imperativo ético de bem comum e uma exigência de gestão pública, porquanto, como o mostram as variantes do vírus, nenhum de nós estará a salvo enquanto outros lutam pela vida em condições de miséria económica, de conflito armado ou, tão simplesmente, de falta de acesso à saúde pública”. 

Reportando-se a asserções de Marcelo na noite eleitoral de 24 de janeiro, o PAR sublinhou o repúdio do extremismo por parte dos Portugueses, o qual “exige ação e resposta determinadas”.

E disse que o surgimento de organizações extremistas avisam que a democracia no mundo está sob ataque e a liberdade está em declínio há 15 anos, mesmo na UE de sólidas tradições democráticas, não chegando a um quinto a população que vive em países totalmente livres – tendência que preocupa governos e forças de segurança de países democráticos, bem como organizações internacionais ou religiosas.

Enfatizou, a seguir, que a promoção do autoritarismo e da reivindicação da sua pretensa melhor capacidade de resposta aos problemas atuais, surge por vezes sob a capa de nacional-populismo e de movimentos inorgânicos e que “o radicalismo e o extremismo” são “perigos para a democracia, com as dicotomias antissistema, repletas de respostas falaciosas e impraticáveis, sem adesão à realidade e com difícil relação com a verdade e os factos” – fenómeno que se aproveita do atual afastamento de parte da população das instituições, partidos políticos, associações ou sindicatos tradicionais, que sentem muitas vezes já não os representar. 

E Ferro Rodrigues insta a que não deixemos, como políticos e como cidadãos, que “aquilo que chega a parecer uma tendência suicidária de algumas democracias nos afete”.

Mas, como estes itens não podem esgotar as nossas preocupações, Ferro Rodrigues sentenciou:

Outros há que merecem a nossa melhor atenção e que, certamente, teremos a oportunidade de sobre eles agir, como sejam as alterações climáticas, a qualificação da população, a transição digital, ou a questão das migrações e asilo. As mudanças estruturais de Portugal são hoje uma necessidade histórica.”.

Por fim, assinalando que, durante o 2.º mandato de Marcelo, o regime fundado em “25 de Abril” ultrapassará, em longevidade, o regime salazarista e celebrará o seu 50.º aniversário, o PAR disse aprazer-lhe “que, nessas datas marcantes, Portugal tenha na Presidência da República um defensor acérrimo da democracia e dos seus princípios, que respeita o pluralismo e a diferença, e que nunca desiste da justiça social”. E, afiançando a justeza do novo mandato, confessou:

Estou certo de que o novo mandato de Vossa Excelência se pautará, como no que acaba de terminar, pelo mais estrito e imparcial respeito pelos valores e princípios constitucionais, e que manterá com a Assembleia da República as mais cordiais relações institucionais, em total deferência pelo princípio da separação dos poderes e da interdependência, e tendo sempre presente que é aqui, no Parlamento, que se encontra representada a sociedade portuguesa, na sua diversidade e pluralidade”.

E protestou ao Chefe de Estado a total lealdade institucional da AR e do seu Presidente.

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Por seu turno, o Presidente da República, que tem dito que “os segundos mandatos são sempre mais difíceis do que os primeiros”, no seu discurso, elencou 5 desafios: melhor democracia, combate à covid-19, recuperação económica, coesão social e protagonismo internacional do país.

- Quer uma “melhor democracia”, em que a tolerância, o respeito por todos, para lá do género, cor da pele, credo, convicções pessoais, políticas e sociais “não sejam sacrificados ao mito do português puro, da casta iluminada, dos antigos e novos privilegiados” – democracia de limitação dos mandatos, convergência no regime e alternativa clara na governação, estabilidade sem pântano, justiça com segurança, renovação que evite rutura, antecipação que impeça decadência, proximidade que impossibilite deslumbramento, arrogância, abuso do poder.

- Quer um “combate à propagação da covid-19” em Portugal “em espírito da mais ampla unidade possível”, para que haja menos mortos e casos de infeção e mais vacinação, testagem e rastreio; quer o desconfinamento “com sensatez e sucesso” e sem “nova exaustação das estruturas de saúde e dos seus heróis”.

- Quer para 2021 e para os anos que se seguem – tempo inevitavelmente mais longo –, a total “reconstrução da vida das pessoas”: emprego, rendimentos, empresas, saúde mental, laços sociais, vivências e sonhos, “o que é muito mais do que recuperar, ou seja, regressar a 2019 ou a fevereiro de 2020”. Não basta pensar no curto prazo. Há que acautelar o futuro com solidez.

- Quer “a coesão social”. E, a este respeito, considerou que, embora seja o mesmo de há 5 anos e que foi eleito e reeleito nos mesmos termos, porém, avisou que só há “verdadeira reconstrução se a pobreza se reduzir, os focos de carência alimentar extrema desaparecerem, as desigualdades se esbaterem, a exclusão diminuir, a clivagem entre gerações e entre territórios for superada”.

- Quer, por fim, mas não menos importante, o aprofundamento do “protagonismo de Portugal no plano internacional” como “plataforma entre culturas, oceanos e continentes, simbolizada pela eleição e pela desejável reeleição de António Guterres e pela abertura a todos os azimutes da presidência portuguesa no Conselho da União Europeia”.

O reeleito, ora empossado, apresentou o seu perfil de “independência, espírito de compromisso e estabilidade, proximidade, afeto, preferência pelos excluídos, honestidade, convergência no essencial, alternativa entre duas áreas fortes, sustentáveis e credíveis, rejeição de messianismos presidenciais, no exercício de poder ou na antecipada nostalgia do termo desse exercício, no respeito pela diferença e pelo pluralismo, na construção da justiça social, no orgulho de ser Portugal, de ser português”. E prosseguiu:

Foi assim e assim será, com qualquer maioria parlamentar, com qualquer Governo, antes e depois das eleições autárquicas, antes e depois das eleições parlamentares, antes e depois das eleições europeias, antes e depois dos 50 anos do 25 de abril em 2024”.

Por outro lado, realçou que, pela primeira vez em democracia um Presidente “toma posse em estado de emergência” e que, durante a pandemia, o Parlamento “nunca deixou de funcionar ao serviço dos portugueses”, pelo que agradeceu aos deputados “o exemplo de dedicação à democracia, nunca aceitando calá-la, nunca aceitando suspendê-la, nunca aceitando fazê-la refém”. E formulou a primeira lição do dia de hoje:

“Vivemos em democracia, queremos continuar a viver em democracia, e em democracia combater as mais graves pandemias. Preferimos a liberdade à opressão, o diálogo ao monólogo, o pluralismo à censura, e demonstrámo-lo realizando duas eleições em pandemia, de uma das quais resultou a subida da oposição ao Governo.”.

É de registar que Marcelo iniciou o discurso referindo os “reformados ou pensionistas pobres”, os “desempregados ou em lay off”, os “trabalhadores e empresários precários”, as crianças, jovens, famílias, professores e não docentes “atropelados em dois anos letivos”, os profissionais de saúde e os que perderam entes queridos nestes tempos de pandemia. E vincou a urgência de “manter e aperfeiçoar as medidas” de sobrevivência imediata do tecido social e económico e da sua mais rápida reconstrução e “usar os fundos europeus com clareza estratégica, boa gestão, transparência e eficácia, na resiliência social, na qualificação, na transição energética, no digital.

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É óbvio que os dois oradores puxaram pelos aspetos positivos da situação, omitindo fenómenos de descontentamento real e crescente, o que se compreende num dia de festa, e cada um salientou o contributo do órgão de soberania de que é o rosto, quer deixando adivinhar um espírito de competição, quer evidenciando um sentido de cooperação estratégica e lealdade institucional. Todavia, pelos vistos alguém não gostou da reiteração solene da saúde atual da nossa Democracia, Deus perdoará, que tem o poder de perdoar tudo!  

2021.03.09 – Louro de Carvalho

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