quarta-feira, 3 de março de 2021

A grande participação dos portugueses no debate do PRR continua

 

Poucas estratégias governamentais terão sido tão lidas e debatidas pela sociedade civil como o PRR (Plano de Recuperação e Resiliência), em discussão pública de 15 de fevereiro a 1 de março, sobretudo no atinente à repartição dos €13,9 mil milhões de subsídios a fundo perdido.

Já se contava com uma participação recorde, porém, mais um fim de semana de confinamento triplicou o número de críticas e sugestões ao PRR. Porém, muitos preferiram à participação no debate a crítica (pouco fundada) nos meios de comunicação social e nas redes sociais, dando a entender que o PRR é a única fonte de recuperação do país e de relançamento da economia.

Terminada a consulta pública à meia-noite do dia 1, o Governo não tardará a anunciar que tem perto de dois milhares de comentários para ler. E o Ministro do Planeamento, Nelson de Souza, corre contra o tempo para aprimorar a lista de reformas e investimentos a submeter à Comissão Europeia, pois o documento seguirá para Bruxelas nas próximas semanas, se o país quiser receber a primeira fatia do PRR ainda neste semestre.

E restará a indignação de tantos por não verem no PRR a satisfação de suas aspirações: do litoral sobrepopulado ao interior desertificado, dos desportistas aos agentes culturais. E os que lá têm inscritos os seus interesses querem mais: mais poder para decidir, como sucede com a região Norte, ou mais dinheiro para sair da crise, como sucede com os empresários. Mas a polémica incide sobretudo a repartição do bolo de fundos europeus pelo setor público e pelo privado e sobre os dinheiros que se esperam a fundo perdido, o que vem gerando uma crescente guerra de números entre empresários, alguns autarcas, governo e oposição...

As confederações empresariais alegam que 2/3 do PRR vão para o setor público e a AEP (Associação Empresarial de Portugal) diz que só 24% das subvenções serão alocadas diretamente às empresas. A isto, o Primeiro-Ministro responde num vídeo a quantificar em €4,6 mil milhões os apoios diretos do PRR às empresas, sem incluir os apoios indiretos ou as compras e obras públicas que o Ministro do Planeamento estima representarem um estímulo adicional de €10 mil milhões à procura dirigida às empresas. Os economistas do CEN (conselho estratégico nacional) do PSD sobem a parada para €13 mil milhões, ao somarem os fundos de recuperação aos fundos do próximo quadro comunitário do Portugal 2030. E a Ministra da Coesão Territorial estima em, pelo menos, €14,5 mil milhões os apoios que os empresários terão para investir na próxima década. Com efeito, aos fundos do PRR e do Portugal 2030, a governante acrescenta os fundos do REACT-EU e os do atual quadro Portugal 2020 que ainda estão por investir.

O REACT-EU (Recovery Assistance for Cohesion and the Territories of Europe ) é o cofre menos referido de fundos, mas o Governo mobiliza-o para acudir aos empresários mais fustigados pela crise, como sucede com o programa Apoiar, que o Ministro da Economia prometeu reforçar. E é de registar que as empresas têm, pelo menos, €3,2 mil milhões de fundos do Portugal 2020 por gastar, alguns autarcas chegaram a 2021 com 0% de taxa de execução e ministros têm obras públicas complexas para inaugurar até 2023, pelo que o Ministro do Planeamento admite a possibilidade de fazer transitar projetos do Portugal 2020 para o Portugal 2030. Está visto que não são apenas os empresários que devem acelerar os investimentos deste quadro comunitário.

Por isso o ano de 2021 tem um duplo desafio: acelerar a execução dos velhos fundos europeus enquanto se preparam as candidaturas aos novos fundos europeus para o país recuperar da crise mais resiliente, verde e digital, como é o caso dos autarcas interessados em modernizar as suas velhas zonas industriais ou dos empresários aflitos em saltarem para o digital. É um total de €50 mil milhões de novos subsídios europeus que chegarão a Portugal entre 2021 e 2029, sem contar com os €11 mil milhões que o país tem para gastar do Portugal 2020 (soma tudo €61 mil milhões).

Por isso, os governantes, os peritos, os empresários e as oposições estarão atentos à gestão destes fundos, sobretudo no respeitante à qualidade da sua execução.

Para já, do 1.º (no dia 19 de fevereiro) de 4 debates que o Expresso está a dinamizar na internet com a Deloitte para que Portugal não desperdice os €61 mil milhões de subsídios europeus a que tem direito entre 2021 e 2029, resultou o enunciado de 10 regras ou mandamentos.  

O Ministro do Planeamento, que coordena a aplicação dos fundos europeus no país, apelou à “forte capacidade dos setores público e privado” para mais do que duplicarem a taxa de absorção das verbas europeias para uma média anual de €6,8 mil milhões – verbas que virão, simultaneamente, do atual quadro comunitário Portugal 2020 até 2023, do futuro Portugal 2030 até 2029 ou do extraordinário Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) até 2026.

Os ditos dez mandamentos saíram do debate entre António Saraiva, presidente da Confederação Empresarial de Portugal (CIP); Carlos Pina, presidente do Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC); Amílcar Falcão, reitor da Universidade de Coimbra (UC); e Miguel Eiras Antunes, Partner e Public Sector, Transportation, Automotive & Tourism Leader da Deloitte.

São estes os dez mandamentos saídos do primeiro webinar Deloitte/Expresso dedicado à resiliência e à aceleração económica para um país mais coeso e competitivo.

- Começar cedo para não perder tempo (I). Eiras Antunes lembra quantos atrasos na execução dos fundos europeus se devem ao facto de não haver projetos suficientes ou de não serem bem instruídos, pelo que importa “investir em antecipação e planeamento para estarmos preparados para começar a executar”, visto que precisamos de garantir as capacidades necessárias para estruturar projetos que façam sentido, “para acelerar a preparação dos dossiês para nos candidatarmos, o que é um processo extremamente burocrático” e, “para gerirmos os projetos e os executar a tempo”. E Amílcar Falcão preconiza que “organização e planeamento são palavras-chave para os tempos que aí vêm”, pois, sem isso, não conseguiremos atingir os nossos objetivos e “ou nos adaptamos à ideia ou ficamos pelo caminho”.

- Simplificar para desburocratizar (II). António Saraiva alerta para “a complexa burocracia de acesso aos programas e aos fundos” e exige “simplificar os processos nesta como noutras áreas da administração pública para que o aproveitamento possa ser conseguido”. Eiras Antunes quer que a administração pública agilize os processos de contratação dos fundos europeus, incluindo critérios de aprovação mais simples e rigorosos na aprovação dos projetos de investimento. E, para Amílcar Falcão, “desburocratizar é uma palavra-chave para conseguirmos uma boa execução”, pois, “às vezes, é um pesadelo completo, executar este tipo de verbas por coisas tão simples como as consultas prévias em obras.

- Melhorar a contratação pública (III). Para o presidente do LNEC, importa minimizar a burocracia e a litigância dos concursos públicos, sendo que “este aspeto da contratação pública merece uns pequenos ajustes”. Por outro lado, entende que “é extremamente importante que se apresentem bons projetos, porque um mau projeto representa claramente uma má execução” física e financeira; e, se a sustentabilidade e a transição digital são prioridades, também devem ser valorizadas na contratação pública. E, vendo que “temos de valorizar a qualidade do que vai ser feito” contra “a cultura do preço mais baixo, que muitas vezes corresponde a não execução”, critica a permissão de “candidaturas e adjudicações com preços claramente inferiores ao que é possível executar”, o que se traduzirá em “problemas graves ao longo da execução e, muitas vezes, como tem acontecido, a novos concursos e ao atraso dos trabalhos”.

- Acompanhar mais e fiscalizar melhor (IV). António Saraiva defende que “esta duplicação de verbas tem de ser bem acompanhada”. Daí a exigência da CIP em querer que, “também ao nível dos parceiros sociais, haja um acompanhamento no sentido de obter resultados”. E Carlos Pina adverte que tal acompanhamento “não se deve cingir à execução financeira”, mas abranger “a qualidade da execução física dos projetos”, nomeadamente no atinente à sustentabilidade das intervenções, aos impactos ambientais, sociais e ao nível da coesão territorial. E justifica:

A criação do LNEC ocorreu precisamente numa altura em que o país fez um investimento muito grande a seguir à II Guerra Mundial, com o plano Marshall, e não só. O LNEC teve uma participação ativa para que esses fundos fossem utilizados de uma forma adequada e com qualidade. Do nosso ponto de vista, essa é a questão mais difícil e preocupante. A experiência que temos sobre o aproveitamento dos fundos europeus é bastante significativa e acima da média dos países europeus. Em termos de execução financeira, acredito que venhamos a concretizar os objetivos ou pelo menos grande parte. A dificuldade é aproveitá-los bem.”.

Já Amílcar Falcão propõe que se fiscalize a aplicação dos fundos “através de auditorias cirúrgicas”, pois a fiscalização, se for bem feita e organizada, “pode fazer ultrapassar muitos dos problemas que vimos no passado porque auditar um processo destes não é necessariamente andar a ver todos os documentos de forma exaustiva e a incomodar as pessoas”. E a fiscalização pode ser ágil, transmitir confiança e contribuir para aumentar a velocidade da execução.

- Ouvir e apoiar o país todo (V). Contra a possibilidade de a maioria dos fundos ficar em Lisboa e no Porto, Amílcar Falcão avisa que “é fundamental que se olhe para o território todo e que se tenha em consideração a coesão territorial por todas as questões de justiça social, paz social e desenvolvimento harmónico do país”. Por isso, surge como palavra-chave a “descentralização” para a boa execução dos fundos europeus, pelo que o Governo deve ouvir realmente quem aplica os fundos nos diferentes territórios, uma vez que cada região tem as suas especificidades. Não se trata só de audição pública do documento, mas de política de proximidade, pois, às vezes, pequenos retoques fazem toda a diferença na forma se aplicam os fundos e se obtêm bons projetos. E deve haver lugar para os atores poderem exprimir as suas necessidades e procurarem encontrar equilíbrios nos investimentos a fazer. E Eiras Antunes pede clarificação sobre o papel que as diferentes cidades podem assumir na execução do PRR.

- Reforçar o número de funcionários públicos (VI). Dado o provável aumento de trabalho no setor, Eiras Antunes avisa que devem ser reforçados serviços públicos ligados aos fundos europeus. Primeiro, deve melhorar-se o processo de comunicação e divulgação da informação e segmentá-la do ponto de vista regional, setorial, etc., o que postula uma equipa apta para tal. Com efeito, se as empresas e demais beneficiários não conhecem as oportunidades, não se podem candidatar aos fundos europeus. Depois, é preciso melhorar “o ciclo de análise e de aprovação dos fundos europeus”, o implica a agilização dos “processos de contratação dos fundos europeus”, bem como o dimensionamento correto das equipas de análise e aprovação das candidaturas e das equipas de acompanhamento e fiscalização dos projetos.  

- Capitalizar e fundir empresas (VII). Estas, no dizer do presidente da CIP, não podem, desperdiçar as verbas europeias para darem o “salto qualitativo” em termos da maior resiliência, digitalização e sustentabilidade, até porque, “depois da pandemia, teremos todo um mundo de competitividade e desenvolvimento para ganhar”. Tendo nós “um problema de escala”, ou seja, “uma dimensão empresarial que exige fusões e aquisições”, pelo facto de os capitais próprios compararem mal com as congéneres europeias ao nível das pequenas e médias empresas, urge o reforço desses capitais, com o que não é compatível o atraso na capitalização das empresas por via do Banco Português de Fomento. É certo que o PRR prevê verbas para o efeito, mas que chegarão, na melhor das hipóteses, no quarto trimestre deste ano.

- Incentivar as construtoras (VIII). Face à situação económica do país, Carlos Pina alerta que as empresas têm de conseguir responder a este desafio, em particular, a fileira da construção que se deve adaptar à dimensão financeira do desafio. E, atendendo ao volume e à diversa proveniência dos fundos alocáveis ao setor na construção e da edificação em geral, designadamente no campo da saúde, mobilidade e recursos hídricos, este setor, “relativamente depauperado”, vai enfrentar grandes desafios. Com efeito, nos últimos anos as empresas da construção e da edificação em geral tiveram de alterar a sua forma de atuar, trabalhando muito no estrangeiro, tal como “houve muita deslocalização da capacidade técnica de engenharia”. Logo, o setor terá de se adaptar e contar com a participação de empresas estrangeiras, em especial espanholas, o que “exige um acompanhamento” próximo da execução e “cuidado acrescido na fiscalização”.

- Valorizar as universidades (IX). O sucesso desta vaga de fundos também depende da valorização das instituições de ensino superior, pois não há inovação nas empresas sem investigação e desenvolvimento e as universidades e os institutos politécnicos não podem continuar arredados dos concursos que apoiam a generalidade da administração pública, para investir no seu património e edificado ou na sua descarbonização e digitalização. Por isso, o reitor da UC pede que “deixem as instituições de ensino superior concorrer de forma competitiva com os seus projetos aos vários concursos de acesso aos fundos europeus”, já que são institutos públicos como os outros, têm edifícios como os outros, que “estão envelhecidos como os outros, que necessitam de obras como os outros”. E acusa:

Quando se fala na digitalização e no ensino à distância, há uma preocupação com os computadores e o acesso à internet, mas nenhum dos presentes ouviu nada disso sobre o ensino superior. Parece que os problemas acabaram no 12.º ano e isso não é verdade.”.

De facto, as universidades também precisam de verbas para ajudarem as empresas a inovar, porque a “montante da inovação, temos de investir na investigação e desenvolvimento”.

- Unir esforços e trabalhar em conjunto (X). É consensual que uma boa aplicação dos fundos depende da cooperação de múltiplos intervenientes (públicos e privados). E Carlos Pina sintetiza:

Este plano só terá sucesso se toda a sociedade, o setor privado e o setor público, souberem envolver-se adequadamente. Só assim conseguiremos atingir os objetivos.”.

António Saraiva diz:

É um esforço de atuação de todos os agentes, desde empresas, Governo, centros de investigação e de inovação… Há aqui toda uma partilha nesta sempre virtuosa relação de parcerias público privadas.”.

E Eiras Antunes, focado na importância da cooperação entre o setor público e o privado para a execução dos fundos europeus, a começar pelo PRR, remata:

Uma parceria público privada que pode ser feita de inúmeras maneiras, seja em projetos conjuntos, seja no que quer que seja”.

***

Enfim, não é por falta de lucidez que os fundos não serão corretamente aplicados, mas eventualmente por amiguismo, corrupção ou falta de vontade política. Precisamos de bons gestores da coisa pública.

2021.03.03 – Louro de Carvalho

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