Poucas
estratégias governamentais terão sido tão lidas e debatidas pela sociedade
civil como o PRR (Plano de Recuperação e Resiliência), em discussão pública de 15 de fevereiro a 1 de março,
sobretudo no atinente à repartição dos €13,9 mil milhões de subsídios a fundo
perdido.
Já se
contava com uma participação recorde, porém, mais um fim de semana de
confinamento triplicou o número de críticas e sugestões ao PRR. Porém, muitos
preferiram à participação no debate a crítica (pouco fundada) nos meios de comunicação social e nas redes sociais,
dando a entender que o PRR é a única fonte de recuperação do país e de relançamento
da economia.
Terminada a
consulta pública à meia-noite do dia 1, o Governo não tardará a anunciar que
tem perto de dois milhares de comentários para ler. E o Ministro do Planeamento,
Nelson de Souza, corre contra o tempo para aprimorar a lista de reformas e
investimentos a submeter à Comissão Europeia, pois o documento seguirá para
Bruxelas nas próximas semanas, se o país quiser receber a primeira fatia do PRR
ainda neste semestre.
E restará a
indignação de tantos por não verem no PRR a satisfação de suas aspirações: do litoral
sobrepopulado ao interior desertificado, dos desportistas aos agentes culturais.
E os que lá têm inscritos os seus interesses querem mais: mais poder para
decidir, como sucede com a região Norte, ou mais dinheiro para sair da crise,
como sucede com os empresários. Mas a polémica incide sobretudo a repartição do
bolo de fundos europeus pelo setor público e pelo privado e sobre os dinheiros
que se esperam a fundo perdido, o que vem gerando uma crescente guerra de
números entre empresários, alguns autarcas, governo e oposição...
As confederações
empresariais alegam que 2/3 do PRR vão para o setor público e a AEP (Associação
Empresarial de Portugal) diz que
só 24% das subvenções serão alocadas diretamente às empresas. A isto,
o Primeiro-Ministro responde num vídeo a quantificar em €4,6 mil milhões os
apoios diretos do PRR às empresas, sem incluir os apoios indiretos ou as compras
e obras públicas que o Ministro do Planeamento estima representarem um estímulo
adicional de €10 mil milhões à procura dirigida às empresas. Os
economistas do CEN (conselho estratégico nacional) do PSD sobem a parada para €13 mil milhões, ao
somarem os fundos de recuperação aos fundos do próximo quadro comunitário do
Portugal 2030. E a Ministra da Coesão Territorial estima em, pelo menos, €14,5
mil milhões os apoios que os empresários terão para investir na próxima
década. Com efeito, aos fundos do PRR e do Portugal 2030, a governante
acrescenta os fundos do REACT-EU e os do atual quadro Portugal 2020 que ainda
estão por investir.
O REACT-EU (Recovery
Assistance for Cohesion and the Territories of Europe ) é o cofre menos referido de fundos, mas o Governo mobiliza-o para acudir
aos empresários mais fustigados pela crise, como sucede com o programa Apoiar, que o Ministro da Economia prometeu reforçar.
E é de registar que as empresas têm, pelo menos, €3,2 mil milhões de
fundos do Portugal 2020 por gastar, alguns autarcas chegaram a 2021 com 0%
de taxa de execução e ministros têm obras públicas complexas para
inaugurar até 2023, pelo que o Ministro do Planeamento admite a possibilidade
de fazer transitar projetos do Portugal 2020 para o Portugal 2030.
Está visto que não são apenas os empresários que devem acelerar os investimentos
deste quadro comunitário.
Por isso o
ano de 2021 tem um duplo desafio: acelerar a execução dos velhos fundos
europeus enquanto se preparam as candidaturas aos novos fundos europeus para o
país recuperar da crise mais resiliente, verde e digital, como é o caso
dos autarcas interessados em modernizar as suas velhas zonas
industriais ou dos empresários aflitos em saltarem para o digital. É
um total de €50 mil milhões de novos subsídios europeus que chegarão a Portugal
entre 2021 e 2029, sem contar com os €11 mil milhões que o país tem para gastar
do Portugal 2020 (soma tudo €61 mil milhões).
Por isso, os
governantes, os peritos, os empresários e as oposições estarão atentos à gestão
destes fundos, sobretudo no respeitante à qualidade da sua execução.
Para já, do 1.º (no dia 19 de fevereiro) de 4 debates que o Expresso está a dinamizar na internet com a Deloitte para que Portugal
não desperdice os €61 mil milhões de subsídios europeus a que tem direito entre
2021 e 2029, resultou o enunciado de 10 regras ou mandamentos.
O Ministro do Planeamento, que coordena a aplicação
dos fundos europeus no país, apelou à “forte capacidade dos setores público e
privado” para mais do que duplicarem a taxa de absorção das verbas europeias
para uma média anual de €6,8 mil milhões – verbas que virão, simultaneamente,
do atual quadro comunitário Portugal 2020 até 2023, do futuro Portugal 2030 até
2029 ou do extraordinário Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) até 2026.
Os ditos dez mandamentos saíram do debate entre
António Saraiva, presidente da Confederação Empresarial de Portugal (CIP); Carlos Pina, presidente do Laboratório Nacional de
Engenharia Civil (LNEC);
Amílcar Falcão, reitor da Universidade de Coimbra (UC); e Miguel Eiras Antunes, Partner e Public
Sector, Transportation, Automotive & Tourism Leader da Deloitte.
São estes os dez mandamentos saídos do primeiro
webinar Deloitte/Expresso dedicado à
resiliência e à aceleração económica para um país mais coeso e competitivo.
- Começar cedo para não perder tempo (I). Eiras Antunes lembra quantos atrasos na execução dos fundos europeus se devem ao
facto de não haver projetos suficientes ou de não serem bem instruídos, pelo
que importa “investir em antecipação e planeamento para estarmos preparados
para começar a executar”, visto que precisamos de garantir as capacidades
necessárias para estruturar projetos que façam sentido, “para acelerar a
preparação dos dossiês para nos candidatarmos, o que é um processo extremamente
burocrático” e, “para gerirmos os projetos e os executar a tempo”. E Amílcar
Falcão preconiza que “organização e planeamento são palavras-chave para os
tempos que aí vêm”, pois, sem isso, não conseguiremos atingir os nossos
objetivos e “ou nos adaptamos à ideia ou
ficamos pelo caminho”.
- Simplificar para desburocratizar (II). António Saraiva alerta para “a complexa burocracia
de acesso aos programas e aos fundos” e exige “simplificar os processos nesta
como noutras áreas da administração pública para que o aproveitamento possa ser
conseguido”. Eiras Antunes quer que a administração pública agilize os processos de contratação dos
fundos europeus, incluindo critérios de aprovação mais simples e rigorosos na
aprovação dos projetos de investimento. E, para Amílcar Falcão, “desburocratizar é uma palavra-chave para conseguirmos uma boa
execução”, pois, “às vezes, é um pesadelo completo, executar este tipo de
verbas por coisas tão simples como as consultas prévias em obras.
- Melhorar a contratação pública (III). Para o presidente do LNEC, importa minimizar a burocracia e a litigância
dos concursos públicos, sendo que “este aspeto da contratação pública merece
uns pequenos ajustes”. Por outro lado, entende que “é extremamente importante que se apresentem bons projetos, porque um
mau projeto representa claramente uma má execução” física e financeira; e, se a
sustentabilidade e a transição digital são prioridades, também devem ser valorizadas
na contratação pública. E, vendo que “temos de valorizar a qualidade do que vai
ser feito” contra “a cultura do preço mais baixo, que muitas vezes corresponde
a não execução”, critica a permissão de “candidaturas e adjudicações com preços
claramente inferiores ao que é possível executar”, o que se traduzirá em “problemas
graves ao longo da execução e, muitas vezes, como tem acontecido, a novos
concursos e ao atraso dos trabalhos”.
- Acompanhar mais e fiscalizar melhor (IV). António
Saraiva defende que “esta duplicação de verbas tem de ser bem acompanhada”. Daí
a exigência da CIP em querer que, “também ao nível dos parceiros sociais, haja
um acompanhamento no sentido de obter resultados”. E Carlos Pina adverte que
tal acompanhamento “não se deve cingir à execução financeira”, mas abranger “a
qualidade da execução física dos projetos”, nomeadamente no atinente à sustentabilidade
das intervenções, aos impactos ambientais, sociais e ao nível da coesão
territorial. E justifica:
“A criação do LNEC ocorreu precisamente numa
altura em que o país fez um investimento muito grande a seguir à II Guerra
Mundial, com o plano Marshall, e não só. O LNEC teve uma participação ativa
para que esses fundos fossem utilizados de uma forma adequada e com qualidade.
Do nosso ponto de vista, essa é a questão mais difícil e preocupante. A
experiência que temos sobre o aproveitamento dos fundos europeus é bastante
significativa e acima da média dos países europeus. Em termos de execução
financeira, acredito que venhamos a concretizar os objetivos ou pelo menos
grande parte. A dificuldade é aproveitá-los bem.”.
Já Amílcar Falcão propõe que se fiscalize a aplicação
dos fundos “através de auditorias cirúrgicas”, pois a fiscalização, se for bem
feita e organizada, “pode fazer ultrapassar muitos dos problemas que vimos no
passado porque auditar um processo destes não é necessariamente andar a ver
todos os documentos de forma exaustiva e a incomodar as pessoas”. E a
fiscalização pode ser ágil, transmitir confiança e contribuir para aumentar a
velocidade da execução.
- Ouvir e apoiar o país todo (V). Contra a possibilidade de a maioria dos fundos ficar
em Lisboa e no Porto, Amílcar Falcão avisa que “é fundamental que se olhe para
o território todo e que se tenha em consideração a coesão territorial por todas
as questões de justiça social, paz social e desenvolvimento harmónico do país”.
Por isso, surge como palavra-chave a “descentralização” para a boa execução dos
fundos europeus, pelo que o Governo deve ouvir realmente quem aplica os fundos
nos diferentes territórios, uma vez que cada região tem as suas
especificidades. Não se trata só de audição pública do documento, mas de
política de proximidade, pois, às vezes, pequenos retoques fazem toda a
diferença na forma se aplicam os fundos e se obtêm bons projetos. E deve haver
lugar para os atores poderem exprimir as suas necessidades e procurarem
encontrar equilíbrios nos investimentos a fazer. E Eiras Antunes pede clarificação sobre o papel que as diferentes
cidades podem assumir na execução do PRR.
- Reforçar o número de funcionários públicos
(VI). Dado o provável aumento de trabalho no setor, Eiras
Antunes avisa que devem ser reforçados serviços públicos ligados aos fundos
europeus. Primeiro, deve melhorar-se o processo de comunicação e divulgação da
informação e segmentá-la do ponto de vista regional, setorial, etc., o que
postula uma equipa apta para tal. Com efeito, se as empresas e demais
beneficiários não conhecem as oportunidades, não se podem candidatar aos fundos
europeus. Depois, é preciso melhorar “o ciclo de análise e de aprovação dos fundos europeus”,
o implica a agilização dos “processos de contratação dos fundos europeus”, bem
como o dimensionamento correto das equipas de análise e aprovação das
candidaturas e das equipas de acompanhamento e fiscalização dos projetos.
- Capitalizar e fundir empresas (VII). Estas, no dizer do presidente da CIP, não podem, desperdiçar
as verbas europeias para darem o “salto qualitativo” em termos da maior
resiliência, digitalização e sustentabilidade, até porque, “depois da pandemia,
teremos todo um mundo de competitividade e desenvolvimento para ganhar”. Tendo
nós “um problema de escala”, ou seja, “uma dimensão empresarial que exige
fusões e aquisições”, pelo facto de os capitais próprios compararem mal com as
congéneres europeias ao nível das pequenas e médias empresas, urge o reforço desses
capitais, com o que não é compatível o atraso na capitalização das empresas por
via do Banco Português de Fomento. É certo que o PRR prevê verbas para o
efeito, mas que chegarão, na melhor das hipóteses, no quarto trimestre deste
ano.
- Incentivar as construtoras (VIII). Face à situação económica do país, Carlos Pina
alerta que as empresas têm de conseguir responder a este desafio, em
particular, a fileira da construção que se deve adaptar à dimensão financeira
do desafio. E, atendendo ao volume e à diversa proveniência dos fundos
alocáveis ao setor na construção e da edificação em geral, designadamente no
campo da saúde, mobilidade e recursos hídricos, este setor, “relativamente
depauperado”, vai enfrentar grandes desafios. Com efeito, nos últimos anos as
empresas da construção e da edificação em geral tiveram de alterar a sua forma
de atuar, trabalhando muito no estrangeiro, tal como “houve muita deslocalização
da capacidade técnica de engenharia”. Logo, o setor terá de se adaptar e contar
com a participação de empresas estrangeiras, em especial espanholas, o que “exige
um acompanhamento” próximo da execução e “cuidado acrescido na fiscalização”.
- Valorizar as universidades (IX). O sucesso desta vaga de fundos também depende da
valorização das instituições de ensino superior, pois não há inovação nas
empresas sem investigação e desenvolvimento e as universidades e os institutos politécnicos
não podem continuar arredados dos concursos que apoiam a generalidade da
administração pública, para investir no seu património e edificado ou na sua
descarbonização e digitalização. Por isso, o reitor da UC pede que “deixem as
instituições de ensino superior concorrer de forma competitiva com os seus
projetos aos vários concursos de acesso aos fundos europeus”, já que são institutos
públicos como os outros, têm edifícios como os outros, que “estão envelhecidos
como os outros, que necessitam de obras como os outros”. E acusa:
“Quando se fala na digitalização e no ensino
à distância, há uma preocupação com os computadores e o acesso à internet, mas
nenhum dos presentes ouviu nada disso sobre o ensino superior. Parece que os
problemas acabaram no 12.º ano e isso não é verdade.”.
De facto, as universidades também precisam de verbas
para ajudarem as empresas a inovar, porque a “montante da inovação, temos de
investir na investigação e desenvolvimento”.
- Unir esforços e trabalhar em conjunto
(X). É consensual que uma boa aplicação dos fundos depende da
cooperação de múltiplos intervenientes (públicos e privados). E Carlos Pina sintetiza:
“Este plano só terá sucesso se toda a
sociedade, o setor privado e o setor público, souberem envolver-se
adequadamente. Só assim conseguiremos atingir os objetivos.”.
António Saraiva diz:
“É um esforço de atuação de todos os
agentes, desde empresas, Governo, centros de investigação e de inovação… Há
aqui toda uma partilha nesta sempre virtuosa relação de parcerias público
privadas.”.
E Eiras Antunes, focado na importância da cooperação
entre o setor público e o privado para a execução dos fundos europeus, a
começar pelo PRR, remata:
“Uma parceria público privada que pode ser
feita de inúmeras maneiras, seja em projetos conjuntos, seja no que quer que
seja”.
***
Enfim, não é por falta de lucidez que os fundos não serão
corretamente aplicados, mas eventualmente por amiguismo, corrupção ou falta de
vontade política. Precisamos de bons gestores da coisa pública.
2021.03.03 – Louro de
Carvalho
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