segunda-feira, 15 de março de 2021

Recomendações do Conselho Nacional de Educação sobre o PRR

 

Por solicitação do Governo, o Conselho Nacional de Educação (CNE) debruçou-se sobre o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) e, depois de analisar em pormenor as componentes diretamente relacionadas com a educação e a formação no PRR, que investirá em diversas áreas nos próximos anos, apresentou um parecer com uma soma de 14 recomendações (algumas com várias alíneas), frisando que “importa concretizar uma visão integrada que possa ser traduzida num plano de ação que contemple o contributo dos diferentes instrumentos financeiros”.

Aponta o órgão de consulta em matéria de política educativa a ausência da atenção à falta de professores e quer um plano estratégico, com visão articulada e operacionalização concertada.

A estrutura do documento abrange: visão integrada da educação e formação, de capital humano e de I&D; contextualização; apreciação do documento; e recomendações.

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Visão integrada da educação e formação, de capital humano e de I&D

No âmbito da visão, o CNE frisa que o país pode aceder a envelope financeiro sem precedentes que atingirá os 50 mil milhões de Euros (M€) em subvenções a que poderão somar-se cerca de 14,2 M€ em empréstimos, podendo originar “uma elevação de investimento público e para-público excecional a diversos títulos, quantitativos e qualitativos, a que só se poderá responder satisfatoriamente com o reforço da capacidade da Administração Pública para planear e organizar operacionalmente o lançamento da execução, do acompanhamento e da avaliação de resultados de uma grande panóplia de processos inovatórios”. Ora isto postula um plano integrado, devidamente estruturado e calendarizado quanto a objetivos e indicadores, missões preparatórias e executivas planeadas, recursos financeiros e humanos afetos às diferentes missões, articulação de responsabilidades e seu modo de escrutínio. Trata-se de instalar no terreno, o mais rapidamente possível, uma Administração Pública, em sentido lato, adequada à sustentação das responsabilidades do Estado, designadamente na educação e formação, capital humano e I&D, uma das mais decisivas áreas de políticas públicas consideradas garantes de prosperidade e bem-estar a médio/longo prazo. Pela primeira vez, Portugal afetará à Educação e Formação, ao Capital Humano e à Investigação e Desenvolvimento os recursos financeiros suficientes para lhes dar o lugar prioritário estratégico que têm na transformação do país a médio e longo prazo, dependendo o resultado “da forma, profundidade, coerência e ambição da visão operacional, política e técnica” presidirem à efetivação desse desiderato.

Constitui “a Estratégia Portugal 2030” o referencial para a aplicação dos vários instrumentos de política a adotar no futuro próximo, de que se destacam o Quadro Financeiro Plurianual (Portugal 2030) e o Next Generation EU (instrumento europeu temporário onde se inserem os PRR nacionais), concebidos para impulsionar a recuperação económica e social face aos danos causados pela pandemia. E, não sendo o PRR o único nem o mais importante instrumento de intervenção de investimento estrutural à disposição Governo, carece de articulação e apreciação conjugada com o Portugal 2030, mas cujos objetivos, metas, estruturas de afetação de recursos não estão ainda definidos. Porém, é lógico que formassem o esteio principal da Visão Integrada da Educação e Formação, Capital Humano e da Investigação e Desenvolvimento a Médio/Longo Prazo.

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Contextualização

A este nível, o CNE vê no PRR três dimensões: resiliência, transição climática e transição digital, concretizáveis em componentes, que integram as reformas e os investimentos.

As componentes mais diretamente conexas com a educação e formação são: investimento e inovação; qualificações e competências, na dimensão resiliência; e escola digital, na dimensão transição digital. Por outro lado, o PRR enquadra-se nos pilares relevantes de política comunitária do IRR (Instrumento de Recuperação e Resiliência): transição verde; transformação digital; crescimento inteligente, sustentável e inclusivo (incluindo coesão económica, emprego, produtividade, competitividade, investigação, desenvolvimento e inovação, e um mercado único em bom funcionamento com pequenas e médias empresas fortes); coesão social e territorial; saúde e resiliência económica, social e institucional (inclusive com vista ao aumento da capacidade de reação e preparação para crises); e políticas para a próxima geração, crianças e jovens, incluindo educação e qualificações. E a Educação e a Formação, além da intervenção nas componentes referidas, têm potencial de contribuição noutras componentes. Por outro lado, os objetivos a atingir pela operacionalização do PRR enquadram-se na Estratégia Portugal 2030 e articulam-se com os vários instrumentos de política, como os ODS (Objetivos de Desenvolvimento Sustentável) das Nações Unidas, com o Quadro Financeiro Plurianual e instrumentos setoriais como o Programa de Valorização do Interior. Assim, apesar de as questões relativas à educação e formação de adultos e ao ensino profissional, estarem claramente enunciadas na componente “qualificações e competências, da dimensão resiliência”, o seu alcance só será compreendido se se conjugarem e potenciarem as diversas dimensões e componentes do PRR.

O CNE tem produzido reflexão abundante sobre várias questões inscritas no PRR considerando positivos os seus objetivos e linhas de atuação, mas indica alguns aspetos a merecer maior clarificação ou aprofundamento. Assim, o PRR considera:

A dimensão resiliência concentra 61% do montante global do PRR e reflete a forte prioridade atribuída ao robustecimento da resiliência do país. O reforço da resiliência económica, social e territorial do país assume particular relevância enquanto resposta de primeira linha na transição da estabilização económica e social para a recuperação.”.

Ora, sendo a educação uma dimensão transversal a toda a realidade social, é fundamental considerar que o investimento nela se refletirá em cada uma das três prioridades da dimensão resiliência: redução das vulnerabilidades sociais, direcionando a sua ação para as pessoas e suas competências; reforço do potencial produtivo nacional, procurando garantir condições de sustentabilidade e competitividade do tecido empresarial; ambição de assegurar um território competitivo e coeso num contexto de adaptação às transições em curso – transição climática e digital. Isto, sem desprimor para o impacto da educação e formação nas dimensões de transição digital e de transição climática.

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Apreciação do documento

No quadro da apreciação do documento, a nível geral, o CNE reconhece a importância do PRR na resposta às necessidades de reforma estrutural e de recuperação da economia e da sociedade, mas assinala aspetos omissos ou não bem explicitados que parecem de particular relevância. Por exemplo, não prevê medidas de educação ambiental no âmbito da transição climática, quando o CNE tem defendido a implementação de estratégias que permitam “favorecer uma lógica de “educação ambiental permanente”, ao longo da vida, a integrar em espaços de educação formal e não formal, reconhecendo que a dimensão da transformação social que tem de se produzir neste momento exige uma profunda mudança atitudinal, de políticas e de práticas, a todos os níveis societais (do governo às empresas e escolas) e envolvendo todas as pessoas, com especial ênfase nas gerações de adultos. E não prevê linhas aplicáveis à Educação para o Risco, já que “vivemos numa sociedade que é sistematicamente confrontada com notícias sobre a presença do risco, desde os naturais aos resultantes da ação humana, que se interligam.  

No que se refere à formação de professores, o PRR prevê algumas medidas, mas que são essencialmente dirigidas para a tecnologia digital e aspetos conexos. E não é equacionada a possibilidade de dentro de alguns anos o país ser confrontado com a falta de professores e as dificuldades que daí resultarão. Com efeito, os dados referentes ao ingresso no ensino superior dos últimos anos revelam progressiva diminuição da procura dos cursos da área da educação, com o consequente decréscimo da oferta, sem que sejam preenchidas todas as vagas a concurso. Por isso, realça-se a urgência da adoção de medidas que tornem a profissão docente atraente e valorizada pela sociedade e a necessidade de se proceder a uma reestruturação dos cursos de formação inicial, pois a formação de docentes, quer inicial, quer contínua, é fundamental na transformação no processo educativo e pedagógico.

As medidas relativas à educação dispersas ao longo do PRR deveriam ser enquadradas numa visão estratégica, suportada não só em critérios económicos, mas essencialmente num modelo que permita assegurar uma educação para todos, de qualidade e ao longo da vida.

Depois, a apreciação incide sobre alguns aspetos específicos. Assim:

Em termos da transição digital, o parecer refere que o contexto pandémico e a necessidade de as escolas recorrerem ao ensino remoto de emergência evidenciaram fragilidades e reforçaram a necessidade duma intervenção estratégica. Assim, afigura-se da maior pertinência a integração do desenvolvimento de competências em tecnologias digitais no PRR.

Ao nível da eficiência energética, aponta-se que a única referência às instituições de ensino é a previsão do financiamento promovido pelo Fundo Ambiental a uma “significativa vaga de renovação energética de edifícios da administração pública central e de instituições de ensino” (de todos os níveis, incluindo superior), fomentando “a eficiência energética e de recursos” e reforçando “a produção de energia de fontes renováveis em regime de autoconsumo”.

No âmbito da saúde e bem-estar e quanto à reforma dos Cuidados de Saúde Primários, o PRR apenas refere de forma genérica a “promoção da saúde e de estilos de vida saudáveis”, não estabelecendo a necessária articulação com o setor da educação (em todos os níveis de ensino) e com o papel da educação na promoção da saúde. Ora, as iniciativas locais e de base territorial, as associações recreativas, as entidades de animação comunitária, as universidades seniores e outras são respostas para a população adulta de idade avançada e permitem fomentar redes sobretudo informais (grupos de pares, de vizinhos) de proteção social, sobretudo das pessoas mais vulneráveis, além da dimensão de educação de adultos.

No quadro da educação de infância, o PRR prevê o incremento da capacidade de resposta em creche, sobretudo nos territórios com níveis de cobertura mais baixos, adaptando-a às necessidades das famílias e das realidades laborais. Ora, apesar do investimento feito nesta área, quando se analisa a evolução das taxas de cobertura e de utilização no Continente, emerge a existência de fortes assimetrias territoriais relativamente à distribuição das respostas sociais e às necessidades efetivas destes serviços.

No âmbito da educação de adultos subsistem várias fragilidades a que o PRR não responde.

No capítulo do ensino e formação profissional, o CNE chama a atenção para a importância de as escolas e centros de formação disporem das condições necessárias e conhecerem os critérios para procederem ao recrutamento dos formadores adequados a cada área de educação e formação, sobretudo na componente tecnológica, para lá do investimento em infraestruturas e equipamentos. E considera que o PRR deve criar as condições para: constante coordenação e planeamento das ofertas; informação acessível a todos, completa, atempada e atualizada sobre as diversas ofertas de cursos de dupla certificação; efetiva orientação escolar e vocacional; maior permeabilidade entre as diferentes vias do ensino secundário; maior valorização dos cursos de dupla certificação, passando pela remoção de obstáculos à continuidade dos estudos e pela existência de ofertas mais prestigiantes de ensino profissional.

No ensino superior, o CNE considera as medidas relativas a este ensino genericamente positivas e correspondendo, na sua maioria, ao prolongamento de objetivos atuais. Mas alerta para a necessidade de investimento nos meios adequados ao ensino híbrido (presencial e à distância). E diz que é necessário prever, para lá das agendas mobilizadoras, um programa específico para financiamento das atividades de investigação, competitivo, transversal e aberto a todas as áreas científicas, com critérios de avaliação associados à qualidade científica dos projetos. O PRR pode ser instrumento poderoso de criação das condições dum desenvolvimento descentralizado, que assegure a coesão nacional e a igualdade de oportunidades em todo o território nacional. Por isso, deve acolher um programa de apoio ao desenvolvimento duma rede de sistemas de inovação regional, dinamizada pelas instituições de ensino superior em articulação com entidades locais, regionais e nacionais.

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Recomendações

No atinente às recomendações, o CNE propõe (regista-se o conteúdo condensado):  

1. Elaboração e publicação (até à aprovação do Quadro Financeiro Plurianual) da Visão Integrada da Estratégia de Educação e Formação, de Capital Humano e de Investigação e Desenvolvimento.

2. Tradução da Visão Integrada num Plano de Ação que enquadre a aplicação dos recursos do PRR, do Quadro Financeiro Plurianual, do Orçamento de Estado e de outras eventuais fontes de financiamento.

3. Elaboração dum plano estratégico que apoie a concretização das competências previstas no Perfil do Aluno à Saída da Escolaridade Obrigatória, incluindo, de modo articulado: aumento da oferta educativa para a faixa etária dos 0 aos 3 e da sua intencionalidade educativa, prevendo metas de cobertura a atingir; adaptação dos currículos e das formas de ensino aos novos paradigmas da sociedade do conhecimento e da informação, o que remete para a importância de a Reforma Digital perspetivar a produção de novos conteúdos numa ótica de conceção inicial de design dum produto digital, articulada com a formação e acompanhamento técnico e pedagógico dos professores; integração vertical de prioridades educativas previstas no PRR e o seu enraizamento na prática escolar que inclua (i) a promoção do ensino-aprendizagem em áreas STEAM em todas as escolas dos ensinos básico e secundário, apetrechando-as com os recursos base, assim como o acompanhamento e apoios pedagógicos necessários para o seu uso efetivo, (ii) a valorização curricular das dimensões criativa e artística, humanista e desportiva, essenciais para a qualidade de vida e bem-estar humanos e (iii) o desenvolvimento de competências digitais enquadradas numa formação crítica, criativa e responsável do seu uso.

4. A articulação da formação inicial e contínua de professores com o predito plano estratégico, considerando: a promoção da atratividade e da valorização social da profissão docente; a reorganização da formação inicial de professores de modo a responder à necessidade de novos professores face ao elevado número de aposentações nos próximos anos; o desenvolvimento dum programa de formação contínua, não limitado ao desenvolvimento de competências tecnológicas, mas alicerçado numa formação e acompanhamento em contexto de trabalho.

5. Medidas de desenvolvimento de competências digitais para encarregados de educação.

6. Definição e publicitação de cenários de equipamento e de infraestruturas tecnológicas para diferentes graus de avanço da digitalização, a título de modelos de referência para efeitos de planeamento do investimento escolar.

7. Inclusão das instituições de ensino superior como alvo do investimento na dimensão de Transição Digital/Escola Digital.

8. Incentivo à promoção da elaboração de materiais de apoio ao ensino e formação, constituindo repositórios de materiais de apoio a processos de ensino a distância, híbrido ou misto.

9. Reequacionamento do modelo de formação profissional numa perspetiva de aprendizagem ao longo da vida e criação do crédito individual de formação ao longo da vida.

10. Reforço da dimensão de informação e orientação escolar, vocacional e profissional, especialmente ao longo do 3.º ciclo do ensino básico.

11. Inclusão da dimensão de formação de jovens e adultos na dimensão da transição climática, visando a compreensão, a sensibilização e o desenvolvimento de atitudes que contribuam para o processo de preservação ambiental.

12. Consideração, na dimensão de resiliência, no âmbito da saúde e bem-estar, do papel da atividade criativa e artística, humanista e desportiva, em particular para jovens e seniores, e do apoio a associações locais para na promoção de um envelhecimento ativo.

13. Promoção da coesão social, através de medidas ou programas de combate às desigualdades.

14. Apoio ao desenvolvimento de uma rede de sistemas de inovação regional.

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A questão é – aponta o CNE – se dispomos já de definição suficientemente trabalhada e preparada desta visão do PRR.

Terá o Governo ponderado, com suficiência, este contributo do poderoso órgão de consulta em matéria de política educativa e melhorado, nesta ótica, o documento a apresentar a Bruxelas e a levar à prática em Portugal?

2021.03.15 – Louro de Carvalho

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