Refere a última edição do semanário Expresso que, na passada reunião
plenária do Conselho Económico e Social (CES), a presidência deixou cair a proposta de
novo manual de “linguagem neutra e inclusiva” que passaria a reger toda a
comunicação, interna e externa, para evitar o risco de rejeição formal, pois,
vários representantes dos parceiros sociais e organizações presentes levantaram
objeções ao documento de 16 páginas, levado ao CES precisamente no Dia Internacional da Mulher, data
simbólica, a que se junta a circunstância de a autora ser Sara Falcão Casaca,
socióloga e especialista em questões de igualdade, que foi chamada para a
vice-presidência pelo novo presidente.
Por isso, o presidente Francisco Assis optou por adiar
a votação, embora tenha vindo a negar que estivesse em causa “o veto do
documento”, pois diz-se convicto de que “a proposta iria passar, embora com
algumas abstenções e dois ou três votos contra”.
Alguns dos participantes questionaram a “oportunidade”
desta discussão, quando o país enfrenta uma grave pandemia e a subsequente
crise económica e social, Contrapôs Assis que “não estamos em estado de paralisia
nem impedidos de pensar”, justificando a retirada da proposta com a necessidade
de “acolher os vários contributos apresentados na reunião”. Todavia, o presidente
do CES admite a existência de “reservas e resistências” e considera que há “toda
a vantagem em fazer uma discussão aberta, porque o que não é discutido não é
interiorizado”.
O imperativo de tornar os documentos oficiais mais
‘inclusivos’ não é novo e até está previsto em recomendação do Conselho Europeu
e em resolução do Conselho de Ministros português. E a predita socióloga
defende o manual como forma de “garantir
que, no CES, a discussão de diferentes temas e a transmissão de ideias seja
feita de forma a seguir as orientações e as boas práticas em matéria de
linguagem inclusiva”.
Para facilitar, a autora material da proposta apresenta,
a título de exemplo, “formas simples de evitar o uso do masculino universal”,
passando para o uso da “linguagem neutra”. Mas nunca a linguagem é neutra, mesmo
mas línguas que dispõem do género neutro gramatical.
Em regra, segundo a investigadora, os nomes comuns universais
como ‘trabalhadores’, ‘gestores’, ‘idosos’, ‘contribuintes’ ou ‘migrantes’,
deixam o género masculino para passarem a ser denominados (pelo designativo genérico no feminino,) como ‘a população’: trabalhadora, ou idosa, ou
migrante, respetivamente. Em alternativa, “a outra opção é a de especificar os
dois determinantes e nomes (masculino e feminino) tanto no singular, por exemplo: “o
trabalhador e a trabalhadora”, “o pensionista e a pensionista” e por aí
adiante.
O pretenso manual de linguagem inclusiva não se fica
apenas pelos “protagonistas principais” (a expressão
“protagonistas principais” é tautológica, pois a primeira palavra é grega e a
segunda é latina, mas com significado semelhante) dos documentos, habitualmente, produzidos no CES. Porque
“as boas práticas linguísticas requerem a inclusão de todas as pessoas”, a
investigadora ilustra a proposta com outros casos onde “ importa dissociar a
pessoa/ser humano da condição específica que se pretende descrever”.
Entram neste âmbito as referências aos vários tipos de
deficiências ou de comunidades. Diz o documento, “a título ilustrativo”, que “não
é a pessoa que é deficiente, pelo que não é a pessoa que se qualifica, mas sim
a sua condição de deficiência ou de incapacidade para o trabalho profissional”.
Assim: ‘deficiente’ deve ser dito e escrito como “pessoa com deficiência;
‘surdo-mudo’, como ‘pessoa surda’; ‘invisual’, como ‘pessoa cega’; ‘amblíope’,
como ‘pessoa com baixa visão’; ‘linguagem gestual’, como ‘língua gestual’;
‘coxo/manco’, como ‘pessoa com mobilidade reduzida’; ‘velhos/idosos’, como
‘pessoas idosas/seniores’; ‘casa de banho para deficientes’, como ‘casa de
banho adaptada’; ‘lugares de estacionamento para deficientes’, como ‘lugares de
estacionamento para pessoas com mobilidade reduzida/deficiência motora’; ‘raça
cigana’, como ‘etnia cigana, povo cigano, comunidade cigana’.
O manual tem múltiplos exemplos e, embora tenha como
“foco principal a elaboração de documentos” estende-se ao contexto de reuniões,
comunicados, cartas e e-mails feitos com ou por membros do CES. Assim,
sugere-se que a abertura das reuniões do Conselho siga a seguinte fórmula:
“Bem-vindas e bem-vindos senhoras e senhores conselheiros”, admitindo-se que “a
ordem é indiferente”. E, no correio eletrónico, “tanto a redação de e-mails
como o seu título deve(m) seguir a estratégia recomendada para a comunicação
nas reuniões”.
Isto,
com o devido respeito, não passa de mais uma tentativa de preciosismo purista que
nada corrige de essencial, leva a outras distorções, gera redundâncias
desnecessárias, mostra desconhecimento do conceito de “universal” e constitui só
mais uma carga de eufemismo e transferências de sentido.
Lembro-me
de um determinado partido ter sugerido em tempos a mudança da designação de
“cartão do cidadão” para a de “cartão de cidadania” (Ainda
bem que não propôs cartão ou carta do cidadão ou da cidadã!) – que nada acrescenta de
relevante – um preciosismo purista que significa um simples regresso ao
“bilhete de identidade” implicando nova despesa ao erário e nova burocracia.
Aceito a resolução governamental e a recomendação do Conselho Europeu no
sentido de substituir nas versões oficiais do documento fundamental da ONU e
derivados a expressão “direitos do homem’ por ‘direitos humanos’, em virtude da
índole basilar da DUDH. Porém a generalização excessiva deste preciosismo
purista implica desconhecimento do sentido e valor do universal, como o que se
aplica a todos os componentes do mesmo domínio e a cada um “singulariter et diuisim”: coisa, objeto,
ente, ser, indivíduo, pessoa, sujeito, cidadão, homem (diferente
de varão, oposto a senhora ou dama),
idoso, adolescente, jovem, criança, vítima, etc. É certo que alguns como ente,
ser, coisa são universais de domínio ou universo absoluto ou quase. Por outro
lado, a gramática das línguas generalizou o emprego de determinados nomes no
masculino para designar em abstrato algumas profissões. Por exemplo, embora se
distinga no concreto, por exemplo, médico e médica, advogado e advogada,
cabeleireiro e cabeleireira, normalmente não se recomenda a ida ao médico ou à
médica, ao advogado e à advogada, ao cabeleireiro e à cabeleireira, nem a ida à
medicina, à advocacia, ou à ‘cabeleiraria’, embora se fale na atividade, curso
ou especialidade de medicina, advocacia, cirurgia, etc. ou se vá ao médico ou à
médica quando se trata de casos concretos.
Obviamente
que os enfermeiros não querem ser enfermeiras; e as mulheres não querem ser
ministros, secretários de Estado, cirurgiões, mas aceitam ser cabo, sargento,
capitão, major e marinheiro; e os médicos não querem ser ‘pediatros’,
‘terapeutos’. As mulheres, se forem diplomatas querem ser embaixadoras e não
embaixatrizes (estas seriam as esposas dos embaixadores), mas querem ser poetas, em vez
de poetisas, e aceitam ser rainhas e imperatrizes (e
não ‘imperadoras’),
mesmo que não esposas de rei ou de imperador. Tivemos uma a quem chamaram Primeiro-Ministro.
E querem ser juízes, em vez de juízas, e mestres, em vez de mestras.
Tanta
contradição!
Os
eufemismos abundam por motivos de pudor, pelo que dizemos, por exemplo, ‘seios’
em vez de ‘mamas’ ou ‘tetas’, ‘partes’ em vez de zona externa do aparelho sexual,
ou para tirar a conotação negativista de determinados atos, pelo que se diz,
por exemplo, em vez de ‘aborto provocado’ (O ‘aborto espontâneo’
era desmancho’), ‘interrupção
voluntária da gravidez’ e, em vez de ‘mentira’, ‘inverdade’ ou ‘insuficiente
relação com a verdade’. Mas também temos o disfemismo, por exemplo em ‘ morte assistida’
ou ‘morte medicamente assistida’ ou ‘suicídio medicamente assistido’, em vez de
‘eutanásia’ (do advérbio grego “eu”/bem e do verbo
“thanatóô”/fazer morrer, do nome “thánatos”/morte), que era a possibilidade de bem morrer.
Só me pergunto para quê o disfemismo, quando bastava o nome técnico.
Nos
exemplos do predito documento, temos perífrases desnecessárias como em como ‘lugares de estacionamento para
pessoas com mobilidade reduzida/deficiência motora’. Temos mudanças de
expressão que nada mudam como na passagem de ‘raça cigana’, para ‘etnia cigana,
povo cigano, comunidade cigana’. Não se vê razão na mudança de ‘raça’ para
‘etnia’, a não ser pela preferência social como de ‘preto’ para ‘negro’, de
‘branco’ para ‘claro’, de vermelho para encarnado ou de bege e cinzento claro
para cor de pele. Faz-me lembrar o escrúpulo das pessoas que não queriam o
divórcio por serem católicas, mas, se o casamento desse para o torto, queriam o
desquite (como viam nas novelas brasileiras). Também não vejo interesse em confundir o povo cigano com a comunidade
cigana, pois nem todo o povo vive em comunidade. E nós sabemo-lo, pois falamos
no povo português, mas dizemos as comunidades portuguesas.
A substituição de ‘surdo-mudo’ por ‘pessoa surda’ é insuficiente, porque há
surdos que não são mudos, tal como é insuficiente substituir ‘amblíope’ (do adjetivo grego ‘amblýs’ – débil insensível, sem forças, embotado + o
verbo ‘horáô’ – ver, olhar) por ‘pessoa com baixa visão’, já que há pessoas com baixa visão que têm
outras comorbilidades, e tal como o é a substituição de ‘coxo/manco’, por
‘pessoa com mobilidade reduzida’, pois a mobilidade não consiste só em andar, mas
também em comandar outros movimentos corporais, como por exemplo os braços, o
tronco o rodar do pescoço. Neste caso, é de perguntar como se referir a quem
não tem um braço, a quem falta as duas mãos, etc.
E substituir por invisual por pessoa cega não lembrava ao diabo. Com
efeito, já o termo ‘invisual’ foi mal aplicado porque invisual é aquele/ ou
aquela que não pode ser visto, ao passo que o cego é a pessoa a quem não foi
dada ou a quem foi subtraída a possibilidade de ver. É como ‘dócil’ (do verbo latino ‘doceo’ = ensino), que tem a capacidade de ser ensinado, portanto, maleável, terno, doce,
tenro (Quem ensina é docente e quem produz conhecimento para o ensino é doutor/doctor). Mas, como o uso é a lei suprema da
língua, o retrocesso era desnecessário.
A ‘casa de banho adaptada’, em vez da ‘casa de banho para deficientes’, é
adaptada a quem ou a quê? Belo exemplo, embora redundante, o das rampas de
acesso a edifícios de acesso ao público com os equipamentos de “supressão de
barreiras arquitetónicas”! Podia, neste caso, ser ‘casa de banho com apoios
especiais’.
E substituir ‘velhos/idosos’ por ‘pessoas idosas/seniores’ constitui
retrocesso desnecessário, pois velho, idoso eram adjetivos que o tempo acabou
por transformar em nomes sem se deixar o uso adjetival em muitos contextos. E
‘sénior’, cujo plural é ‘seniores’ (e não ‘séniores’, que
não existe, como não existe ‘júniores’, mas ‘juniores’, plural de ‘júnior’) é adjetivo que significa ‘mais velho’.
A passagem de ‘deficiente’ para ‘pessoa com deficiência’, embora sublinhe
não o deficiente como uma falha, mas a deficiência em si, pouco avantaja sendo
como o caso do branco que pretende ser claro. É caso para lembrar o aforismo: “Não
é ovo, mas é branco e a galinha o pôs”.
O ‘deficiente’ (particípio presente do verbo latino
“deficio” / ‘de + facio’ – eu deito abaixo, eu abandono) seria aquele/a que faz com que algo caia
de cima para baixo. Deus me livre da calúnia! Não o quero portador dessa marca
que ele putativamente provocou em si ou que sofre em si por causa dos seus
erros ou dos erros dos pais? Quer dizer: substituímos uma calúnia por outra e a
pessoa sofre na mesma… O Ministério da Educação contemplava em especial os
alunos portadores de necessidades educativas especiais. Com a publicação do Decreto-Lei
n.º 54/2018, de 6 de julho, teremos “alunos com necessidade de inclusão” ou
alunos candidatos a acomodações curriculares?
Obviamente, concordo com a substituição de ‘linguagem gestual’ por ‘língua
gestual’, por se tratar, não de mera expressão de pensamento ou de uma forma
simples de comunicação, mas de um código de signos que permite uma comunicação
elaborada, codificada e objeto de uma escrita própria e utilizada por um amplo universo
de indivíduos, bem identificado em termos psicossociolinguísticos.
De resto, são modas: os sapateiros são oficiais de sapataria, os delegados
da propaganda médica são delegados de informação médica, os técnicos de ação
sanitária são técnicos de engenharia ambiental, os prostitutos e prostitutas
são trabalhadores e trabalhadoras do sexo, os empregados de balcão em padaria
são técnicos de informação de panificação e confeitaria, os técnicos oficiais
de contas são contabilistas certificados, os agentes do MP são procuradores, os
oficiais administrativos são assistentes técnicos, os médicos do SNS são
assistentes graduados e assistentes graduados seniores, os contínuos são
assistentes operacionais, as pessoas de limpeza são técnicos e técnicas de
higienização ambiental, os arautos do bingo, das lotarias do totoloto e do
euromilhões são técnicos de divulgação de resultados e assim por diante. Porém,
não queria ver um “sindicato das educadoras e educadores de infância, das
professoras e professores do ensino básico e secundário, das professoras adjuntas
e professores adjuntos, das professoras coordenadoras e professores coordenadores
do ensino superior politécnico e das professoras auxiliares, associadas,
associadas com agregação e das professoras catedráticas e professores catedráticos
das universidades”. O senso comum aconselha a simplificação. E não queria ver
um simples “sindicato da docência”. O senso comum aconselha a simplificação,
mas não tanta.
E é bom que o CES não se perca em minudências como eu e trate do que verdadeiramente
interessa aos parceiros sociais e da relação cooperante e reivindicativa junto
do Governo, que bem se põe a jeito sobretudo para a segunda dimensão.
Por fim, embora o tratamento de “irmãos”, “portugueses” e “senhoras e senhores
deputados” bastasse, aceito que o vocativo oratório inicial seja, conforme os
casos, “irmãs e irmãos”, “portuguesas e portugueses” ou “senhoras deputadas e
senhores deputados”, mas repetir estas expressões umas quantas vezes como
vocativo num discurso de 10 minutos não sabe nem a eclesialidade nem a
patriotismo!
2021.03.13 – Louro de
Carvalho
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