A visita
papal ao Iraque, de 5 a 8 de março, assume especial significado e é apoio aos
cristãos “que vivem em estado de dúvida e de medo e que passaram por momentos
difíceis por causa das guerras”, segundo Naim Shoshandy, sacerdote iraquiano de
rito sírio-católico, que acredita que será também oportunidade para estender a
mensagem da ‘Fratelli tutti’ nesta
parte do mundo muçulmano”, pois o Papa “é para todas as pessoas, porque somos
todos irmãos”.
O Padre
Shoshandy, que sofreu a perda do pai devido a um cancro, viu ali “o horror da
guerra”, conhece em primeira mão o sofrimento e a perseguição e contou ao Vatican News que o seu irmão Raid foi
assassinado em Mosul por ser cristão e que teve, ele e a família, de fugir de
Qaraqosh para Erbil, quando o autoproclamado Estado Islâmico, em 2014, atacou e
tomou a cidade onde havia uma importante minoria cristã – experiência que levou
o sacerdote a descobrir a força do perdão a quem lhe matou o irmão e à experiência
de perseguição, o que só é possível, graças a Jesus, que sempre nos ensinou a
perdoar e a rezar pelas outras pessoas.
As guerras,
que deixam marcas profundas nas pessoas e nas sociedades, no Iraque instilaram nos
cristãos medo, insegurança, rejeição e até a morte, mas a vivência da fé
manteve-os firmes e agarrados à mão do Deus da vida. Mas o Padre Naim diz que o
povo do Iraque dará ao Papa um caloroso acolhimento, pois Francisco está a
realizar o sonho esperado há 22 anos. O povo, feliz e entusiasmado (não só os
cristãos, mas também as pessoas de outras religiões), espera-o de braços abertos. Tomam-se todas as
medidas de segurança possíveis porque “é a primeira vez que um Papa visita o
Iraque: a terra de nosso pai, Abraão, e a
terra do profeta Jonas”.
A visita de
Francisco tem um significado especial, segundo o padre iraquiano, porque o Papa
tem lugar especial no coração dos cristãos na Igreja Oriental e porque os
cristãos e povos que vivem em estado de dúvida e medo e que passaram por
momentos difíceis por causa das guerras agora receberão “o seu apoio e
incentivo”. E o sacerdote explana:
“O Papa vai trazer consigo a esperança de melhorar a liberdade religiosa
no país. (…) Esta visita é uma peregrinação na qual encontramos uma mensagem de
irmandade e fraternidade. Encontramos isso na última carta ‘Fratelli tutti’, que tem um significado
não só para os cristãos, mas para todas as pessoas nestes países. Parar com as
guerras, com as dificuldades e com a morte. Devemos gerar paz, confiança,
estabilidade e solidariedade humana. Esperamos muito do Santo Padre. Esta visita
será um momento poderoso para que ele revele a verdade. Para mim, é um ato
muito corajoso que dá esperança, especialmente nestes tempos difíceis que todos
estamos vivendo.”.
A visita
será também um encontro entre religiões, porque o Papa irá à cidade de Najaf,
ao sul da capital, Bagdad, ao encontro do Grão Aiatolá Ali al Sistani, a
máxima autoridade muçulmana xiita do país. Efetivamente cerca de 75% dos muçulmanos
iraquianos são xiitas. Neste contexto, adianta o sacerdote, “será uma oportunidade
de estender a mensagem da ‘Fratelli tutti’
nesta parte do mundo muçulmano”, pois “o Papa é para o mundo inteiro, para
todas as pessoas, porque somos todos irmãos”. E Shoshandy lembra que o Iraque é
um país em guerra há muitos anos e que a visita evidencia a importância do
Iraque a nível internacional, e é etapa importante para conter o extremismo e
os que o apoiam, insuflando “uma nova vida, nova coragem”.
***
Francisco
faz esta importante viagem de proximidade aos cristãos, de apoio à reconstrução
do país devastado por guerras e pelo terrorismo e de mão estendida aos irmãos
muçulmanos.
Os cristãos
iraquianos esperavam pelo Papa há 22 anos, quando São João Paulo II planeou uma
breve peregrinação a Ur dos Caldeus, primeira etapa do percurso jubilar aos
lugares de salvação. Queria partir de Abraão, o pai comum de judeus, cristãos e
muçulmanos. Muitos pediam ao Pontífice a não realização duma viagem que poderia
fortalecer Saddam Hussein no poder após a primeira Guerra do Golfo. O Papa Wojtyla,
contra tudo, seguia em frente, mas essa viagem relâmpago de natureza religiosa
não se fez devido à oposição do presidente iraquiano.
Em 1999, o
país estava vergado pela guerra sangrenta contra o Irão (1980-1988) e pelas sanções internacionais em
resultado da invasão do Kuwait e primeira Guerra do Golfo. O número de cristãos
no Iraque era três vezes maior que hoje e viagem não realizada permaneceu como
ferida aberta. Wojtyla levantou a voz contra a segunda expedição militar
ocidental no país (a
guerra relâmpago de 2003),
que terminou com o derrube de Saddam, dizendo no Angelus a 16 de março:
“Gostaria
de lembrar aos países membros das Nações Unidas e, em particular, àqueles que
compõem o Conselho de Segurança, que o uso da força representa o último
recurso, depois de terem esgotado todas as outras soluções pacíficas, de acordo
com os bem conhecidos princípios da própria Carta das Nações Unidas”.
E, no
pós-Angelus, suplicou:
“Eu
pertenço àquela geração que viveu a II Guerra Mundial e sobreviveu. Tenho o
dever de dizer a todos os jovens, àqueles mais jovens do que eu, que não
tiveram essa experiência: ‘Nunca mais a guerra!’, como disse Paulo VI na sua
primeira visita às Nações Unidas. Devemos fazer tudo o que for possível!”.
Mas não foi
ouvido por aqueles “jovens” que fizeram a guerra e foram incapazes de construir
a paz. E veio o terrorismo, com atentados, bombas, devastações. O tecido social
desintegrou-se e, em 2014, surgiu a ascensão do autoproclamado Estado Islâmico
pelo Isis, com mais devastação, perseguição, violência, com as potências
regionais e internacionais comprometidas com a luta em solo iraquiano e com a
multiplicação das milícias fora de controlo.
Olhando para
a situação do Iraque, toca-se com a mão o realismo das palavras que Francisco
esculpiu na sua última encíclica ‘Fratelli
tutti’:
“Não
podemos mais pensar na guerra como solução, dado que os riscos provavelmente
serão sempre maiores do que a hipotética utilidade atribuída a ela. Diante a
tal realidade, hoje é muito difícil sustentar os critérios racionais
amadurecidos em outros séculos para falar de uma possível ‘guerra justa’. Nunca
mais a guerra!... Cada guerra deixa o mundo pior de como o foi encontrado. A
guerra é um fracasso da política e da humanidade, uma vergonhosa rendição, uma
derrota diante das forças do mal.”.
Centenas de
milhares de cristãos, nestes anos, viram-se forçados a abandonar as suas casas
para buscar refúgio no exterior. Numa terra de primeira evangelização, cuja
Igreja muito antiga tem origens na pregação apostólica, os cristãos esperam a
visita de Francisco como um sopro de oxigénio. Há algum tempo o Papa anunciou a
vontade de ir ao Iraque para os confortar, seguindo a única geopolítica que o
move, a de manifestar proximidade a quem sofre e favorecer, com a sua presença,
processos de reconciliação, reconstrução e paz. Assim, apesar dos riscos da
pandemia e da segurança (e
mesmo dos recentes atentados), manteve na agenda este compromisso, determinado a não dececionar os
iraquianos que o esperam.
O coração da
primeira viagem internacional, após 15 meses de bloqueio devido à covid-19,
será o compromisso em Ur, cidade donde partiu o patriarca Abraão – ocasião para
rezar junto dos crentes de outras confissões religiosas, em particular,
muçulmanos, para redescobrir as razões da convivência entre irmãos, de modo a
reconstruir um tecido social além das fações e grupos étnicos, e lançar um
desafio ao Oriente Médio e ao mundo inteiro.
***
Andrea
Riccardi, fundador da comunidade romana de Santo Egídio, escreve na edição de
março de “Vita Pastorale”, um artigo
sobre esta viagem papal intitulado “Na
Igreja dos mártires”.
Aberto um
diálogo estável com o Grão Imame de Al-Azhar, o egípcio Ahmad Al-Tayyeb, a mais
alta autoridade sunita e sendo agora a vez do mundo xiita, o Papa visita o
Iraque, berço das religiões abraâmicas, mas extenuado pela guerra” e o
historiador da Igreja enfatiza:
“Hoje Francisco realiza o sonho do seu predecessor João Paulo II, que
gostaria de ter ido ao Iraque, mas foi impedido por razões políticas por Saddam
Hussein, com uma peregrinação e uma viagem pastoral que conforta os cristãos
católicos (caldeus, siro-católicos) e não católicos (assírios, arménios), mas
que fala de paz e fortalece o diálogo inter-religioso”.
Passando o
programa papal em resenha, Riccardi destaca, em particular, a importância da
visita privada do Papa à máxima autoridade muçulmana xiita no país, o Grão Aiatolá Ali al Sistani, na cidade sagrada xiita de Najaf, onde se encontra a
sepultura do Imame Ali.
Como explica
Riccardi, “Najaf é o coração do islamismo xiita” e “os xiitas foram perseguidos
por Saddam Hussein e a própria Najaf sofreu danos”, mas “não se deve pensar que
a liderança xiita iraquiana em Najaf esteja alinhada com o Irão e com Qom, cidade
religiosa onde Khomeini residia”. Com efeito, “os xiitas iraquianos reivindicam
a primazia de Najaf e a autonomia do Iraque”, pois “não têm a conceção
teocrática teorizada por Khomeini no Irão. Assim, a visita do Papa a Najaf
abrirá nova frente de diálogo com o Islão xiita, que tem representantes
legítimos para falar em nome dos fiéis”.
Depois, Riccardi
evidencia que a visita papal não é só “um apoio aos cristãos”, mas também é “uma
mensagem para o Iraque”. Por isso, a primeira viagem dum Papa ao Iraque e ao
Oriente Médio árabe (excetuando a Terra Santa) “adquire grande importância para o país e para a paz”.
A presença
cristã na Mesopotâmia remonta às origens do cristianismo, como atestam os Atos
dos Apóstolos. Segundo a tradição, o cristianismo espalhou-se por essas terras
no primeiro século a partir da pregação do apóstolo São Tomé e seus discípulos,
que se estendeu até a Ásia oriental. O Iraque é, pois, terra bíblica e
historicamente importante para todos os cristãos, dada a sua riqueza cultural e
religiosa que influenciou de forma decisiva o mundo.
A vida da
comunidade (dividida entre caldeus, siríacos, arménios, latinos, melquitas, ortodoxos
e protestantes), desde a
chegada do Islão e após o nascimento do Iraque independente, foi marcada por
perseguições e discriminações. Saddam Hussein originou um regime laico, com o
qual os cristãos encontraram, apesar da nacionalização das suas escolas e a
persistente discriminação, um modus vivendi que permitiu à
Igreja realizar atividades no campo sócio-caritativo. Mas, já na época da ditadura,
se registou uma crescente emigração, mercê das guerras no país desde o início
dos anos 80 do século XX. Neste sentido, numerosas comunidades cristãs iraquianas
foram criadas no exterior, a ponto de se colocar o problema da sua assistência
espiritual e da salvaguarda da sua identidade cultural, problema
particularmente sentido na Igreja Caldeia.
O êxodo mais
intenso ocorreu com a invasão dos EUA em 2003, pela insegurança, violência e atentados,
e entre 2014 e 2017, com o autoproclamado Estado Islâmico (ISIS) no norte do país.
***
Considerando
que, pela primeira vez na história, um Papa visitará o Iraque, país que deu
origem a Abraão, onde reside uma das comunidades cristãs mais antigas, que
ainda carrega feridas muito visíveis da guerra e enfrenta os flagelos da pobreza,
do terrorismo e agora da covid-19, o Cardeal Secretário de Estado do Vaticano,
Cardeal Pietro Parolin, sublinhou a importância desta viagem, destacando a
urgência da colaboração para reconstruir o país e curar todas as “feridas, para
reiniciar uma nova etapa” e deixar uma mensagem de futuro.
Segundo o número dois da Santa Sé, o Papa
quer manifestar “uma atenção particular, uma proximidade particular, a este
país”. Assim, o objetivo e o significado da viagem são: manifestar a
proximidade do Papa com o Iraque e com os iraquianos e lançar a mensagem de que
devemos trabalhar juntos na reconstrução do país, na cura de todas as feridas da
guerra, terrorismo e pandemia e na no reinício de uma nova etapa.
Parolin reconhece a atualidade do que disse há três anos, quando
visitou o Iraque, no sentido de cristãos e muçulmanos serem chamados a “iluminar
a escuridão do medo e dos absurdos”.
Recorda que
o disse no contexto alegre da noite de Natal, na catedral caldeia de Bagdad, cheia
de gente, cantos e luz, em contraste com o clima sombrio do exterior. Tais
palavras sintonizam hoje com o lema da viagem papal: “Sois todos irmãos”. Com efeito, esta fraternidade vem do facto de
sermos filhos do mesmo pai, Deus, e também da referência a Abraão, que nasceu no
Iraque, donde iniciou a sua aventura após o chamamento do Senhor – referência histórica
de judeus, cristãos e muçulmanos, que deve levar a “um compromisso comum” de “serem
luz na escuridão” e “dissipar as obscuridades” – realidades que permanecem ainda
em grande parte.
Na ótica do purpurado, o centro do programa
da viagem intensa de 4 dias está no facto de o Papa querer lançar uma mensagem
em direção ao futuro. E explica:
“Há situações e realidades que vivem um certo sofrimento, além dos
lugares onde houve perseguições, martírios. A própria Igreja está passando por
uma situação de dificuldade, o diálogo inter-religioso precisa ser promovido.
Porém, as dificuldades podem ser superadas se houver a boa vontade e o
compromisso por parte de todos de se reunirem e trabalharem juntos para a
reconstrução. (…) Olhemos em frente com esperança e coragem para reconstruir
esta realidade do Iraque.”.
Do encontro com o Grão Aiatolá Al-Sistani, Parolin realça que “Al-Sistani é uma das figuras mais simbólicas e significativas
do mundo xiita” e que “sempre falou a favor da coexistência pacífica no Iraque,
dizendo que todos os grupos étnicos, os grupos religiosos são parte do país”, o
que “vai no sentido e na direção exata da construção desta fraternidade entre
cristãos e muçulmanos, que deve caraterizar o país” e está na linha do que o
Santo Padre deseja.
Face à
expatriação mais de um milhão de
cristãos nos últimos anos por causa da violência, o Cardeal Secretário de
Estado diz que a Igreja – os cristãos, os católicos – no Iraque, esperam
o Papa com grandes expectativas e “precisam de ser encorajados a viver sua
vocação cristã dentro desta realidade tão difícil”, de tal modo que “a vocação
dos cristãos do Oriente Médio é quase uma vocação dentro da vocação cristã, na
sua realidade, no seu ambiente, no seu país”. Por isso, crê que o Pontífice “encorajará
esta Igreja a ser corajosa, capaz de testemunhar, e também fará um convite para
que permaneçam para dar testemunho da sua presença”.
E sobre a posição do Governo iraquiano que saudou esta viagem como “uma
mensagem de paz”, Pietro Parolin entende que a viagem constitui “um grande desafio” a que “o Governo e a sociedade
como um todo estão a tentar responder”. E o Cardeal insiste:
“Precisamos de nos reunir e colaborar. E, para nos reunirmos e
colaborarmos, para construir esta unidade, certamente há necessidade de perdão
e reconciliação. Devemos superar o passado, olhar em frente neste sentido
novo e positivo.”.
Todavia, considera
que há também medidas a tomar, por exemplo, “contra o sectarismo, que ainda
carateriza grandes setores da sociedade, ou contra a corrupção, a desigualdade
e a discriminação, para que todos possam ter o seu lugar e todos se sintam
cidadãos do país, com os mesmos direitos e deveres e o mesmo compromisso e
responsabilidade de ajudar a construí-lo.
Em suma, Parolin espera
que a presença do Santo Padre seja “um momento de renascimento, de renascimento
material, de renascimento espiritual para o povo iraquiano”, com “repercussões
em toda a região que precisa de bons exemplos” e “que isto se realize sob o
sinal da fraternidade, pois, como declara o lema desta viagem papal, “Sois todos irmãos”.
***
Seja assim para o bem da paz e da fraternidade genuína!
2021.03.03 – Louro de Carvalho
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