quarta-feira, 3 de março de 2021

Francisco leva mensagem de fraternidade ao país donde partiu Abraão

 

A visita papal ao Iraque, de 5 a 8 de março, assume especial significado e é apoio aos cristãos “que vivem em estado de dúvida e de medo e que passaram por momentos difíceis por causa das guerras”, segundo Naim Shoshandy, sacerdote iraquiano de rito sírio-católico, que acredita que será também oportunidade para estender a mensagem da ‘Fratelli tutti’ nesta parte do mundo muçulmano”, pois o Papa “é para todas as pessoas, porque somos todos irmãos”.

O Padre Shoshandy, que sofreu a perda do pai devido a um cancro, viu ali “o horror da guerra”, conhece em primeira mão o sofrimento e a perseguição e contou ao Vatican News que o seu irmão Raid foi assassinado em Mosul por ser cristão e que teve, ele e a família, de fugir de Qaraqosh para Erbil, quando o autoproclamado Estado Islâmico, em 2014, atacou e tomou a cidade onde havia uma importante minoria cristã – experiência que levou o sacerdote a descobrir a força do perdão a quem lhe matou o irmão e à experiência de perseguição, o que só é possível, graças a Jesus, que sempre nos ensinou a perdoar e a rezar pelas outras pessoas.

As guerras, que deixam marcas profundas nas pessoas e nas sociedades, no Iraque instilaram nos cristãos medo, insegurança, rejeição e até a morte, mas a vivência da fé manteve-os firmes e agarrados à mão do Deus da vida. Mas o Padre Naim diz que o povo do Iraque dará ao Papa um caloroso acolhimento, pois Francisco está a realizar o sonho esperado há 22 anos. O povo, feliz e entusiasmado (não só os cristãos, mas também as pessoas de outras religiões), espera-o de braços abertos. Tomam-se todas as medidas de segurança possíveis porque “é a primeira vez que um Papa visita o Iraque: a terra de nosso pai, Abraão, e a terra do profeta Jonas”.

A visita de Francisco tem um significado especial, segundo o padre iraquiano, porque o Papa tem lugar especial no coração dos cristãos na Igreja Oriental e porque os cristãos e povos que vivem em estado de dúvida e medo e que passaram por momentos difíceis por causa das guerras agora receberão “o seu apoio e incentivo”. E o sacerdote explana:

O Papa vai trazer consigo a esperança de melhorar a liberdade religiosa no país. (…) Esta visita é uma peregrinação na qual encontramos uma mensagem de irmandade e fraternidade. Encontramos isso na última carta ‘Fratelli tutti’, que tem um significado não só para os cristãos, mas para todas as pessoas nestes países. Parar com as guerras, com as dificuldades e com a morte. Devemos gerar paz, confiança, estabilidade e solidariedade humana. Esperamos muito do Santo Padre. Esta visita será um momento poderoso para que ele revele a verdade. Para mim, é um ato muito corajoso que dá esperança, especialmente nestes tempos difíceis que todos estamos vivendo.”.

A visita será também um encontro entre religiões, porque o Papa irá à cidade de Najaf, ao sul da capital, Bagdad, ao encontro do Grão Aiatolá Ali al Sistani, a máxima autoridade muçulmana xiita do país. Efetivamente cerca de 75% dos muçulmanos iraquianos são xiitas. Neste contexto, adianta o sacerdote, “será uma oportunidade de estender a mensagem da ‘Fratelli tutti’ nesta parte do mundo muçulmano”, pois “o Papa é para o mundo inteiro, para todas as pessoas, porque somos todos irmãos”. E Shoshandy lembra que o Iraque é um país em guerra há muitos anos e que a visita evidencia a importância do Iraque a nível internacional, e é etapa importante para conter o extremismo e os que o apoiam, insuflando “uma nova vida, nova coragem”.

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Francisco faz esta importante viagem de proximidade aos cristãos, de apoio à reconstrução do país devastado por guerras e pelo terrorismo e de mão estendida aos irmãos muçulmanos.

Os cristãos iraquianos esperavam pelo Papa há 22 anos, quando São João Paulo II planeou uma breve peregrinação a Ur dos Caldeus, primeira etapa do percurso jubilar aos lugares de salvação. Queria partir de Abraão, o pai comum de judeus, cristãos e muçulmanos. Muitos pediam ao Pontífice a não realização duma viagem que poderia fortalecer Saddam Hussein no poder após a primeira Guerra do Golfo. O Papa Wojtyla, contra tudo, seguia em frente, mas essa viagem relâmpago de natureza religiosa não se fez devido à oposição do presidente iraquiano.

Em 1999, o país estava vergado pela guerra sangrenta contra o Irão (1980-1988) e pelas sanções internacionais em resultado da invasão do Kuwait e primeira Guerra do Golfo. O número de cristãos no Iraque era três vezes maior que hoje e viagem não realizada permaneceu como ferida aberta. Wojtyla levantou a voz contra a segunda expedição militar ocidental no país (a guerra relâmpago de 2003), que terminou com o derrube de Saddam, dizendo no Angelus a 16 de março:

Gostaria de lembrar aos países membros das Nações Unidas e, em particular, àqueles que compõem o Conselho de Segurança, que o uso da força representa o último recurso, depois de terem esgotado todas as outras soluções pacíficas, de acordo com os bem conhecidos princípios da própria Carta das Nações Unidas”.

E, no pós-Angelus, suplicou:

Eu pertenço àquela geração que viveu a II Guerra Mundial e sobreviveu. Tenho o dever de dizer a todos os jovens, àqueles mais jovens do que eu, que não tiveram essa experiência: ‘Nunca mais a guerra!’, como disse Paulo VI na sua primeira visita às Nações Unidas. Devemos fazer tudo o que for possível!”.

Mas não foi ouvido por aqueles “jovens” que fizeram a guerra e foram incapazes de construir a paz. E veio o terrorismo, com atentados, bombas, devastações. O tecido social desintegrou-se e, em 2014, surgiu a ascensão do autoproclamado Estado Islâmico pelo Isis, com mais devastação, perseguição, violência, com as potências regionais e internacionais comprometidas com a luta em solo iraquiano e com a multiplicação das milícias fora de controlo.

Olhando para a situação do Iraque, toca-se com a mão o realismo das palavras que Francisco esculpiu na sua última encíclica ‘Fratelli tutti’:

Não podemos mais pensar na guerra como solução, dado que os riscos provavelmente serão sempre maiores do que a hipotética utilidade atribuída a ela. Diante a tal realidade, hoje é muito difícil sustentar os critérios racionais amadurecidos em outros séculos para falar de uma possível ‘guerra justa’. Nunca mais a guerra!... Cada guerra deixa o mundo pior de como o foi encontrado. A guerra é um fracasso da política e da humanidade, uma vergonhosa rendição, uma derrota diante das forças do mal.”.

Centenas de milhares de cristãos, nestes anos, viram-se forçados a abandonar as suas casas para buscar refúgio no exterior. Numa terra de primeira evangelização, cuja Igreja muito antiga tem origens na pregação apostólica, os cristãos esperam a visita de Francisco como um sopro de oxigénio. Há algum tempo o Papa anunciou a vontade de ir ao Iraque para os confortar, seguindo a única geopolítica que o move, a de manifestar proximidade a quem sofre e favorecer, com a sua presença, processos de reconciliação, reconstrução e paz. Assim, apesar dos riscos da pandemia e da segurança (e mesmo dos recentes atentados), manteve na agenda este compromisso, determinado a não dececionar os iraquianos que o esperam.

O coração da primeira viagem internacional, após 15 meses de bloqueio devido à covid-19, será o compromisso em Ur, cidade donde partiu o patriarca Abraão – ocasião para rezar junto dos crentes de outras confissões religiosas, em particular, muçulmanos, para redescobrir as razões da convivência entre irmãos, de modo a reconstruir um tecido social além das fações e grupos étnicos, e lançar um desafio ao Oriente Médio e ao mundo inteiro.

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Andrea Riccardi, fundador da comunidade romana de Santo Egídio, escreve na edição de março de “Vita Pastorale”, um artigo sobre esta viagem papal intitulado “Na Igreja dos mártires”.

Aberto um diálogo estável com o Grão Imame de Al-Azhar, o egípcio Ahmad Al-Tayyeb, a mais alta autoridade sunita e sendo agora a vez do mundo xiita, o Papa visita o Iraque, berço das religiões abraâmicas, mas extenuado pela guerra” e o historiador da Igreja enfatiza:

Hoje Francisco realiza o sonho do seu predecessor João Paulo II, que gostaria de ter ido ao Iraque, mas foi impedido por razões políticas por Saddam Hussein, com uma peregrinação e uma viagem pastoral que conforta os cristãos católicos (caldeus, siro-católicos) e não católicos (assírios, arménios), mas que fala de paz e fortalece o diálogo inter-religioso”.

Passando o programa papal em resenha, Riccardi destaca, em particular, a importância da visita privada do Papa à máxima autoridade muçulmana xiita no país, o Grão Aiatolá Ali al Sistani, na cidade sagrada xiita de Najaf, onde se encontra a sepultura do Imame Ali.

Como explica Riccardi, “Najaf é o coração do islamismo xiita” e “os xiitas foram perseguidos por Saddam Hussein e a própria Najaf sofreu danos”, mas “não se deve pensar que a liderança xiita iraquiana em Najaf esteja alinhada com o Irão e com Qom, cidade religiosa onde Khomeini residia”. Com efeito, “os xiitas iraquianos reivindicam a primazia de Najaf e a autonomia do Iraque”, pois “não têm a conceção teocrática teorizada por Khomeini no Irão. Assim, a visita do Papa a Najaf abrirá nova frente de diálogo com o Islão xiita, que tem representantes legítimos para falar em nome dos fiéis”.

Depois, Riccardi evidencia que a visita papal não é só “um apoio aos cristãos”, mas também é “uma mensagem para o Iraque”. Por isso, a primeira viagem dum Papa ao Iraque e ao Oriente Médio árabe (excetuando a Terra Santa) “adquire grande importância para o país e para a paz”.

A presença cristã na Mesopotâmia remonta às origens do cristianismo, como atestam os Atos dos Apóstolos. Segundo a tradição, o cristianismo espalhou-se por essas terras no primeiro século a partir da pregação do apóstolo São Tomé e seus discípulos, que se estendeu até a Ásia oriental. O Iraque é, pois, terra bíblica e historicamente importante para todos os cristãos, dada a sua riqueza cultural e religiosa que influenciou de forma decisiva o mundo.

A vida da comunidade (dividida entre caldeus, siríacos, arménios, latinos, melquitas, ortodoxos e protestantes), desde a chegada do Islão e após o nascimento do Iraque independente, foi marcada por perseguições e discriminações. Saddam Hussein originou um regime laico, com o qual os cristãos encontraram, apesar da nacionalização das suas escolas e a persistente discriminação, um modus vivendi que permitiu à Igreja realizar atividades no campo sócio-caritativo. Mas, já na época da ditadura, se registou uma crescente emigração, mercê das guerras no país desde o início dos anos 80 do século XX. Neste sentido, numerosas comunidades cristãs iraquianas foram criadas no exterior, a ponto de se colocar o problema da sua assistência espiritual e da salvaguarda da sua identidade cultural, problema particularmente sentido na Igreja Caldeia.

O êxodo mais intenso ocorreu com a invasão dos EUA em 2003, pela insegurança, violência e atentados, e entre 2014 e 2017, com o autoproclamado Estado Islâmico (ISIS) no norte do país.

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Considerando que, pela primeira vez na história, um Papa visitará o Iraque, país que deu origem a Abraão, onde reside uma das comunidades cristãs mais antigas, que ainda carrega feridas muito visíveis da guerra e enfrenta os flagelos da pobreza, do terrorismo e agora da covid-19, o Cardeal Secretário de Estado do Vaticano, Cardeal Pietro Parolin, sublinhou a importância desta viagem, destacando a urgência da colaboração para reconstruir o país e curar todas as “feridas, para reiniciar uma nova etapa” e deixar uma mensagem de futuro.

Segundo o número dois da Santa Sé, o Papa quer manifestar “uma atenção particular, uma proximidade particular, a este país”. Assim, o objetivo e o significado da viagem são: manifestar a proximidade do Papa com o Iraque e com os iraquianos e lançar a mensagem de que devemos trabalhar juntos na reconstrução do país, na cura de todas as feridas da guerra, terrorismo e pandemia e na no reinício de uma nova etapa.

Parolin reconhece a atualidade do que disse há três anos, quando visitou o Iraque, no sentido de cristãos e muçulmanos serem chamados a “iluminar a escuridão do medo e dos absurdos”.

Recorda que o disse no contexto alegre da noite de Natal, na catedral caldeia de Bagdad, cheia de gente, cantos e luz, em contraste com o clima sombrio do exterior. Tais palavras sintonizam hoje com o lema da viagem papal: “Sois todos irmãos”. Com efeito, esta fraternidade vem do facto de sermos filhos do mesmo pai, Deus, e também da referência a Abraão, que nasceu no Iraque, donde iniciou a sua aventura após o chamamento do Senhor – referência histórica de judeus, cristãos e muçulmanos, que deve levar a “um compromisso comum” de “serem luz na escuridão” e “dissipar as obscuridades” – realidades que permanecem ainda em grande parte.

Na ótica do purpurado, o centro do programa da viagem intensa de 4 dias está no facto de o Papa querer lançar uma mensagem em direção ao futuro. E explica:

Há situações e realidades que vivem um certo sofrimento, além dos lugares onde houve perseguições, martírios. A própria Igreja está passando por uma situação de dificuldade, o diálogo inter-religioso precisa ser promovido. Porém, as dificuldades podem ser superadas se houver a boa vontade e o compromisso por parte de todos de se reunirem e trabalharem juntos para a reconstrução. (…) Olhemos em frente com esperança e coragem para reconstruir esta realidade do Iraque.”.

Do encontro com o Grão Aiatolá Al-Sistani, Parolin realça que “Al-Sistani é uma das figuras mais simbólicas e significativas do mundo xiita” e que “sempre falou a favor da coexistência pacífica no Iraque, dizendo que todos os grupos étnicos, os grupos religiosos são parte do país”, o que “vai no sentido e na direção exata da construção desta fraternidade entre cristãos e muçulmanos, que deve caraterizar o país” e está na linha do que o Santo Padre deseja.

Face à expatriação mais de um milhão de cristãos nos últimos anos por causa da violência, o Cardeal Secretário de Estado diz que a Igreja – os cristãos, os católicos – no Iraque, esperam o Papa com grandes expectativas e “precisam de ser encorajados a viver sua vocação cristã dentro desta realidade tão difícil”, de tal modo que “a vocação dos cristãos do Oriente Médio é quase uma vocação dentro da vocação cristã, na sua realidade, no seu ambiente, no seu país”. Por isso, crê que o Pontífice “encorajará esta Igreja a ser corajosa, capaz de testemunhar, e também fará um convite para que permaneçam para dar testemunho da sua presença”.

E sobre a posição do Governo iraquiano que saudou esta viagem como “uma mensagem de paz”, Pietro Parolin entende que a viagem constitui “um grande desafio” a que “o Governo e a sociedade como um todo estão a tentar responder”. E o Cardeal insiste:

Precisamos de nos reunir e colaborar. E, para nos reunirmos e colaborarmos, para construir esta unidade, certamente há necessidade de perdão e reconciliação. Devemos superar o passado, olhar em frente neste sentido novo e positivo.”.

Todavia, considera que há também medidas a tomar, por exemplo, “contra o sectarismo, que ainda carateriza grandes setores da sociedade, ou contra a corrupção, a desigualdade e a discriminação, para que todos possam ter o seu lugar e todos se sintam cidadãos do país, com os mesmos direitos e deveres e o mesmo compromisso e responsabilidade de ajudar a construí-lo.

Em suma, Parolin espera que a presença do Santo Padre seja “um momento de renascimento, de renascimento material, de renascimento espiritual para o povo iraquiano”, com “repercussões em toda a região que precisa de bons exemplos” e “que isto se realize sob o sinal da fraternidade, pois, como declara o lema desta viagem papal, “Sois todos irmãos”.

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Seja assim para o bem da paz e da fraternidade genuína!

2021.03.03 – Louro de Carvalho

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