Quando, num documentário, o Papa Francisco
sustentava que os Estados deveriam legislar de modo que os homossexuais não
fossem privados da vida marital (?) que pretendiam à face da sociedade, muitas canetas e vozes se
entretiveram a tentar vislumbrar o que o Papa não disse então. Parece que supunham
ou temiam que Francisco estivesse a resvalar para a heresia em relação à
doutrina e aos costumes. Nada disso, apenas uma questão de humanidade e de
revisão do papel dos Estados!
Na verdade, na perspetiva dum humanista esclarecido
e testemunha de muitas e amargas experiências de pessoas ostracizadas, não compete
às pessoas fazer juízos de valor sobre o mérito ou demérito das pessoas e da subjetividade
com que tomam opções e enveredam por determinadas vias atitudinais. Por isso, autoquestionava-se
sobre quem era ele para julgar quem quer que fosse. E se um ou uma homossexual mostrasse
desejo de ouvir a Deus e viver em paz, porque não lhe dar apoio em vez de
emitir um juízo sobre a pessoa?
Também na lógica de Francisco não cabe aos
Estados legislar de forma discriminatória de modo a deixar sem direitos
pessoais, familiares, sociais e políticos quaisquer pessoas e obviamente as
pessoas do mesmo sexo que, atendendo à sua orientação pessoal, se decidem pela união
de facto ou mesmo casamento face à lei civil.
Outra é a questão a que respondeu, a 22 de
fevereiro, a Congregação para a Doutrina da Fé (CDF) com o beneplácito do Papa Francisco – resposta divulgada a 15 de março
pela Sala de Imprensa da Santa Sé.
A dúvida colocada à CDF sob a forma de
pergunta é se “a Igreja dispõe do poder de abençoar uniões entre
pessoas do mesmo sexo”. E a resposta é negativa.
E esta resposta vem acompanhada e ilustrada por uma Nota explicativa, que passo a sintetizar.
Muitos pastores, na tentativa pastoral de acompanhar o Pontífice, estudam
projetos de bênçãos para
uniões entre pessoas do mesmo sexo como plataforma para subsequente proposta de
caminhos de crescimento na fé.
Ora, escutar
a Palavra de Deus, rezar, participar nas ações litúrgicas eclesiais e exercer a
caridade são ações com importante papel como sustentáculo da leitura da própria
história pessoal e da ação com liberdade e em harmonia com o Batismo, pois, tal
como Deus ama cada pessoa como ela é, também a Igreja o deve fazer “rejeitando
toda a discriminação injusta”.
A Nota explicativa situa no quadro das
ações da Igreja os sacramentais como sinais sagrados pelos quais, imitando de
certo modo os sacramentos, se significam e obtêm, pela oração da Igreja,
efeitos de ordem espiritual, prévia ou subsequentemente à receção do efeito dos
sacramentos. O Catecismo da Igreja Católica (CIC) esclarece que “os
sacramentais não conferem a graça do Espírito Santo à maneira dos
sacramentos; mas, pela oração da Igreja, preparam para receber a graça e
pousar para cooperar com ela” (CIC n. 1670).
Incluem-se
nos sacramentais as bênçãos, com que a Igreja
chama as pessoas ao louvor a Deus e ao pedido da sua proteção e as exorta a
merecer, pela santidade da vida, a divina misericórdia.
E, em coerência
com a natureza dos sacramentais, quando se invocar a bênção sobre as relações
humanas, requer-se – além da reta intenção de quem nela participe – que o abençoado
seja ordenado objetiva e positivamente a receber e exprimir o desígnio de Deus
inscrito na Criação e revelado por Cristo. São, pois, compatíveis com a bênção
dada pela Igreja só as realidades que são ordenadas per se a servir tal desígnio.
Assim, não é
lícito conceder a bênção a relações ou parcerias estáveis, que implicam prática
sexual fora do matrimónio (isto
é, fora da união indissolúvel de homem e mulher, aberta por si à transmissão da
vida), como é o caso das
uniões entre pessoas do mesmo sexo. A presença, em tais relações, de
elementos positivos, em si dignos de ser apreciados e valorizados, não as
coonesta em destinatário legítimo da bênção eclesial, por tais elementos estarem
a serviço duma união não ordenada ao desígnio do Criador. Por outro lado, dada
a relação da bênção com o sacramento, a bênção de uniões homossexuais não pode
ser considerada lícita, pois constituiria uma imitação ou referência analógica
à bênção nupcial, não havendo fundamento para assimilar a união homossexual e o
desígnio de Deus sobre o matrimónio e a família.
Todavia, a
declaração de ilicitude das bênçãos de uniões entre pessoas do mesmo sexo não é
nem quer ser uma injusta discriminação, apenas relembra a verdade do rito
litúrgico e o que decorre da essência dos sacramentais enquanto aproximação ao
dinamismo dos sacramentos.
Por consequência,
a comunidade cristã e os Pastores devem atender com respeito e delicadeza e
como pessoas os homossexuais, sabendo encontrar as modalidades mais próximas,
coerentes com o ensino eclesial e anunciando-lhes a totalidade do
Evangelho. Por outro lado, é bom que estas pessoas reconheçam a proximidade
da Igreja – que reza por elas, as acompanha e com elas compartilha o caminho de
fé cristã – e acolham com disponibilidade os seus ensinamentos.
A resposta negativa
à dúvida colocada à CDF não exclui que sejam dadas bênçãos ao/à inquietante
homossexual que manifeste a vontade de viver na fidelidade ao desígnio de Deus
como proposto pelo ensino eclesial. Contudo, declara ilícito o modo de bênção que
dê a ideia de que a Igreja reconhece a suas uniões.
Entretanto, a
Igreja recorda que Deus não deixa de abençoar cada um dos seus filhos que peregrinam
neste mundo, porque para Ele “somos mais importantes que todos os pecados que
possamos cometer” (vd Francisco, Audiência geral de 2 de dezembro de
2020, Catequese sobre a oração: a bênção), mas não pode abençoar o pecado ou a
situação de pecado. Abençoa o ser humano pecador, para que reconheça que é
parte do seu desígnio de amor e se deixe transformar por Ele. Enfim, aceita-nos
como somos, mas nunca nos deixa como somos” (Ib).
Por tais
motivos, a Igreja não dispõe, nem pode dispor, do poder de abençoar uniões de
pessoas do mesmo sexo como se de bênção nupcial ou paranupcial se tratasse.
A Nota explicativa
em referência vem acompanhada dum comentário de que ressalta:
A Nota está centrada na distinção fundamental e decisiva entre as
pessoas e a união homossexual. Deste modo, os juízos negativos sobre a
bênção de uniões de pessoas do mesmo sexo não implicam um juízo sobre as
pessoas.
Realça o
facto de o n.º 2358 do CIC, verificando que um número considerável de homens e
de mulheres apresenta tendências homossexuais radicadas, propensão que, “objetivamente
desordenada, constitui, para a maior parte deles, uma provação”, considera que esta
pessoas “devem ser acolhidas com respeito, compaixão e delicadeza”, evitando-se
“qualquer sinal de discriminação injusta”, pois também “são chamadas a realizar
na sua vida a vontade de Deus e, se forem cristãs, a unir ao sacrifício da cruz
do Senhor as dificuldades que podem encontrar devido à sua condição”.
Há uma
tríplice razão da ilicitude apontada na Nota.
Antes de mais, está em causa a natureza das bênçãos, que são ligadas aos sacramentais,
sendo que uma bênção (bem-dizer) a uma relação
humana requer que esta seja ordenada para receber e exprimir o bem que dela se
espera e o que lhe é doado. Em segundo lugar, a bênção há de
referir-se à concretização do desígnio de Deus, sendo que a Igreja não tem o
poder de dispor dos desígnios de Deus, mudando-os, renegando-os ou
desmentindo-os, mas tem simplesmente a missão de ser sua fiel intérprete e
anunciadora. Por último, uma bênção de união homossexual induziria
o erro de assimilar tal união ao matrimónio.
Por isso, declara-se que a bênção das uniões homossexuais não
pode ser considerada lícita, o que não prejudica a consideração humana e cristã
em que a Igreja tem cada pessoa. Tanto assim é que a resposta à dúvida
colocada à CDF “não exclui que sejam
dadas bênçãos a quem tenha inclinação homossexual, mas evidencie a vontade de
viver na fidelidade aos desígnios revelados por Deus, tal como a Igreja o
ensina”.
Segundo o Público do dia 16, a declaração da CDF surge como resposta a práticas
em voga nalguns países, como EUA e Alemanha, onde paróquias e padres começaram
a “abençoar” estas uniões como alternativa ao casamento, bem como a pedidos
feitos a bispos para institucionalizar estas práticas. Na verdade, em resposta
às questões formais colocadas por um conjunto de dioceses, que se interrogavam
sobre a legitimidade destas “bênçãos”, o dicastério doutrinal do Vaticano,
emitiu o juízo: “Negativo”. E, como adiantou
a CDF, o Papa Francisco aprovou esta resposta, sem que esta declaração envolva “uma
forma injusta de discriminação”, configurando, antes, “uma lembrança da verdade
no ritual litúrgico”.
E, como ficou dito, em nada se
contraria o que, em outubro passado, o Papa Francisco defendeu sobre a
regulação do casamento civil entre pessoas do mesmo sexo pelos Estados,
considerando que os “homossexuais têm direito a fazer parte de uma família”.
2021.03.16 – Louro de Carvalho
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