A 1.ª leitura do 4.º domingo da Quaresma (2Cr 36,14-16.19-23) é uma passagem,
embora descontínua do segundo livro das Crónicas ou Paralipómenos (do grego ‘paraleipómena’, coisas omissas – verbo ‘paraleípô’). Os dois livros – de autor anónimo
ou duma sucessão de autores, que pretendem oferecer a história de Israel desde a criação do
mundo até à época do Exílio e que a tradição judaica atribui a Esdras (hipótese não provável) – integram, com os livros de Esdras e de Neemias, um bloco
que tem alguma unidade e se costuma designar como Obra do Cronista.
O cronista vê a obra dos agentes de Nabucodonosor de destruição de Jerusalém, incêndio do Templo e
deportação do Povo para a Babilónia como o resultado lógico dos pecados da
nação. Com efeito, “os chefes de Judá, os sacerdotes e o Povo multiplicaram as
suas infidelidades” (2Cr 36,14). Ora, como ignoraram
os avisos e desdenharam dos apelos que Deus lhes enviou pelos profetas, a ira
do Senhor abateu-se sobre o seu Povo (cf
2Cr 36,15-16), que se tornou estranho. E a duração do Exílio (que o cronista refere simbolicamente como de 70 anos – dez
vezes sete) é considerada um grande jubileu forçado por Deus para
compensação de todos os sábados (sétimos dias) que o Povo não
respeitou, não tendo satisfeito as suas obrigações para com o Senhor. Ou seja,
a “terra de Deus”, martirizada pela injustiça e pecado, teve que descansar 70
anos para se renovar e voltar a ser a “casa” do Povo de Deus (cf 2Cr 36,21).
Isto revela uma noção primitiva da justiça de Deus, segundo a
qual, enquanto o Povo vive na fidelidade à Aliança e aos mandamentos, Deus lhe oferece
vida e felicidade, mas, quando o Povo é infiel aos compromissos, Deus permite
que lhe aconteça desgraça e morte. E é isto que Frei Bento Domingues tem
subjacente ao escrever no Público
deste domingo:
“Quando comecei a ler os textos da liturgia
deste domingo, consagrado à alegria, fiquei triste. São textos muito antigos
acerca de acontecimentos ainda mais antigos, de mundos que apenas se renovam
com guerras fratricidas…”.
Porém, o Cronista bíblico está cônscio de que o castigo não é
a última palavra de Deus. Na verdade, os últimos versículos (2Cr 36,22-23 – que são uma resumo de Esd 1,1-4) apontam no
sentido da esperança e do recomeço, que é, segundo o Cardeal Patriarca, sempre
possibilitado por Deus. Por trás da referência à libertação operada por Ciro e
ao édito que autoriza os habitantes de Judá a regressar à sua terra, está a
ideia do Deus que não abandona o Povo, antes continua a dar-lhe, em cada
momento da história, a possibilidade de recomeçar.
Se um rei estrangeiro lançou a desgraça sobre o povo infiel a
Deus, outro rei estrangeiro, não da Babilónia, mas da Pérsia, o restaurou na
liberdade, lhe deu permissão para regresso à terra de que tinha saudades e lhe
reconstruiu o Templo. Estranhas vias para a manifestação da misericórdia
divina!
A grande lição teológica expressa neste fragmento do livro
deixa claro que, abandonando a Palavra de Deus, que é a nossa luz (Sl 119,105) e vida (Dt 32,47), caímos nas trevas e no exílio da
morte ou num outro exílio qualquer. Porém, com Deus, há a reversibilidade do
caminho: reaproximando‑nos de Deus e da sua Palavra, recuperaremos a luz e a
vida. E é a Palavra do Senhor que tudo cura (Sb 16,12).
E Frei Bento Domingues, que passou para os textos seguintes
da liturgia da dominga, topou motivos da alegria pascal de que o Papa Francisco
deu testemunho eloquente na recente viagem ao Iraque, quer animando os cristãos
que sobrevivem nas ruínas que espelham a destruição operadas nos último anos,
quer apostando no diálogo inter-religioso sobretudo entre as religiões
abraâmicas, quer apresentando a solidariedade da Igreja católica na
reconstrução do país.
***
O passo evangélico desta dominga (Jo
3,14-21) – que integra
o episódio da conversa de Jesus com Nicodemos, um membro do Sinédrio, mas de
reta intenção, que procurou Jesus de noite para se esclarecer e que não teve
força para se opor à condenação de Jesus, mas foi um dos que intervieram no
sepultamento do Senhor – exibe luminosamente e em grande plano o “Filho do
Homem”, que deve
ser levantado (“deî hypsôthênai”) (crucificado/exaltado/glorificado) qual genuíno “Servo do Senhor” (Is 52,13), ora identificado com Cristo Jesus (Fl 2,9), o Filho Unigénito de Deus, “a Luz que veio ao mundo” (Jo 3,19; 12,46), para dar a Vida ao mundo (Jo 1,4; 3,15‑16).
Segundo o livro dos Números (Nm 21,4b-9), durante o êxodo, quantos olhassem
para a serpente que Moisés, à ordem de Deus, mandou esculpir e suspender no
alto dum poste ficavam curados do veneno exalado pelas serpentes mortíferas que
apareceram no deserto – prolepse do que viria a suceder com todos os que tiveram
a coragem (e suceder com
os que a tiverem) de ver
e aceitar Cristo crucificado, nossa redenção e salvação. Com efeito, o mesmo
Deus, que proibira o Povo de esculpir qualquer tipo de imagens, sobretudo da
divindade, para que não se tentasse à idolatria e fosse exemplo para outros
povos, ordenou a criação da imagem da serpente de bronze, a figura antecipada
da antítese da serpente tentadora do paraíso terreal.
Para ter a Vida, é preciso ver o
Filho (Jo 3,36; 6,40), Luz da Luz, que brilha na Cruz,
novo luzeiro do amor de Deus (cf At 2,36). Porém,
ver o Filho (crer Nele) é obra
do Espírito Santo em nós (1Cor
12,3). E, para O ver, há
que nascer da água e do Espírito (cf Jo 3,5), como disse Jesus a Nicodemos em alusão ao batismo, a iluminação que nos
abre os olhos para o divino (Heb 6,4‑5) e nos
faz filhos da luz, operadores das obras da luz, que não têm parte com as obras
das trevas (Ef 5,8‑14).
A Luz, de facto, veio ao mundo (“elêlythen”: perfeito segundo de ‘érchomai’) e fica acesa (como indica o verbo grego no perfeito). Vinda na humildade da condição humana, foi entronizada na Cruz
onde arde in perpetuum, o que
manifesta de modo superno o indizível amor de Deus: “Deus amou (“êgápêsen hô Theós”: aoristo histórico) tanto o mundo que entregou o seu
Filho unigénito” (Jo
3,16). Assim exibida na
Cruz Gloriosa, a Luz dá a Vida a quem olhar para ela como a imagem da serpente
levantada no deserto (Nm
21,8‑9). E o 4.º
Evangelho documenta-o com vários versículos: “Hão de olhar para Aquele que
trespassaram” (Jo 19,37); “Quando Eu for levantado da terra, arrastarei todos a mim” (“pántas
helkýsô prós emautón”) (Jo
12,32); e “Quando
tiverdes levantado o Filho do Homem, então
sabereis que “Eu Sou” (“Egô
eimi”) (título divino) (Jo 8,28).
O
arrasto que Jesus assume como poder seu tem a necessária solidariedade do Pai:
“Ninguém pode vir a Mim (“eltheîn prós me”), se o Pai, que Me enviou, não
o arrastar” (“hélkýsêi”) (Jo 6,44). É a realização em Jesus da
declaração amorosa de Deus, nomeadamente em Jeremias 31,3 (38,3
LXX): “Com um amor eterno Eu te amei; por isso
te arrastei com carinho”. E é agora na Cruz que Jesus manifesta o seu amor e que indica aos
homens o caminho que devem percorrer para alcançar a salvação, a vida plena.
Aos homens é proposto que acreditem no Filho do Homem
levantado na cruz, para que não pereçam, mas tenham a vida eterna. Crer no
Filho do Homem significa aderir a Ele e à sua proposta, aprender a lição do
amor e fazer, como Ele, dom total da própria vida a Deus e aos irmãos. É deste
modo que se chega à vida eterna.
Sobre o
significado exato da cruz e do modo como ela
gera vida para o homem, é de atentar na História da Salvação para vincarmos que
Jesus, o Filho unigénito enviado pelo Pai ao encontro dos homens para lhes dar
a vida, é o grande dom do amor de Deus à humanidade. A expressão “Filho
unigénito” evoca o “sacrifício de Isaac” (cf
Gn 22,16): Deus comporta-se como Abraão, que se desprendeu do próprio filho por
amor: em Abraão, amor a Deus; em Deus, amor aos homens. O “Filho unigénito” de
Deus veio ao mundo para cumprir o desígnio do Pai em prol dos homens: incarnou
na nossa história humana, assumiu a nossa fragilidade, partilhou a nossa
humanidade e, em consequência duma vida gasta na luta contra as forças das
trevas, foi preso, torturado e morto numa cruz. A cruz é o último ato duma vida
vivida no amor, doação, entrega; a suprema expressão do amor de Deus pelos
homens; e o sinal da dimensão do incomensurável amor de Deus por esta
humanidade a quem Ele quer oferecer a salvação.
Ver o Filho do Homem alçado na
Cruz é leva contemplar, por um lado, o cenário da nossa violência e malvadez, postas
a descoberto no rosto desfigurado, nas chagas abertas, no sangue a derramar-se
ou já empastado do Redentor e, por outro lado, o cenário dinâmico do incomensurável
amor de Deus, que abraça, absorve e absolve. E, exposta a imagem da serpente que
temos oculta em nós e que de nós se alimenta como parasita ou que idolatramos, conhecemos
pela Cruz o achaque de que padecemos e temos à disposição o remédio que tudo cura:
o amor que a memória subversiva da Paixão do Senhor presentifica e transforma
em apelo.
Com Jesus – o “Filho unigénito” que morreu na cruz – os
homens aprendem que a vida está na obediência ao desígnio do Pai e no dom da
vida aos irmãos, por amor.
Ao enviar ao mundo o seu Filho, Deus não tinha uma intenção
negativa. Com efeito, o Messias não veio em missão judicial, nem veio excluir
ninguém da salvação. Veio, ao invés, oferecer aos homens – a todos os homens –
a vida definitiva, ensinando-os a amar sem medida e dando-lhes o Espírito que
os transforma em Homens Novos. Deus não enviou o Filho ao encontro de homens
perfeitos, mas de homens pecadores, egoístas, autossuficientes, a fim de lhes
apresentar nova proposta de vida. E foi o amor de Jesus – bem como o Espírito
que Jesus deixou – que transformou esses homens e os inseriu numa dinâmica de
vida nova e plena.
Ante a oferta de salvação que Deus lhe faz, o homem tem de
fazer a escolha. Quando aceita essa oferta e adere a Jesus, escolhe a vida; mas,
quando prefere continuar escravo de mecanismos de egoísmo e autossuficiência,
rejeita Deus e autoexclui-se da salvação. A salvação ou a condenação não são, nesta
ótica, prémio ou castigo de Deus ao homem pelo seu bom ou mau comportamento,
mas fruto da livre escolha do homem face à oferta de salvação que Deus lhe faz.
A responsabilidade pela vida ou pela morte não recai sobre Deus, mas sobre o
homem. Com efeito, na perspetiva joânica, não existe um julgamento futuro, no
fim dos tempos, em que Deus pesa na balança o pecado do homem, para ver se o há
de salvar ou condenar: o juízo realiza-se aqui e agora e depende da atitude que
o homem assume diante da proposta de Jesus.
No final do trecho em referência, João repete o tema da opção
pela vida ou pela morte, verifica que, por vezes, os homens rejeitam Deus e
preferem a escravidão e as trevas (egoísmo,
injustiça, orgulho, autossuficiência). Ao invés, quem aceita Jesus e pratica as obras do amor
escolhe a luz, identifica-se com Deus e dá testemunho de Deus no meio do mundo.
Em suma: porque ama a humanidade, Deus enviou o seu Filho unigénito
ao mundo com uma proposta de salvação. Essa oferta nunca foi retirada; continua
aberta e à espera de resposta. Diante da oferta de Deus, o homem pode escolher
a vida eterna ou excluir-se da salvação.
***
O excerto da Carta de Paulo aos Efésios (Ef
2,4-10) acentua o
nosso movimento da morte para a vida em Cristo Jesus. Nisto se revelou “o grande amor
com que Deus nos amou” (‘êgápêsen’: aoristo
histórico) (Efésios 2,4). É por este inefável amor que Deus nos
vivifica com Cristo, nos ressuscita com Cristo e nos senta à sua direita com
Cristo. Somos efetivamente obra de Deus.
Deus é, de facto, rico em misericórdia e ama o homem com um
amor intenso, pelo que à situação pecadora do homem Deus responde com a graça.
O amor libertador de Deus derrama-se sobre o homem se e quando o homem quer e se
converte; mas é um amor incondicional, que atinge o homem mesmo quando ele
continua a percorrer caminhos de pecado e de morte.
Ao homem orgulhoso e autossuficiente, instalado no pecado,
Deus oferece uma nova vida, ressuscitando-o e sentando-o com Cristo no céu (“nos ressuscitou e nos fez sentar no céu com Cristo Jesus” –
Ef 2,6).
Na verdade, a Carta aos Efésios não refere a ressurreição e glorificação
do homem como coisa futura, mas como coisa já do passado. No entanto, essa ação
passada afeta o presente e tem implicações no presente. Unido a Cristo, o
cristão já ressuscitou e já foi glorificado. E, embora continue a viver na
terra, sujeito à finitude e às limitações da vida presente, é já, “aqui e agora”,
um cidadão do céu. Por isso, a vida do cristão está marcada pela dupla condição
da fragilidade e da eternidade. E, apesar dos seus limites e debilidade, o
cristão tem de testemunhar e anunciar a vida nova que Deus já lhe ofereceu
nesta terra.
Em todo o arrazoado da Carta destaca-se um elemento
incontornável, a que o autor dá grande importância: a gratuitidade da ação salvadora de Deus. A salvação não é conquista
do homem, nem resulta das obras ou dos méritos do homem, mas é dom de Deus.
Portanto, não há lugar a qualquer sentimento de orgulho ou atitude de
autoglorificação. A salvação é oferta gratuita que Deus faz ao homem, mesmo que
o homem não a mereça.
Da oferta de salvação que Deus faz ao homem, nasce um homem
novo, que pratica boas obras. Porém, as boas obras não são condição para se
receber a salvação, mas o resultado da ação da graça que Deus, no seu amor e bondade,
derrama gratuitamente sobre o homem.
***
Na verdade, devemos secundarizar a ideia de justiça em Deus, porque
prevalece a misericórdia em toda a sua intensidade e extensão. Ou, se quisermos
dizer de outro modo, esqueceremos a noção primitiva da justiça em Deus,
entendida à maneira humana, e acolheremos a justiça de Deus, que é enformada
pela superna misericórdia e paterna solicitude.
2021.03.14
– Louro de Carvalho
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