segunda-feira, 15 de março de 2021

Da noção primitiva da justiça de Deus à efusão da misericórdia

 

A 1.ª leitura do 4.º domingo da Quaresma (2Cr 36,14-16.19-23) é uma passagem, embora descontínua do segundo livro das Crónicas ou Paralipómenos (do grego ‘paraleipómena’, coisas omissas – verbo ‘paraleípô’). Os dois livros – de autor anónimo ou duma sucessão de autores, que pretendem oferecer a história de Israel desde a criação do mundo até à época do Exílio e que a tradição judaica atribui a Esdras (hipótese não provável) – integram, com os livros de Esdras e de Neemias, um bloco que tem alguma unidade e se costuma designar como Obra do Cronista.

O cronista vê a obra dos agentes de Nabucodonosor de destruição de Jerusalém, incêndio do Templo e deportação do Povo para a Babilónia como o resultado lógico dos pecados da nação. Com efeito, “os chefes de Judá, os sacerdotes e o Povo multiplicaram as suas infidelidades” (2Cr 36,14). Ora, como ignoraram os avisos e desdenharam dos apelos que Deus lhes enviou pelos profetas, a ira do Senhor abateu-se sobre o seu Povo (cf 2Cr 36,15-16), que se tornou estranho. E a duração do Exílio (que o cronista refere simbolicamente como de 70 anos – dez vezes sete) é considerada um grande jubileu forçado por Deus para compensação de todos os sábados (sétimos dias) que o Povo não respeitou, não tendo satisfeito as suas obrigações para com o Senhor. Ou seja, a “terra de Deus”, martirizada pela injustiça e pecado, teve que descansar 70 anos para se renovar e voltar a ser a “casa” do Povo de Deus (cf 2Cr 36,21).

Isto revela uma noção primitiva da justiça de Deus, segundo a qual, enquanto o Povo vive na fidelidade à Aliança e aos mandamentos, Deus lhe oferece vida e felicidade, mas, quando o Povo é infiel aos compromissos, Deus permite que lhe aconteça desgraça e morte. E é isto que Frei Bento Domingues tem subjacente ao escrever no Público deste domingo:

Quando comecei a ler os textos da liturgia deste domingo, consagrado à alegria, fiquei triste. São textos muito antigos acerca de acontecimentos ainda mais antigos, de mundos que apenas se renovam com guerras fratricidas…”. 

Porém, o Cronista bíblico está cônscio de que o castigo não é a última palavra de Deus. Na verdade, os últimos versículos (2Cr 36,22-23 – que são uma resumo de Esd 1,1-4) apontam no sentido da esperança e do recomeço, que é, segundo o Cardeal Patriarca, sempre possibilitado por Deus. Por trás da referência à libertação operada por Ciro e ao édito que autoriza os habitantes de Judá a regressar à sua terra, está a ideia do Deus que não abandona o Povo, antes continua a dar-lhe, em cada momento da história, a possibilidade de recomeçar.

Se um rei estrangeiro lançou a desgraça sobre o povo infiel a Deus, outro rei estrangeiro, não da Babilónia, mas da Pérsia, o restaurou na liberdade, lhe deu permissão para regresso à terra de que tinha saudades e lhe reconstruiu o Templo. Estranhas vias para a manifestação da misericórdia divina!

A grande lição teológica expressa neste fragmento do livro deixa claro que, abandonando a Palavra de Deus, que é a nossa luz (Sl 119,105) e vida (Dt 32,47), caímos nas trevas e no exílio da morte ou num outro exílio qualquer. Porém, com Deus, há a reversibilidade do caminho: reaproximando‑nos de Deus e da sua Palavra, recuperaremos a luz e a vida. E é a Palavra do Senhor que tudo cura (Sb 16,12).

E Frei Bento Domingues, que passou para os textos seguintes da liturgia da dominga, topou motivos da alegria pascal de que o Papa Francisco deu testemunho eloquente na recente viagem ao Iraque, quer animando os cristãos que sobrevivem nas ruínas que espelham a destruição operadas nos último anos, quer apostando no diálogo inter-religioso sobretudo entre as religiões abraâmicas, quer apresentando a solidariedade da Igreja católica na reconstrução do país.          

***

O passo evangélico desta dominga (Jo 3,14-21) – que integra o episódio da conversa de Jesus com Nicodemos, um membro do Sinédrio, mas de reta intenção, que procurou Jesus de noite para se esclarecer e que não teve força para se opor à condenação de Jesus, mas foi um dos que intervieram no sepultamento do Senhor – exibe luminosamente e em grande plano o “Filho do Homem”, que deve ser levantado (“deî hypsôthênai”) (crucificado/exaltado/glorificado) qual genuíno “Servo do Senhor” (Is 52,13), ora identificado com Cristo Jesus (Fl 2,9), o Filho Unigénito de Deus, “a Luz que veio ao mundo” (Jo 3,19; 12,46), para dar a Vida ao mun­do (Jo 1,4; 3,15‑16)

Segundo o livro dos Números (Nm 21,4b-9), durante o êxodo, quantos olhassem para a serpente que Moisés, à ordem de Deus, mandou esculpir e suspender no alto dum poste ficavam curados do veneno exalado pelas serpentes mortíferas que apareceram no deserto – prolepse do que viria a suceder com todos os que tiveram a coragem (e suceder com os que a tiverem) de ver e aceitar Cristo crucificado, nossa redenção e salvação. Com efeito, o mesmo Deus, que proibira o Povo de esculpir qualquer tipo de imagens, sobretudo da divindade, para que não se tentasse à idolatria e fosse exemplo para outros povos, ordenou a criação da imagem da serpente de bronze, a figura antecipada da antítese da serpente tentadora do paraíso terreal.    

Para ter a Vida, é preciso ver o Filho (Jo 3,36; 6,40), Luz da Luz, que brilha na Cruz, novo luzeiro do amor de Deus (cf At 2,36). Porém, ver o Filho (crer Nele) é obra do Espírito Santo em nós (1Cor 12,3). E, para O ver, há que nascer da água e do Espírito (cf Jo 3,5), como disse Jesus a Nicodemos em alusão ao batismo, a iluminação que nos abre os olhos para o divi­no (Heb 6,4‑5) e nos faz filhos da luz, operadores das obras da luz, que não têm parte com as obras das trevas (Ef 5,8‑14).

A Luz, de facto, veio ao mundo (“elêlythen”: perfeito segundo de ‘érchomai’) e fica acesa (como indica o verbo grego no perfeito). Vinda na humildade da condição humana, foi entronizada na Cruz onde arde in perpetuum, o que manifesta de modo superno o indi­zível amor de Deus: “Deus amou (“êgápêsen hô Theós”: aoristo históri­co) tanto o mundo que entregou o seu Filho unigénito” (Jo 3,16). Assim exibida na Cruz Gloriosa, a Luz dá a Vida a quem olhar para ela como a imagem da serpente levantada no deserto (Nm 21,8‑9). E o 4.º Evangelho documenta-o com vários versículos: “Hão de olhar para Aquele que trespassaram” (Jo 19,37); “Quando Eu for levantado da terra, arrastarei todos a mim” (“pántas helkýsô prós emautón”) (Jo 12,32); e “Quando tiverdes levantado o Filho do Homem, então sabereis que “Eu Sou(“Egô eimi”) (título divino) (Jo 8,28).

O arrasto que Jesus assume como poder seu tem a necessária solidariedade do Pai: “Ninguém pode vir a Mim (“eltheîn prós me), se o Pai, que Me enviou, não o arrastar(“hélkýsêi) (Jo 6,44). É a realização em Jesus da declaração amorosa de Deus, nomeadamente em Jeremias 31,3 (38,3 LXX): “Com um amor eterno Eu te amei; por isso te arrastei com carinho”. E é agora na Cruz que Jesus manifesta o seu amor e que indica aos homens o caminho que devem percorrer para alcançar a salvação, a vida plena.

Aos homens é proposto que acreditem no Filho do Homem levantado na cruz, para que não pereçam, mas tenham a vida eterna. Crer no Filho do Homem significa aderir a Ele e à sua proposta, aprender a lição do amor e fazer, como Ele, dom total da própria vida a Deus e aos irmãos. É deste modo que se chega à vida eterna.

Sobre o significado exato da cruz e do modo como ela gera vida para o homem, é de atentar na História da Salvação para vincarmos que Jesus, o Filho unigénito enviado pelo Pai ao encontro dos homens para lhes dar a vida, é o grande dom do amor de Deus à humanidade. A expressão “Filho unigénito” evoca o “sacrifício de Isaac” (cf Gn 22,16): Deus comporta-se como Abraão, que se desprendeu do próprio filho por amor: em Abraão, amor a Deus; em Deus, amor aos homens. O “Filho unigénito” de Deus veio ao mundo para cumprir o desígnio do Pai em prol dos homens: incarnou na nossa história humana, assumiu a nossa fragilidade, partilhou a nossa humanidade e, em consequência duma vida gasta na luta contra as forças das trevas, foi preso, torturado e morto numa cruz. A cruz é o último ato duma vida vivida no amor, doação, entrega; a suprema expressão do amor de Deus pelos homens; e o sinal da dimensão do incomensurável amor de Deus por esta humanidade a quem Ele quer oferecer a salvação.

Ver o Filho do Homem alçado na Cruz é leva contemplar, por um lado, o cenário da nossa violência e malvadez, postas a descoberto no rosto desfigurado, nas chagas abertas, no sangue a derramar-se ou já empastado do Redentor e, por outro lado, o cenário dinâmico do incomensurável amor de Deus, que abraça, absorve e absolve. E, exposta a imagem da serpente que temos oculta em nós e que de nós se alimenta como parasita ou que idolatramos, conhecemos pela Cruz o achaque de que padecemos e temos à disposição o remédio que tudo cura: o amor que a memória subversiva da Paixão do Senhor presentifica e transforma em apelo.

Com Jesus – o “Filho unigénito” que morreu na cruz – os homens aprendem que a vida está na obediência ao desígnio do Pai e no dom da vida aos irmãos, por amor.

Ao enviar ao mundo o seu Filho, Deus não tinha uma intenção negativa. Com efeito, o Messias não veio em missão judicial, nem veio excluir ninguém da salvação. Veio, ao invés, oferecer aos homens – a todos os homens – a vida definitiva, ensinando-os a amar sem medida e dando-lhes o Espírito que os transforma em Homens Novos. Deus não enviou o Filho ao encontro de homens perfeitos, mas de homens pecadores, egoístas, autossuficientes, a fim de lhes apresentar nova proposta de vida. E foi o amor de Jesus – bem como o Espírito que Jesus deixou – que transformou esses homens e os inseriu numa dinâmica de vida nova e plena.

Ante a oferta de salvação que Deus lhe faz, o homem tem de fazer a escolha. Quando aceita essa oferta e adere a Jesus, escolhe a vida; mas, quando prefere continuar escravo de mecanismos de egoísmo e autossuficiência, rejeita Deus e autoexclui-se da salvação. A salvação ou a condenação não são, nesta ótica, prémio ou castigo de Deus ao homem pelo seu bom ou mau comportamento, mas fruto da livre escolha do homem face à oferta de salvação que Deus lhe faz. A responsabilidade pela vida ou pela morte não recai sobre Deus, mas sobre o homem. Com efeito, na perspetiva joânica, não existe um julgamento futuro, no fim dos tempos, em que Deus pesa na balança o pecado do homem, para ver se o há de salvar ou condenar: o juízo realiza-se aqui e agora e depende da atitude que o homem assume diante da proposta de Jesus.

No final do trecho em referência, João repete o tema da opção pela vida ou pela morte, verifica que, por vezes, os homens rejeitam Deus e preferem a escravidão e as trevas (egoísmo, injustiça, orgulho, autossuficiência). Ao invés, quem aceita Jesus e pratica as obras do amor escolhe a luz, identifica-se com Deus e dá testemunho de Deus no meio do mundo.

Em suma: porque ama a humanidade, Deus enviou o seu Filho unigénito ao mundo com uma proposta de salvação. Essa oferta nunca foi retirada; continua aberta e à espera de resposta. Diante da oferta de Deus, o homem pode escolher a vida eterna ou excluir-se da salvação.

***

O excerto da Carta de Paulo aos Efésios (Ef 2,4-10) acentua o nosso movimento da morte para a vida em Cristo Je­sus. Nisto se revelou “o gran­de amor com que Deus nos amou(‘êgápêsen: aoristo histórico) (Efésios 2,4). É por este inefável amor que Deus nos vivifica com Cristo, nos ressuscita com Cristo e nos senta à sua direita com Cristo. Somos efetivamente obra de Deus.

Deus é, de facto, rico em misericórdia e ama o homem com um amor intenso, pelo que à situação pecadora do homem Deus responde com a graça. O amor libertador de Deus derrama-se sobre o homem se e quando o homem quer e se converte; mas é um amor incondicional, que atinge o homem mesmo quando ele continua a percorrer caminhos de pecado e de morte.

Ao homem orgulhoso e autossuficiente, instalado no pecado, Deus oferece uma nova vida, ressuscitando-o e sentando-o com Cristo no céu (“nos ressuscitou e nos fez sentar no céu com Cristo Jesus” – Ef 2,6).

Na verdade, a Carta aos Efésios não refere a ressurreição e glorificação do homem como coisa futura, mas como coisa já do passado. No entanto, essa ação passada afeta o presente e tem implicações no presente. Unido a Cristo, o cristão já ressuscitou e já foi glorificado. E, embora continue a viver na terra, sujeito à finitude e às limitações da vida presente, é já, “aqui e agora”, um cidadão do céu. Por isso, a vida do cristão está marcada pela dupla condição da fragilidade e da eternidade. E, apesar dos seus limites e debilidade, o cristão tem de testemunhar e anunciar a vida nova que Deus já lhe ofereceu nesta terra.

Em todo o arrazoado da Carta destaca-se um elemento incontornável, a que o autor dá grande importância: a gratuitidade da ação salvadora de Deus. A salvação não é conquista do homem, nem resulta das obras ou dos méritos do homem, mas é dom de Deus. Portanto, não há lugar a qualquer sentimento de orgulho ou atitude de autoglorificação. A salvação é oferta gratuita que Deus faz ao homem, mesmo que o homem não a mereça.

Da oferta de salvação que Deus faz ao homem, nasce um homem novo, que pratica boas obras. Porém, as boas obras não são condição para se receber a salvação, mas o resultado da ação da graça que Deus, no seu amor e bondade, derrama gratuitamente sobre o homem.

***

Na verdade, devemos secundarizar a ideia de justiça em Deus, porque prevalece a misericórdia em toda a sua intensidade e extensão. Ou, se quisermos dizer de outro modo, esqueceremos a noção primitiva da justiça em Deus, entendida à maneira humana, e acolheremos a justiça de Deus, que é enformada pela superna misericórdia e paterna solicitude.

2021.03.14 – Louro de Carvalho   

Sem comentários:

Enviar um comentário