domingo, 7 de março de 2021

Papa Francisco no Iraque em mais um passo no diálogo islâmico-cristão

 

 

Francisco iniciou o segundo dia em terras iraquianas pela reunião com o Grande Aiatolá Sayyid Ali Al-Husayni Al-Sistani, na sua residência em Najaf. Al-Sistani é o maior ponto de referência religioso, teológico e jurídico para os muçulmanos xiitas no Iraque, e não só. O encontro é histórico, por ser a primeira vez que o Papa se reúne com um expoente do Islão xiita, o que dará frutos ao Iraque como um todo e, em particular, às comunidades cristãs e minoritárias.

Como afirmou Matteo Bruni, diretor da Sala de Imprensa da Santa Sé, na visita de cortesia, que durou cerca de 45 minutos, o Pontífice vincou a importância da colaboração e da amizade entre as comunidades religiosas para, no cultivo do respeito mútuo e do diálogo, poderem contribuir para o bem do Iraque, da região, de toda a humanidade. E Bruni referiu ainda:

O encontro foi uma ocasião para o Papa agradecer ao Grande Aiatolá Al-Sistani por, junto com a comunidade xiita, diante da violência e das grandes dificuldades dos últimos anos, ter levantado sua voz em defesa dos mais fracos e perseguidos, afirmando a sacralidade da vida humana e a importância da unidade do povo iraquiano”.

Ao despedir-se do Grande Aiatolá, o Santo Padre reiterou a oração a Deus, Criador de todos, por um futuro de paz e fraternidade para o Iraque, para o Médio Oriente e para todo o mundo.

Por seu turno, o gabinete de imprensa do Grande Aiatolá, em declaração divulgada após o encontro, informou que “a discussão girou em torno dos grandes desafios que a humanidade enfrenta nesta era e o papel da fé em Deus Todo-Poderoso e em suas mensagens, e o compromisso com elevados valores morais para superá-los”.

O Aiatolá falou ao Papa “da injustiça, da opressão, da pobreza, da perseguição religiosa e intelectual, da supressão das liberdades fundamentais e da falta de justiça social, em particular das guerras, dos atos de violência, do bloqueio económico e do deslocamento de muitos povos na região, que sofrem, em particular, entre outros, o povo palestino nos territórios ocupados”.

Al-Sistani enfatizou o papel dos líderes religiosos e espirituais em frear essas tragédias e o objetivo esperado em exortar as partes interessadas (especialmente as grandes potências) “a priorizar a razão e a sabedoria e rejeitar a linguagem da guerra, a não se expandir o cuidado pelos próprios interesses sobre o direito dos povos de viver em liberdade e dignidade”; e vincou “a importância dos esforços concertados para consolidar os valores da harmonia, da convivência pacífica e da solidariedade humana em todas as sociedades, com base na promoção dos direitos e no respeito mútuo entre os seguidores de diferentes religiões e tendências intelectuais”.

O líder xiita elogiou o status e “a história gloriosa do Iraque”, expressando a esperança “de que supere o atual calvário em pouco tempo”, reiterando o seu interesse “em que os cidadãos cristãos vivam como todos os iraquianos, em segurança e paz, e com pleno respeito pelos seus direitos constitucionais”. E sublinhou “o papel que a autoridade religiosa desempenhou em protegê-los e a todos os que foram ofendidos e feridos nos incidentes dos últimos anos, especialmente no período em que os terroristas se apoderaram de grandes áreas em várias províncias iraquianas e ali cometeram atos criminosos”.

Por fim, “desejou todo bem e felicidade ao Sumo Pontífice, aos seguidores da Igreja Católica e ao público em geral, agradecendo-lhe por ter insistido em ir a Najaf, para fazer esta visita”.

O Papa saiu cedo da Nunciatura, às 6h50, dirigindo-se ao Aeroporto de Bagdad, que dista 28,7 km, para se transferir a Najaf num voo da Iraqi Airways. Após 45 minutos, foi recebido no Aeroporto pelo governador e deslocou-se, em automóvel, para a residência do Grande Aiatolá. Um grupo de iraquianos, com vestes tradicionais, acolheu-o na parte externa da residência de Al-Sistani. E, quando entrou, recebido à entrada pelo filho Mohammed Rida, foram soltas pombas brancas, em sinal de paz. Juntos, dirigiram-se para a sala onde ocorreu o encontro privado. Foi estudado cada detalhe do encontro entre os representantes das partes, não havendo, por exemplo, troca de presentes, por este gesto não fazer parte da tradição xiita nestes casos. 

Depois de Francisco ter estreitado laços com uma das mais altas autoridades do Islão sunita, o Grão Imame de Al-Azhar, Ahmed al-Tayyeb, com quem assinou, em Abu Dhabi, o Documento sobre a Fraternidade Humana em prol da Paz e da Convivência Comum, deu agora mais um passo no trabalho de construção do espírito de fraternidade e respeito entre as religiões e todos os seres humanos, apesar das diferenças culturais e diferentes pontos de vista, pois, como refere o documento de Abu Dhabi, “a fé leva o crente a ver no outro um irmão que se deve apoiar e amar”, já que, a partir “da fé em Deus, que criou o universo, as criaturas e todos os seres humanos – iguais pela Sua Misericórdia –, o crente é chamado a expressar esta fraternidade humana, salvaguardando a criação e todo o universo e apoiando todas as pessoas, especialmente as mais necessitadas e pobres”.

A residência do Grande Aiatolá Sayyid Ali Al-Husayni Al-Sistani situa-se dentro do Santuário do Imame ‘Ali ou Mesquita do Imām ʿAlī, considerada pelos xiitas o terceiro lugar sagrado do Islão, depois da Mesquita Sagrada de Meca e a Mesquita do Profeta de Medina.

A 1.ª estrutura de mesquita, edificada no túmulo de ʿAlī, primo e genro de Maomé e primeiro homem a converter-se ao islamismo, é caraterizada por uma cúpula verde, que remonta ao ano 786 (Os xiitas creem que no seu interior foram sepultados Adão, Eva e Noé). A mesquita foi destruída e reconstruída várias vezes ao longo dos tempos; a última reconstrução, iniciada em 1623, foi concluída em 1632; a cúpula foi coberta em 1742 por Nader Shah com 7777 placas de tijolos pintados a ouro por Nader Shah; depois, foram realizadas muitas mais intervenções e embelezamentos; e a cor externa predominante é o dourado brilhante.

Há dois minaretes de 38 metros de altura nas laterais da entrada, com três portais monumentais; mosaicos em turquesa cobrem as paredes laterais e posterior; no interior, o mausoléu de ʿAlī é incrustado com mosaicos e circundado por um pátio. Em 1991, a insurreição subsequente à Guerra do Golfo danificou a mesquita pela intervenção da Guarda Republicana iraquiana de Saddam Hussein, que matou os membros da oposição xiita ao regime ali refugiados e o local esteve fechado alguns anos. A mesquita foi restaurada pelo líder espiritual dos ismaelitas, Dawudi Bohra, o 52.º dāʿī muṭlaq, Syedna Mohammad Syedna Mohammad Burhanuddin.

O Grande Aiatolá Sayyid Ali Al-Husayni Al-Sistani nasceu a 4 de agosto de 1930, em Mashhad, no Irão; é o líder da comunidade xiita iraquiana e diretor da hawza (seminário religioso xiita Twelver) de Najaf; filho de importante família religiosa estudou o Alcorão desde pequeno; aos 20 anos, deixou o Irão para continuar a formação no Iraque, tornando-se discípulo do Grande Aiatolá Abu al-Qasim al-Khoei em Al-Najaf e acabando por conquistar o respeito dos sunitas e curdos. A sua interpretação da revelação islâmica silenciosa, que prega a abstenção das autoridades religiosas das atividades políticas diretas, faz dele um interlocutor reconhecido por diversas correntes políticas e religiosas. Assim, em 2004, apoiou eleições livres no Iraque, dando importante contributo para o planeamento do primeiro governo democrático no país; em 2014, convidou os iraquianos a unirem-se na luta contra o autoproclamado Estado islâmico; e, em novembro de 2019, quando a população saiu às ruas descontente com o alto custo de vida e a instabilidade política nacional, Al-Sistani convidou manifestantes e polícias à calma e não recorrerem à violência, pediu a renúncia do Governo e a reforma eleitoral. O Primeiro-Ministro Adel Abdul Mahdi renunciou e, em dezembro, o Parlamento aprovou a reforma eleitoral.

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Shahrazad Houshmand, iraniana, a primeira mulher muçulmana a licenciar-se em Teologia Fundamental Cristã e membro do Conselho de Mulheres do Pontifício Conselho para a Cultura, descreve a figura do Aiatolá Al-Sistani, a mais alta autoridade xiita iraquiana, como um homem de diálogo inter-religioso e fala da expectativa em Najaf, a terceira cidade sagrada para os muçulmanos xiitas, sobre o encontro entre Francisco e o Aiatolá.

O líder dos xiitas iraquianos, que são mais de 60% da população, é figura influente para o xiismo em todo o mundo e em todo o país, como foi referido. No estatuto de “o maior ponto de referência religioso, teológico e jurídico para os muçulmanos no Iraque e não só”, cobre essa função para os xiitas do Paquistão, Índia, Golfo Pérsico, Europa e América.

O encontro entre ele e o Papa, além de novidade absoluta, é importante porque os dois guias espirituais têm pontos de vista comuns, já que o Aiatolá Al-Sistani nutre grande respeito pelos fiéis de outras religiões, tal como o Bispo de Roma. Nesta convergência espiritual e religiosa, têm no coração toda a humanidade e querem refletir sobre a situação. Francisco recorda os cristãos assassinados e, encontrando-se com Al-Sistani, lança “um grito ainda mais alto” para fazer com que “todos os homens de boa vontade, incluindo muçulmanos e cristãos, reflitam na dor de toda a humanidade”. Ambos, em “encontro fraterno, amigável e de grande empatia espiritual”, pedem a todos os homens de boa vontade que pensem na “dor do ser humano, enquanto ser digno de ser respeitado e amado”.

Em Abu Dhabi, “nasceu um grande acordo sobre o sentido profundo religioso e sobre o ato religioso concreto”. A frase que abre o documento sintetiza o ato religioso: “o crente e a sua fé devem levar a amar e a apoiar o próximo, mas é um amor que se torna também um apoio, sobretudo pelos mais necessitados”. E Houshmand pensa que este encontro vai na mesma onda.

Sobre as posições conciliatórias e apelos de Al-Sistani à reconstrução do Iraque, Houshmand define o líder xiita como “rabbani”, ou seja, “homem religioso sábio”, pois, além de ter feito profundo e amplo caminho na teologia, história do Alcorão, tradição e Jurisprudência islâmica e direito, constitui-se como “figura espiritual que reúne e unifica o povo iraquiano”. Enquanto referencial de segurança nacional, convida, através de todos meios disponíveis, “todos a serem irmãos” “e recomenda aos xiitas que não pensem apenas no bem dos xiitas, mas também no bem dos sunitas” e que “os xiitas e sunitas não pensem apenas no bem dos muçulmanos, mas no bem dos cristãos e assim por diante”. E, porque “se declara servo dos xiitas, dos sunitas, dos curdos e dos cristãos”, ou seja, de todo o povo, é “um ícone de paz e de unificação”.

Considera a teóloga que este passo é muito importante, visto que, além de 20% dos muçulmanos no mundo serem xiitas, este ato “franciscano” é forte convite e apelo ao diálogo inter-religioso. Com efeito, o Papa, que tem mantido encontros importantes com os cristãos protestantes, “é um homem que ama a paz” e a traz para “entre as religiões e para dentro das próprias leituras religiosas”. Ademais, o encontro com os xiitas terá “frutos muito perfumados e particulares”, pois “há tantas atividades espirituais muito profundas entre a leitura xiita e a leitura católica”, pelo que o encontro entre os dois líderes iluminará o nosso caminho. Por outro lado, diz que os xiitas iraquianos e iranianos “seguem a mesma escola teológica e acreditam em doze Imames” e que os xiitas iraquianos “aguardam o retorno do último Imame”. E acentua que as diferenças entre sunitas e xiitas “não são tão profundas”, pois a verdadeira diferença está na sucessão ao Profeta Maomé. Para os sunitas, a sucessão dava-se por escolha democrática livre, enquanto, para os xiitas, a sucessão não pode ocorrer por votação, mas por nomeação direta do céu ou pela própria figura do Profeta Maomé.  

Explana que, após a revolução de 1979, ulemás e aiatolás xiitas, especialmente com Khomeini, desenvolveram uma nova tese no género de unidade entre a política e a religião: “a liderança política e social deve estar sob o olhar direto do mundo religioso” – teoria que não chegou ao Iraque. Não obstante, embora não tenha poder político, o poder espiritual de Aiatolá Al-Sistani espiritual “também influencia fortemente a ideia política e, sobretudo, a unidade nacional”.

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Também Martino Diez, professor associado de Língua e Literatura árabe da Universidade Católica de Milão e diretor científico da Oasis International Foundation, enquadra a 33.ª Viagem Apostólica do Papa Francisco na rota do desenvolvimento do diálogo entre cristãos e muçulmanos, um passo que completa o de Abu Dhabi, mas permanecendo “a incógnita quanto à instabilidade política do país”.

Diz que Francisco importou para a sua estratégia espiritual a estratégia bélica napoleónica, concentrando a artilharia num ponto nevrálgico da formação adversária. Assim, escolheu ir a um dos lugares onde a relação entre cristãos e muçulmanos correu da pior forma, baseado na ideia de que esta trágica experiência possa ter deixado uma marca no coração das pessoas.

De certo modo, completa-se o passo dado em Abu Dhabi. No Iraque, a maioria da população é xiita e, como comunidade religiosa organizada de forma muito hierárquica, conta com esta figura respeitada, o Aiatolá Al-Sistani. Já a vertente sunita, sobretudo após o Califado do Isis, não se orgulha de figuras com o mesmo peso. Porém, é possível traçar um paralelo e encontrar um denominador comum entre Al-Sistani e o Xeique de al-Azhar: apesar de diferentes, ambos têm em comum a cautela em relação ao Islão político. No entanto, Al-Sistani sempre se manteve distante da doutrina fundamental do Islão político xiita e nunca reivindicou um papel político ativo. Por isso, é mais fácil encontrar com ele um terreno de encontro e de diálogo.

E, quanto às repercussões positivas do compromisso do Papa com a fraternidade e o diálogo com o islamismo xiita nas condições de vida da minoria cristã, Diez julga essencial esse compromisso. Com efeito, esta viagem repõe o Iraque no centro das relações internacionais e políticas após anos muito difíceis. Talvez por isso, se justifique o ineditismo do peso dado na comunicação social iraquiana à visita dum líder religioso duma comunidade muito pequena do ponto de vista numérico. Assim, todo o discurso de paz e diálogo é bem-vindo e útil. Porém, é urgente cuidar rapidamente da estabilidade política e do desenvolvimento económico do país, pois, caso contrário, todos os iraquianos que puderem, irão embora.  

Na verdade, se não fosse a covid, os manifestantes estariam na Praça Tahrir, em Bagdad, a protestar contra a falta de perspetivas políticas, como sucedeu no final de 2019, antes do início da pandemia. De facto, no mundo árabe, há muitos países onde os protestos de rua cessaram por causa da covid. Tê-los-emos quando a pandemia acabar?

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Enfim, é preciso acolher o penitente e peregrino da paz, mas sobretudo conseguir que as suas palavras e gestos tenham efeitos práticos que atinjam todos e cada um.

2021.03.07 – Louro de Carvalho

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