quinta-feira, 25 de março de 2021

O uso eficaz das novas tecnologias está longe da generalização

 

Hoje confia-se muito nas novas tecnologias (TIC) como sendo norma de utilização generalizada. É a videoconsulta, a telemedicina, a videoconferência, o teletrabalho, o tele-ensino (com aulas síncronas e assíncronas), a assinatura digital, a contratação à distância, a edição eletrónica (de livros, revistas e jornais), o quadro interativo, a telecompra, a gestão de contas bancárias, o pagamento por multibanco, a transferência bancária, o débito direto, a declaração junto do fisco, com destaque para a declaração de IRS, a diversidade de arquivos e comunicação de dados, o voto eletrónico, o e-mail, o SMS, a diversidade de plataformas eletrónicas e comunicacionais…

Não obstante, os diversos responsáveis políticos e os serviços técnicos deviam estar atentos às vulnerabilidades que os sistemas apresentam, nomeadamente os riscos de invasão e subversão, interferências, intermitências e limitações que alguns sistemas informáticos impõem, e à dificuldade de utilização por grandes franjas populacionais. Muitas pessoas com limitações de saúde e etárias lidam com dificuldade com as novas TIC; e a utilização ágil das mesmas nem sempre é fácil para profissionais já com uma alta carga biográfica e de serviço. E, mesmo crianças e adolescentes, que parecem muito hábeis na matéria, são-no em relação ao que de imediato os motiva. A concentração junto do pequeno ecrã é, por vezes, um grande busílis.

Os casos não são raros. Muitas agências de contribuinte e cidadãos bem atentos ganham dinheiro no preenchimento de declarações de IRS, às vezes bem simples.

Na campanha de vacinação contra a covid-19, sabe-se que, a 26 de fevereiro, tinham sido enviadas 30.500 mensagens escritas por SMS e obtidas 16.799 respostas (55,08%). A percentagem é razoável se esquecermos que muitas associações e autarquias mediaram os contactos entre os utentes e os serviços de saúde, já que se tratava de pessoas ou com mais de 80 anos ou maiores de 50 anos com pelo menos uma das quatro doenças classificadas de risco. E não se contam neste universo as problemáticas estruturas residenciais para idosos.

Acresce o facto de muitos dos contactos não estarem atualizados como o de outros estarem associados, não à pessoa do utente, mas à de familiar ou de vizinho. Ademais, acontece que muitos nunca se inscreveram nos serviços de saúde. 

A uma semana da data inicialmente prevista para o fim da 1.ª fase da vacinação (31 de março), apenas 30% da população que integra este grupo tem a vacinação completa e 61% recebeu a 1.ª dose. O argumento das autoridades de saúde é o das falhas na entrega das vacinas. Porém, há outros problemas que tornam o processo mais moroso. O sistema de convocatória por SMS, que impõe prazos para agendamento e que não é facilmente aceite pelos mais idosos, é um dos maiores constrangimentos. A seleção dos utentes por critérios clínicos, que leva tempo e cuja obrigatoriedade de sigilo determina que só possa ser feita por profissionais de saúde, é outra dificuldade. Tanto assim é que “há centros de saúde que chegam a ficar só com um dia ou dois na semana para vacinar utentes”, como explicou ao DN o presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar (APMGF). E a tarefa complicar-se-á mais quando se chegar à fase da inoculação em massa e com a abertura dos 150 postos de vacinação previstos. 

No grupo dos maiores de 80 anos, só 205 339 têm a vacinação completa e 415 314 receberam apenas a 1.ª dose. Nos restantes grupos etários, por exemplo dos 65 aos 79 anos, há apenas 3% com a vacinação completa (41 529); e 6% levaram uma só dose (97 230).

 

A convocatória por SMS só permite fazer agendamentos com 4 dias de intervalo. É uma questão incontornável imposta pelo sistema informático usado (SIM), que não está a ser bem aceite pelos mais idosos, que não respondem sequer ao SMS. Assim, a esmagadora maioria das convocatórias está a ser feita por telefone, o que leva muito mais tempo. Uma realidade que não é só do país interior e rural, mas que afeta muitos concelhos das áreas metropolitanas, sobretudo no que toca à convocatória por SMS. Os idosos não respondem. Talvez na próxima fase, com utentes mais jovens, seja diferente, mas com esta faixa etária a realidade é igual em todo o país.

Há ainda mais empecilhos logísticos, como unidades de saúde que não podem usar o sistema de convocatória por SMS porque a plataforma de que dispõem não integra esta tarefa. Assim, na região Norte, muitos agrupamentos usam o sistema informático SONHO, que nem sequer tem a função de sala de espera. Portanto, desde o início que estão impedidos de fazer convocatórias por SMS e têm feito tudo por telefone.

Enfim, o sistema de convocatória para vacinação por SMS não está a funcionar para idosos, até porque a seleção dos utentes por critérios clínicos dificulta a tarefa de seleção e muitos utentes se queixam de que ainda não foram contactados. Os critérios clínicos exigem que o utente esteja registado como diabético ou como doente cardíaco, por exemplo, e muitos não estão, ou porque recorrem a médicos privados ou porque não vão ao médico. E todas estas informações têm de ser verificadas. Só com o critério da idade, estas questões não se colocariam. Aliás, sem a obrigação de sigilo, a tarefa poderia ser feita por militares ou funcionários municipais, mas não se lhes pode passar para a mão uma listagem de diabéticos e pedir-lhes que os convoquem.

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Por mais aspetos positivos que se atribuam à nova telescola e ao ensino online a que obrigou a pandemia, há que dizer que tal não passou dum remendo a agravar as desigualdades e a pôr a nu as debilidades do sistema. E, se foi razoável para alunos do ensino secundário, foi terrível para a formação profissional e para crianças do 1.º ciclo do ensino básico. Muitos não advertem que há usualmente uma discronia entre o momento do som e o da imagem ou que o professor tem dificuldade em dar tempo para exercícios e que muitos pais não têm capacidade nem paciência nem tempo para apoiar a aula e que outros interferem indevidamente.

E, se galgarmos as fronteiras dos países desenvolvidos, abundam as crianças vulneráveis em “risco extremo” de não voltarem à escola. Por isso, há que atender aos dados do relatório da ONG Save The Children sob o título Save Our Education”, que preconiza que se mantenha viva a escola, apesar da covid-19, o que implica arranjar alternativas, proteger os alunos da fome e do trabalho infantil e apoiar as professoras e professores como modelos de liderança.  

A predita ONG alerta que, em países como Níger, Mali, Chade, Libéria, Guiné, Mauritânia, Iémen, Nigéria, Senegal, Costa do Marfim, Paquistão e Afeganistão, o encerramento de escolas, em resposta à covid-19, põe crianças e jovens em idade escola em “risco extremo”: e “quanto mais tempo as escolas ficarem fechadas, menor será a probabilidade de as crianças mais vulneráveis voltarem à escola”. Com efeito, sem aulas presenciais aumenta o risco para as crianças mais marginalizadas, oriundas de famílias desfavorecidas, com deficiências, deslocadas internamente e do género feminino. É a falta de tecnologias e de acesso à Internet, expressa no “fosso digital’. Quatro em cada 5 países em que as escolas fecharam implementaram o ensino à distância a nível nacional. Desses, 60% dependiam apenas de plataformas online. E tal dependência originou “uma exclusão digital impressionante”. Entre os alunos do ensino básico e secundário que só puderam aprender desta forma, contam-se 465 milhões. E quase 47% do total não tem acesso à Internet em casa. São várias as disparidades geográficas: 80% dos alunos na África subsariana não têm acesso à Internet em comparação com menos de 15% na Europa Ocidental. Nos países de baixo e médio rendimento, o acesso à Internet móvel é 23% menor para mulheres e raparigas e é ainda menos em contextos frágeis.

No seu relatório, a ONG mostra como “manter vivas as aprendizagens” nestes contextos significa arranjar alternativas às TIC, incluindo fazer chegar materiais educativos em papel. E destaca o exemplo da biblioteca de camelos que desde 2010 funciona na região somali da Etiópia. São 21 camelos que levam até 200 livros de histórias para mais de 22.000 crianças em 33 aldeias, o que lhes permite aprender enquanto as escolas estão fechadas.

Com cerca de 70% da população com menos de 25 anos, Burquina Faso enfrenta desafios na educação, emprego, segurança alimentar e recursos naturais limitados. A 16 de março de 2020, o fecho de escolas afetou mais de 4 milhões de alunos. Um mês depois, o Ministério da Educação lançou uma plataforma online para apoiar oportunidades de ensino à distância para crianças e introduziu um novo canal de rádio exclusivamente para fins de aprendizagem remota.

Contudo, a ONG lembra que o ensino à distância nem sempre é projetado para as crianças com deficiência. Assim, meios interativos de ensino pela rádio excluem as crianças com deficiências auditivas. Por isso, como alerta a Save The Children num relatório em que retrata as fragilidades em matéria de educação nos países mais vulneráveis, é necessária a combinação de múltiplas plataformas e modalidades de distribuição para garantir alcançar as crianças mais afetadas pelo fechamento de escolas.

Reconhecendo que violência, abuso e negligência são ameaças que estão a aumentar para as crianças que estão em confinamento, a ONG considera:

Para muitos meninos e meninas vulneráveis, a escola oferece um refúgio contra a violência e outras ameaças, bem como o acesso a serviços, incluindo assistência social, saúde mental e apoio psicossocial”.

No Malawi, no âmbito do projeto “Let Girls Learn, a REAL Fathers está no terreno a motivar os pais a apoiarem mais a educação das filhas e orientar outros pais a fazer igual.

Um outro problema decorrente da ausência de aulas presenciais tem a ver com as refeições e lanches fornecidos na escola. Trata-se duma “tábua de salvação para as crianças mais vulneráveis”, como precisam Hollie Warren e Emma Wagner, autoras do relatório. Na verdade, segundo o Programa Mundial de Alimentos (PMA), 352 milhões de crianças no mundo (47% delas meninas) perderam as refeições escolares por via do fecho de escolas. Em 134 países não há dados sobre a alternativa à refeição escolar; e 50 países oferecem refeições para levar para casa.

Nos riscos que ameaçam o regresso à escola, conta-se o do trabalho infantil, pois as famílias mais pobres com adultos desempregados sofrerão uma diminuição nos rendimentos por via das restrições da covid-19, o que aumenta o risco de as crianças serem forçadas ao trabalho para contribuir para o orçamento familiar, ficando impedidas de prosseguir estudos durante a crise.

O relatório da Save The Children recorda o que aconteceu na Serra Leoa, após o surto de Ébola, que encerrou as escolas. Os meninos trabalharam nas minas e em pequenos comércios de pequenos valores e as meninas estiveram envolvidas na coleta de lenha para venda. Quando as escolas reabriram, essas crianças raramente eram incentivadas pelos pais a voltar à escola.

Porém, uma hora diária de aula para raparigas adolescentes, lecionada em locais seguros nas aldeias e para um total de 4.700 alunas, fez com que as taxas de matrícula caíssem apenas 8% nas áreas onde as aulas ocorreram, em comparação com 16% nas aldeias que não receberam tal intervenção. Por outro lado, o aumento da pressão sobre os orçamentos familiares, aliado ao encerramento de escolas, pode levar os pais a decidir casar as filhas. Assim, na África Ocidental e Central, onde 42% das mulheres se casam antes dos 18 anos, 70% das meninas inscrevem-se no ensino primário, mas só 36% concluem o ensino básico.

Mesmo em famílias pobres e com alfabetização limitada, é possível aumentar, como garante a ONG, o sucesso dos alunos dando dicas aos pais, trabalho de capacitação parental que se faz no Vietname através da plataforma de mensagens online Zalo. Os pais recebem mensagens (de voz para quem não sabe ler e de texto para os outros) com propostas de atividades para fazer com os filhos.

E a ONG, lembrando que também os professores precisam de apoio, aduz que “não estão imunes ao impacto da covid-19 e ao encerramento das escolas”. E adverte que “a crise não deve servir de pretexto para marginalizar os direitos laborais”. Por isso, recomenda apoio extra aos professores que têm filhos afetados pelo encerramento de escolas, sobretudo no caso de mulheres, “que são mais propensas a assumir responsabilidades de cuidar”, e observa:

É fundamental manter as professoras como modelos para os alunos e exemplos de mulheres em papéis de liderança para as comunidades e de como a educação pode empoderar as meninas”.

Verifica a Save The Children que, em maio de 2020, ainda não tinham data marcada para reabrir as escolas 100 países, ao passo que 65 tinham planos para reabertura parcial ou total, enquanto 32 encerravam o ano letivo em regime de ensino à distância.  

Ora, é preciso ter em linha de conta que a motivação para voltar às aulas presenciais pode ser muito menor em crianças e jovens vulneráveis ou com dificuldades.

Por outro lado, é de referir que tornar as escolas lugares seguros pode implicar variadas medidas. Assim, por exemplo, no Iémen, as escolas foram reaproveitadas como locais de quarentena e centros de isolamento em todo o país. Por isso, antes de reabrirem, devem passar por adequada desinfeção. Todavia, muitas escolas nem têm instalações sanitárias suficientes, como alertam as autoras do estudo. Em 2016, segundo dados da UNICEF, apenas 53% das escolas ao nível mundial tinham serviços básicos de higiene, definidos como instalações para lavar as mãos com água e sabão.

Já nos países europeus, o cenário é bem diferente. Na Dinamarca, onde os estabelecimentos da educação pré-escolar e as escolas do 1.º ciclo abriram em abril de 2020, o regresso “em segurança” foi conseguido através do distanciamento físico. E foram criadas salas extra, usando tendas, para dividir as crianças em grupos menores, o tempo de aulas foi encurtado, para permitir dois turnos por dia. Nas escolas primárias europeias, um professor tem em média 13 alunos. Mas, lembra a ONG, nos países de baixo rendimento, cada professor é responsável por 40 crianças e, em alguns contextos de refugiados, as turmas podem chegar a 120 crianças.

Por fim, tonar as escolas lugares seguros será a primeira medida a tomar pelos Governos, como prioriza a Save The Children, que avisa que a segurança implica coisas tão diferentes, como dotar as escolas de instalações sanitárias nos países de baixo rendimento ou colocar à disposição das crianças, professores e funcionários água e sabão ou gel alcoólico e equipamentos de proteção pessoal. Mas, para garantir que as crianças vulneráveis continuem a aprender vai ser preciso fazer muito mais.

2021.03.25 – Louro de Carvalho

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