Hoje
confia-se muito nas novas tecnologias (TIC) como sendo norma de utilização generalizada. É a
videoconsulta, a telemedicina, a videoconferência, o teletrabalho, o tele-ensino
(com aulas síncronas e assíncronas), a
assinatura digital, a contratação à distância, a edição eletrónica (de livros, revistas e jornais), o
quadro interativo, a telecompra, a gestão de contas bancárias, o pagamento por
multibanco, a transferência bancária, o débito direto, a declaração junto do fisco,
com destaque para a declaração de IRS, a diversidade de arquivos e comunicação
de dados, o voto eletrónico, o e-mail, o SMS, a diversidade de plataformas
eletrónicas e comunicacionais…
Não obstante,
os diversos responsáveis políticos e os serviços técnicos deviam estar atentos
às vulnerabilidades que os sistemas apresentam, nomeadamente os riscos de
invasão e subversão, interferências, intermitências e limitações que alguns
sistemas informáticos impõem, e à dificuldade de utilização por grandes franjas
populacionais. Muitas pessoas com limitações de saúde e etárias lidam com
dificuldade com as novas TIC; e a utilização ágil das mesmas nem sempre é fácil
para profissionais já com uma alta carga biográfica e de serviço. E, mesmo
crianças e adolescentes, que parecem muito hábeis na matéria, são-no em relação
ao que de imediato os motiva. A concentração junto do pequeno ecrã é, por
vezes, um grande busílis.
Os
casos não são raros. Muitas agências de contribuinte e cidadãos bem atentos
ganham dinheiro no preenchimento de declarações de IRS, às vezes bem simples.
Na
campanha de vacinação contra a covid-19, sabe-se que, a 26 de fevereiro, tinham sido
enviadas 30.500 mensagens escritas por SMS e obtidas 16.799 respostas (55,08%). A percentagem é razoável se esquecermos que
muitas associações e autarquias mediaram os contactos entre os utentes e os
serviços de saúde, já que se tratava de pessoas ou com mais de 80 anos ou
maiores de 50 anos com pelo menos uma das quatro doenças classificadas de
risco. E não se contam neste universo as problemáticas estruturas residenciais
para idosos.
Acresce o facto
de muitos dos contactos não estarem atualizados como o de outros estarem
associados, não à pessoa do utente, mas à de familiar ou de vizinho. Ademais,
acontece que muitos nunca se inscreveram nos serviços de saúde.
A uma semana
da data inicialmente prevista para o fim da 1.ª fase da vacinação (31 de março), apenas 30% da população que integra este grupo tem a
vacinação completa e 61% recebeu a 1.ª dose. O argumento das autoridades de
saúde é o das falhas na entrega das vacinas. Porém, há outros problemas que
tornam o processo mais moroso. O sistema de convocatória por SMS, que impõe
prazos para agendamento e que não é facilmente aceite pelos mais idosos, é um
dos maiores constrangimentos. A seleção dos utentes por critérios clínicos, que
leva tempo e cuja obrigatoriedade de sigilo determina que só possa ser feita
por profissionais de saúde, é outra dificuldade. Tanto assim é que “há
centros de saúde que chegam a ficar só com um dia ou dois na semana para
vacinar utentes”, como explicou ao DN
o presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar (APMGF). E
a tarefa complicar-se-á mais quando se chegar à fase da
inoculação em massa e com a abertura dos 150 postos de vacinação
previstos.
No grupo
dos maiores de 80 anos, só 205 339 têm a vacinação completa e 415 314 receberam
apenas a 1.ª dose. Nos restantes grupos etários, por exemplo dos 65 aos 79
anos, há apenas 3% com a vacinação completa (41
529); e 6% levaram uma só dose (97
230).
A convocatória por SMS só permite fazer agendamentos com 4
dias de intervalo. É uma questão incontornável imposta pelo sistema informático
usado (SIM), que não está a ser bem aceite pelos mais idosos,
que não respondem sequer ao SMS. Assim, a esmagadora maioria das convocatórias
está a ser feita por telefone, o que leva muito mais tempo. Uma realidade que
não é só do país interior e rural, mas que afeta muitos concelhos das áreas
metropolitanas, sobretudo no que toca à convocatória por SMS. Os idosos não
respondem. Talvez na próxima fase, com utentes mais jovens, seja diferente, mas
com esta faixa etária a realidade é igual em todo o país.
Há ainda
mais empecilhos logísticos, como unidades de saúde que não podem usar o sistema
de convocatória por SMS porque a plataforma de que dispõem não integra esta
tarefa. Assim, na região Norte, muitos agrupamentos usam o sistema informático
SONHO, que nem sequer tem a função de sala de espera. Portanto, desde o início
que estão impedidos de fazer convocatórias por SMS e têm feito tudo por telefone.
Enfim, o sistema de convocatória para vacinação
por SMS não está a funcionar para idosos, até porque a seleção dos utentes por critérios clínicos dificulta a tarefa de seleção
e muitos utentes se queixam de que ainda não foram contactados. Os critérios
clínicos exigem que o utente esteja registado como diabético ou como doente
cardíaco, por exemplo, e muitos não estão, ou porque recorrem a médicos
privados ou porque não vão ao médico. E todas estas informações têm de ser
verificadas. Só com o critério da idade, estas questões não se colocariam.
Aliás, sem a obrigação de sigilo, a tarefa poderia ser feita por militares ou
funcionários municipais, mas não se lhes pode passar para a mão uma listagem de
diabéticos e pedir-lhes que os convoquem.
***
Por
mais aspetos positivos que se atribuam à nova telescola e ao ensino online a
que obrigou a pandemia, há que dizer que tal não passou dum remendo a agravar
as desigualdades e a pôr a nu as debilidades do sistema. E, se foi razoável
para alunos do ensino secundário, foi terrível para a formação profissional e
para crianças do 1.º ciclo do ensino básico. Muitos não advertem que há
usualmente uma discronia entre o momento do som e o da imagem ou que o
professor tem dificuldade em dar tempo para exercícios e que muitos pais não
têm capacidade nem paciência nem tempo para apoiar a aula e que outros
interferem indevidamente.
E,
se galgarmos as fronteiras dos países desenvolvidos, abundam as crianças
vulneráveis em “risco extremo” de não voltarem à escola. Por isso, há que
atender aos dados do relatório
da ONG Save The Children sob
o título “Save Our Education”,
que preconiza que se mantenha viva a escola, apesar da covid-19, o que implica arranjar
alternativas, proteger os alunos da fome e do trabalho infantil e apoiar as
professoras e professores como modelos de liderança.
A predita ONG alerta que, em países como Níger, Mali,
Chade, Libéria, Guiné, Mauritânia, Iémen, Nigéria, Senegal, Costa do Marfim,
Paquistão e Afeganistão, o encerramento de escolas, em resposta à covid-19, põe
crianças e jovens em idade escola em “risco extremo”: e “quanto mais tempo as escolas ficarem fechadas, menor será a
probabilidade de as crianças mais vulneráveis voltarem à escola”. Com
efeito, sem aulas presenciais aumenta o risco para as crianças mais
marginalizadas, oriundas de famílias desfavorecidas, com deficiências,
deslocadas internamente e do género feminino. É a falta de tecnologias e de acesso
à Internet, expressa no “fosso digital’. Quatro em cada 5 países em que as
escolas fecharam implementaram o ensino à distância a nível nacional. Desses,
60% dependiam apenas de plataformas online. E tal dependência originou “uma
exclusão digital impressionante”. Entre os alunos do ensino básico e secundário
que só puderam aprender desta forma, contam-se 465 milhões. E quase 47% do
total não tem acesso à Internet em casa. São várias as disparidades
geográficas: 80% dos alunos na África subsariana não têm acesso à Internet em
comparação com menos de 15% na Europa Ocidental. Nos países de baixo e médio
rendimento, o acesso à Internet móvel é 23% menor para mulheres e raparigas e é
ainda menos em contextos frágeis.
No seu relatório, a ONG mostra como “manter vivas as aprendizagens”
nestes contextos significa arranjar alternativas às TIC, incluindo fazer chegar
materiais educativos em papel. E destaca o exemplo da biblioteca de camelos que
desde 2010 funciona na região somali da Etiópia. São 21 camelos que levam até
200 livros de histórias para mais de 22.000 crianças em 33 aldeias, o que lhes permite
aprender enquanto as escolas estão fechadas.
Com cerca de 70% da população com menos de 25 anos,
Burquina Faso enfrenta desafios na educação, emprego, segurança alimentar e
recursos naturais limitados. A 16 de março de 2020, o fecho de escolas afetou
mais de 4 milhões de alunos. Um mês depois, o Ministério da Educação lançou uma
plataforma online para apoiar oportunidades de ensino à distância para crianças
e introduziu um novo canal de rádio exclusivamente para fins de aprendizagem
remota.
Contudo, a ONG lembra que o ensino à distância nem
sempre é projetado para as crianças com deficiência. Assim, meios interativos
de ensino pela rádio excluem as crianças com deficiências auditivas. Por isso, como
alerta a Save The Children num relatório em que retrata as
fragilidades em matéria de educação nos países mais vulneráveis, é necessária a
combinação de múltiplas plataformas e modalidades de distribuição para garantir
alcançar as crianças mais afetadas pelo fechamento de escolas.
Reconhecendo que violência, abuso e negligência são
ameaças que estão a aumentar para as crianças que estão em confinamento, a ONG
considera:
“Para muitos meninos e meninas vulneráveis,
a escola oferece um refúgio contra a violência e outras ameaças, bem como o acesso
a serviços, incluindo assistência social, saúde mental e apoio psicossocial”.
No Malawi, no âmbito do projeto “Let Girls Learn”,
a REAL Fathers está no terreno a
motivar os pais a apoiarem mais a educação das filhas e orientar outros pais a
fazer igual.
Um outro problema decorrente da ausência de aulas
presenciais tem a ver com as refeições e lanches fornecidos na escola. Trata-se
duma “tábua de salvação para as crianças mais vulneráveis”, como precisam
Hollie Warren e Emma Wagner, autoras do relatório. Na verdade, segundo o
Programa Mundial de Alimentos (PMA), 352
milhões de crianças no mundo (47% delas meninas) perderam as refeições escolares por via do fecho de escolas. Em 134 países
não há dados sobre a alternativa à refeição escolar; e 50 países oferecem
refeições para levar para casa.
Nos riscos que ameaçam o regresso à escola, conta-se o
do trabalho infantil, pois as famílias mais pobres com adultos desempregados
sofrerão uma diminuição nos rendimentos por via das restrições da covid-19, o
que aumenta o risco de as crianças serem forçadas ao trabalho para contribuir
para o orçamento familiar, ficando impedidas de prosseguir estudos durante a
crise.
O relatório da Save The Children recorda
o que aconteceu na Serra Leoa, após o surto de Ébola, que encerrou as
escolas. Os meninos trabalharam nas minas e em pequenos comércios de pequenos
valores e as meninas estiveram envolvidas na coleta de lenha para venda. Quando
as escolas reabriram, essas crianças raramente eram incentivadas pelos pais a
voltar à escola.
Porém, uma hora diária de aula para raparigas
adolescentes, lecionada em locais seguros nas aldeias e para um total de 4.700
alunas, fez com que as taxas de matrícula caíssem apenas 8% nas áreas onde as
aulas ocorreram, em comparação com 16% nas aldeias que não receberam tal
intervenção. Por outro lado, o aumento da pressão sobre os orçamentos
familiares, aliado ao encerramento de escolas, pode levar os pais a decidir
casar as filhas. Assim, na África Ocidental e Central, onde 42% das mulheres se
casam antes dos 18 anos, 70% das meninas inscrevem-se no ensino primário, mas
só 36% concluem o ensino básico.
Mesmo em famílias pobres e com alfabetização limitada,
é possível aumentar, como garante a ONG, o sucesso dos alunos dando dicas aos
pais, trabalho de capacitação parental que se faz no Vietname através da
plataforma de mensagens online Zalo. Os
pais recebem mensagens (de voz para quem não sabe ler e de texto para os outros) com propostas de atividades para fazer com os filhos.
E a ONG, lembrando que também os professores precisam
de apoio, aduz que “não estão imunes ao impacto da covid-19 e ao encerramento
das escolas”. E adverte que “a crise não deve servir de pretexto para marginalizar
os direitos laborais”. Por isso, recomenda apoio extra aos professores que têm
filhos afetados pelo encerramento de escolas, sobretudo no caso de mulheres,
“que são mais propensas a assumir responsabilidades de cuidar”, e observa:
“É fundamental manter as professoras como
modelos para os alunos e exemplos de mulheres em papéis de liderança para as
comunidades e de como a educação pode empoderar as meninas”.
Verifica a Save The Children que, em maio de 2020, ainda não
tinham data marcada para reabrir as escolas 100 países, ao passo que 65 tinham
planos para reabertura parcial ou total, enquanto 32 encerravam o ano letivo em
regime de ensino à distância.
Ora, é preciso ter em linha de conta que a motivação
para voltar às aulas presenciais pode ser muito menor em crianças e jovens
vulneráveis ou com dificuldades.
Por outro lado, é de referir que tornar as escolas
lugares seguros pode implicar variadas medidas. Assim, por exemplo, no Iémen,
as escolas foram reaproveitadas como locais de quarentena e centros de isolamento
em todo o país. Por isso, antes de reabrirem, devem passar por adequada desinfeção.
Todavia, muitas escolas nem têm instalações sanitárias suficientes, como
alertam as autoras do estudo. Em 2016, segundo dados da UNICEF, apenas 53% das
escolas ao nível mundial tinham serviços básicos de higiene, definidos como
instalações para lavar as mãos com água e sabão.
Já nos países europeus, o cenário é bem diferente. Na
Dinamarca, onde os estabelecimentos da educação pré-escolar e as escolas do 1.º
ciclo abriram em abril de 2020, o regresso “em segurança” foi conseguido
através do distanciamento físico. E foram criadas salas extra, usando tendas,
para dividir as crianças em grupos menores, o tempo de aulas foi encurtado,
para permitir dois turnos por dia. Nas escolas primárias europeias, um
professor tem em média 13 alunos. Mas, lembra a ONG, nos países de baixo
rendimento, cada professor é responsável por 40 crianças e, em alguns contextos
de refugiados, as turmas podem chegar a 120 crianças.
Por fim, tonar as escolas lugares seguros será a
primeira medida a tomar pelos Governos, como prioriza a Save The Children, que avisa que a segurança implica
coisas tão diferentes, como dotar as escolas de instalações sanitárias nos
países de baixo rendimento ou colocar à disposição das crianças, professores e
funcionários água e sabão ou gel alcoólico e equipamentos de proteção pessoal.
Mas, para garantir que as crianças vulneráveis continuem a aprender vai ser
preciso fazer muito mais.
2021.03.25 – Louro de Carvalho
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