quinta-feira, 31 de agosto de 2023

Concurso para escola de ciberdefesa exige experiência em ciberguerra

 

 

O concurso público internacional em curso, no valor de 10,5 milhões de euros, para a criação da escola de ciberdefesa no Estado-Maior-General das Forças Armadas (EMGFA) exige aos candidatos experiência comprovada em operações de ciberguerra e a revelação de duas entidades governamentais a quem prestaram serviços, sendo este o principal motivo a justificar que só duas empresas – nenhuma delas conhecida no setor por possuir tal qualificação – tenham apresentado propostas de candidatura a este projeto, a executar em sete anos.

O caderno de encargos a que acederam, pelo menos 11 empresas, que, por ser classificado com grau de “confidencial”, tiveram de o levantar no Gabinete Nacional de Segurança (GNS), estabelece como um dos requisitos, para serem candidatos a prestarem “Serviços de Formação e Consultoria em Ciberdefesa”, a demonstração de que foram consultores, nos últimos cinco anos, no “suporte, apoio e orientação para a condução de operações militares no ciberespaço a, pelo menos, duas entidades governamentais”. Além disso, impõe-se que tal demonstração contenha, no mínimo, informação das caraterísticas principais dos serviços prestados, das suas componentes, dos objetivos principais, da data do início e do tempo do projeto.

Foi, pois, com grande estupefação que as empresas, entre as quais alguns gigantes mundiais, leram o caderno de encargos e não se apresentaram a concurso. E, face a esta originalidade, só duas empresas apresentaram propostas e uma terceira concorreu fora do prazo.

Um perito em ciberdefesa, envolvido, inicialmente, na criação da escola – prioritária pelo Ministério da Defesa Nacional (MDN), está há quatro anos a ser preparada, mas, com a mudança do CEMGFA, tudo voltou à estaca zero – considera aberrante “exigir que as empresas revelem o que fizeram para os seus clientes”, o que é “uma quebra total do sigilo a que estão obrigadas”. E, se o objetivo era descredibilizar o concurso ou deixá-lo deserto, foi atingido. As desistentes ficaram apreensivas com a possibilidade de o governo ter permitido isto e perguntam se empresas portuguesas ou o EMGFFA divulgariam operações em que participem em contexto idêntico.

Instado a clarificar este requisito específico, o porta-voz do EMGFA escudou-se com a classificação do concurso (“concurso público limitado por prévia qualificação”). Assim, a existência deste requisito no procedimento concursal deve ser apenas do conhecimento das empresas envolvidas. E, sobre o facto de só haver propostas de duas firmas, sustenta que, por estar em curso a análise das candidaturas, que terminará com a elaboração do relatório preliminar da fase de qualificação, “não é possível responder, na plenitude e com assertividade”.

Entretanto, sabe-se que uma das empresas que apresentou proposta é uma das maiores operadoras nacionais de telecomunicações, em relação à qual se desconhece experiência em ciberguerra. A outra, uma corporação, apresenta-se no seu site como líder do mercado tecnológico, em Portugal, na área da cibersegurança e refere ter estado envolvida como patrocinadora, pelo menos, num exercício de ciberguerra organizado pelo Exército, em 2021, sendo chefe de Estado-Maior do Exército (CEME) o general José Nunes da Fonsecaagora chefe de Estado-Maior-General das Forças Armadas (CEMGFA).

Após a tomada de posse do novo cargo (a 1 de março), o CEMGFA decidiu abrir concurso público internacional, obrigando a voltar à estaca zero o trabalho para a construção desta capacidade que vinha sendo desenvolvido pelo seu antecessor Almirante Silva Ribeiro. Esta medida surpreendeu as quatro empresas que foram chamadas pela equipa do anterior CEMGFA e que aguardavam, desde fevereiro último, o convite para apresentarem propostas, depois de algumas terem passado os últimos três anos envolvidas no projeto. Tal envolvimento terá sido levado ao mínimo detalhe de confiança entre o EMGFA e as empresas (uma americana, duas israelitas e uma de Singapura, todas com credenciação para tratar informação classificada) ao ponto de terem sido preparados programas para os cursos. Nenhuma apresentou propostas, agora.

Interpelado sobre se o patrocínio ao Exército da corporação candidata não suscitará dúvidas de favorecimento ou conflito de interesses, se for a escolhida, o porta-voz do EMGFA assegurou que tais patrocínios não envolvem quantias monetárias, sendo consubstanciados, geralmente, pela disponibilização de prémios físicos aos participantes, no contexto do exercício, ou pela disponibilização de infraestruturas para apoio. E adiantou que o exercício anual do Exército conexo com a ciberdefesa tem a designação de Ciber Perseu, procurando-se, com ele, contribuir para a promoção do desenvolvimento das capacidades nacionais de ciberdefesa. O exercício tem contado com a participação das estruturas de Ciberdefesa do EMGFA, dos ramos das Forças Armadas, de delegações militares de países amigos e aliados, do Centro de Nacional de Cibersegurança e, por vezes, com o patrocínio de empresas da área.

A dita empresa (a corporação), segundo o portal dos contratos públicos, tem 849 contratos com o Estado, no valor de 57,3 milhões de euros. Com o EMGFA assinou oito, desde 2016, no valor de cerca de 400 mil euros, dois deles, de cerca de 170 mil, por concurso público, já depois da tomada de posse de Nunes da Fonseca, e um deles, no valor de 151 mil euros (o mais elevado de todos), para fazer, em 30 dias, um “licenciamento checkpoint”, que tinha custado, em 2022, pouco mais de 90 mil euros. Também o Estado-Maior do Exército (EME) fez 17 contratos com esta empresa. Destes, 13 foram no mandato de Nunes da Fonseca enquanto CEME (19 de outubro de 2018 a 29 de fevereiro de 2023). Ainda, a 29 de agosto, foi registado, no portal, um contrato entre esta entidade e o Exército, no valor de 15 mil euros – incluído o imposto sobre o valor acrescentado (IVA) –, para a expansão da rede de dados do ramo. E, a 18 de agosto, o Exército tinha registado outro contrato, de cerca de 10 mil euros, para a instalação do “Sistema Integrado de Controlo de Acessos e Videovigilância do Exército”. A empresa tem, ainda, diversos contratos com o MDN, com a Marinha e com a Força Aérea.

Além do requisito específico já referido, houve outros fatores que podem ter contribuído para afastar concorrentes, sobretudo estrangeiros, apesar de se tratar de concurso público internacional. Por exemplo, a exigência de certificado de qualidade de saúde e segurança no trabalho emitido pelo Instituto Português de Acreditação e a prova de capacidade financeira através de um banco português, garantindo ao candidato uma linha de crédito de 4,5 milhões de euros que o habilite a sacar, para efeitos contratuais, os referidos meios financeiros.

Estes quesitos tinham de ser conseguidos em cerca de seis semanas (o concurso foi aberto em 30 de junho e o prazo de entrega de propostas foi, primeiro, a 6 de agosto, em plena Jornada Mundial da Juventude e visita do Papa a Portugal, com o país a meio gás) e, depois, prorrogado para 22, tornando impossível o cumprimento. Por isso, não surpreende que das 11, nove tenham desistido.

Em despacho de agosto de 2022, a ministra da Defesa Nacional, Helena Carreiras, autorizou a despesa de 11,5 milhões de euros (+IVA) até 2030, para este plano, valor a que veio a acrescentar mais um milhão, para a construção/adaptação das infraestruturas onde será construída a escola de ciberdefesa, pois considera imperativoqualificação dos recursos humanos afetos à ciberdefesa nacional, “garantindo a capacidade de realizar todo o espetro de operações militares no, e através do, ciberespaço de interesse nacional, assegurando a sua defesa e a salvaguarda da soberania nacional”.

Poucas situações poderiam impulsionar mais a criação de uma capacidade de ciberdefesa que ser alvo de um ataque cibernético com repercussões internacionais. Mas, apesar dos sinais de alerta de há um ano, quando o MDN e o EMGFA foram alvo de graves ciberataques (pouco antes do despacho da ministra), o processo ensarilhou-se e não se prevê data para a sua concretização.

O gabinete da ministra, em relação às dúvidas sobre o caderno de encargos para a aquisição de serviços de consultoria, remete para o EMGFA todas as questões conexas com o concurso. Porém, salienta, que “o governo reforçou significativamente o investimento na capacidade de Ciberdefesa, tendo aumentado em 39%, num total de mais de 70 milhões de euros, as verbas para esse efeito na Lei de Programação Militar (LPM) recentemente publicada”. E, quanto ao treino, além da “formação de base, contratualizada com o Instituto Politécnico de Beja”, confirma que a “formação avançada”, a que se destina o concurso, visa “capacitar os recursos humanos com as perícias técnicas necessárias ao desenvolvimento sustentado e consolidado da capacidade para conduzir operações militares no ciberespaço”. Nada refere sobre os requisitos exigidos, nem sobre o facto de só duas empresas terem apresentado propostas, nem se pronuncia sobre o facto de uma delas ter patrocinado anteriormente o Exército.

Os atrasos são consideráveis e, em meu entender, condicionados às ambições de protagonismo quer do Exército, quer do MDN, a que se alia o EMGFA (como verifiquei em tempos), bem como às óticas das diversas personalidades que lideram o projeto. Não obstante, é de referir que a edificação da capacidade de Ciberdefesa vem sendo realizada através de várias medidas complementares, nomeadamente através da aprovação da Estratégia Nacional de Ciberdefesa (outubro de 2022), da criação da Cyber Academia and Innovation Hub (maio de 2023), da aquisição, da manutenção e da atualização de plataformas e equipamentos, da implementação de doutrina militar conjunta para as operações no ciberespaço, do treino, ou da ligação ao sistema científico e tecnológico nacional.

A formação é dos principais vetores e, nesse campo, está em curso desde 2022 formação de base, contratualizado com o Instituto Politécnico de Beja, abrangendo mais de meia centena de militares, entre os módulos realizados e os planeados para este ano. E a formação avançada é outra componente, visando capacitar os recursos humanos com as perícias técnicas necessárias ao desenvolvimento sustentado e consolidado da capacidade para conduzir operações militares no ciberespaço. Nesse sentido, a tutela autorizou a realização da despesa necessária à contratação de serviços de formação e consultoria especializados para 2022-2030.

E, além do previsto na LPM, a edificação da capacidade de Ciberdefesa nas Forças Armadas traduz-se, ainda, segundo o MDN, na implementação do Plano de Reforço do Comando de Operações no Ciberespaço e do Plano de Reforço dos Ramos; na edificação de capacidades do Centro de Ciberdefesa e dos Computer Incident Response Capability dos Ramos, com a aquisição, manutenção e atualização de plataformas e equipamentos; na harmonização dos sistemas de proteção periféricas das redes das Forças Armadas e da Defesa e a harmonização das soluções tecnológicas das redes da Defesa Nacional; no treino permanente das equipas, com participação em exercícios internacionais, garantindo a atualização e os esforços cooperativos necessários e incluindo a componente ciber em todos os exercícios das Forças Armadas; e na ligação ao sistema científico nacional, pela celebração de parcerias para estágios e para exercícios e investigação.

O processo de criação da escola de ciberdefesa, cujo local de funcionamento estava previsto para a Academia Militar, já com salas equipadas, sofreu vários atrasos. Ainda está em aberto a questão do local onde vai funcionar; e o novo concurso, com os requisitos de candidatura, de duvidosa eficácia, veio complicar ainda mais as coisas. Aliás corre-se o risco de nenhuma das candidaturas cumprir os requisitos estabelecidos nas peças do procedimento concursal, o que o tornará deserto, nos termos do Decreto-lei n.º 18/2008, de 29 de janeiro, na sua redação atual. E, apesar de o MDN classificar esta área como prioridade, as últimas decisões terão efeitos na instalação das capacidades de ciberdefesa do país, “já comprometidas pela fraca taxa de execução do orçamento para este setor, que foi de, apenas, 30%, em 2022.

2023.08.31 – Louro de Carvalho

Papa não exaltou lógica imperialista e expansionista russa

 

A 25 de agosto, o Papa Francisco falou, por videoconferência, aos 400 jovens reunidos na 10.ª Jornada da Juventude Russa, Basílica de Santa Catarina, na cidade russa de São Petersburgo. E algumas palavras levaram responsáveis políticos, religiosos e inúmeros meios de comunicação ucranianos a acusá-lo de fazer “propaganda imperialista” a favor da Rússia, pelo que a Sala de Imprensa da Santa Sé veio a terreiro esclarecer o seu verdadeiro sentido.

O Papa discursou em Espanhol, convidando os jovens a serem “semeadores de sementes de reconciliação, pequenas sementes que, neste inverno de guerra, não brotarão no solo congelado, por enquanto, mas florescerão numa futura primavera”. Depois, improvisou, em Italiano, à laia de despedida: “Nunca vos esqueçais da vossa herança. Vós sois herdeiros da grande Rússia, da grande Rússia dos santos, dos reis, da grande Rússia de Pedro, o Grande, de Catarina II, do grande império russo, culto, tanta cultura, tanta humanidade. Vós sois os herdeiros da grande mãe Rússia. Ide em frente. E obrigado, obrigado pelo vosso modo de serdes russos.”

Foram estas palavras – não divulgadas na versão oficial distribuída à comunicação social – que geraram controvérsia. “É através de tal propaganda imperialista, de “grampos espirituais” e da “necessidade” de resgatar “a grande mãe da Rússia” que o Kremlin justifica o assassinato de milhares de Ucranianos e mulheres ucranianas e a destruição de centenas de cidades e aldeias ucranianas. É muito lamentável que as ideias de grande Estado russas, que, de facto, são a causa da agressão crónica da Rússia, conscientemente ou sem saber, venham da boca do Papa, cuja missão, em nossa opinião, é justamente abrir os olhos da juventude russa para o curso desastroso da atual liderança russa”, escreveu Oleg Nikolenko, porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da Ucrânia, na sua página de Facebook.

No dia 28, foi publicada a Declaração de Sua Beatitude Sviatoslav Shevchuk, Chefe e Padre (Arcebispo Maior) da Igreja Greco-Católica Ucraniana, sobre algumas declarações do Santo Padre no encontro com a juventude católica da Rússia, a 25 de agosto:

“É com grande dor e preocupação que tomamos conhecimento das palavras atribuídas a Sua Santidade o Papa Francisco num encontro online com jovens católicos russos, no dia 25 de agosto de 2023, em São Petersburgo. Esperamos que estas palavras do Santo Padre tenham sido ditas espontaneamente, sem qualquer tentativa de avaliação histórica, muito menos de apoio às ambições imperialistas da Rússia. No entanto, partilhamos a grande dor que causaram, não só entre o episcopado, o clero, os monásticos e os fiéis da nossa Igreja, mas também entre outras denominações e organizações religiosas. Ao mesmo tempo, estamos conscientes da profunda deceção que causaram na sociedade. As palavras sobre ‘a grande Rússia de Pedro I, Catarina II, aquele grande e esclarecido império – um país de grande cultura e grande humanidade’ – são o pior exemplo do imperialismo e do nacionalismo russo extremo. Há o perigo de que estas palavras possam ser interpretadas como apoio ao próprio nacionalismo e imperialismo que causou a guerra na Ucrânia, hoje – uma guerra que traz morte e destruição ao nosso povo, todos os dias. Os exemplos dados pelo Santo Padre contradizem os seus ensinamentos sobre a paz, visto que sempre condenou qualquer forma de manifestação do imperialismo no Mundo moderno e alertou para os perigos do nacionalismo extremo, vincando que é a causa da “terceira guerra mundial em pedaços”. Como Igreja, queremos afirmar que, no contexto da agressão da Rússia contra a Ucrânia, tais declarações inspiram as ambições neocoloniais do país agressor, embora tal forma de “ser russo” deva ser categoricamente condenada. Para evitar qualquer manipulação das intenções, do contexto e das declarações atribuídas ao Santo Padre, aguardamos esclarecimento da situação por parte da Santa Sé. A Igreja Greco-Católica Ucraniana, juntamente com todos os cidadãos do nosso país, condena a ideologia do “mundo russo” e toda a forma criminosa de “ser russo”. Esperamos que o Santo Padre ouça a nossa voz.

Dentro de poucos dias, os bispos da nossa Igreja reunir-se-ão, em Roma, para o Sínodo anual da Igreja Greco-Católica Ucraniana. Teremos oportunidade de encontrar Sua Santidade e de lhe transmitir as dúvidas e as dores do povo ucraniano, confiando no seu cuidado paterno por ele.”

E a voz de Shevchuk foi ouvida. Na manhã do dia 29, o diretor da Sala de Imprensa da Santa Sé, Matteo Bruni, esclareceu: “Nas suas palavras de saudação dirigidas espontaneamente a alguns jovens católicos russos, há dias, como fica claro pelo contexto em que as pronunciou, o Papa pretendia encorajar os jovens a preservar e promover tudo o que há de positivo na grande herança cultural e espiritual russa e, certamente, não exaltar lógicas imperialistas e personalidades governamentais, citadas para indicar certos períodos históricos de referência.”

Também a Nunciatura em Kiev rejeitou as más interpretações, afirmando que o Papa “é um oponente convicto e crítico de qualquer forma de imperialismo ou colonialismo, em todos os povos e situações”.

Não deixam, no entanto, de ter sido “um erro” as declarações do Papa neste “momento delicado” da História, refere um editorial do site italiano “Il Sismografo”, embora Catarina II tenha protegido os jesuítas em terras controladas pela Rússia, depois de o Papa Clemente XIV ter suprimido a Companhia, em todo o Mundo, em 1773, e embora Francisco seja jesuíta.

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Todavia, é pena que se perca o essencial da mensagem papal àqueles jovens russos, de que se dá conta em traços largos.

Partindo do lema da Jornada Mundial da Juventude (JMJ), de Lisboa, há três semanas – “Maria levantou-se e partiu apressadamente” –, Francisco, alegre por compartilhar este momento de fé e de esperança com os jovens russos, propôs-lhes três ideias, para as trabalharem na reflexão que iriam fazer os grupos, cada qual a partir da sua própria experiência:

- “Chamados e em saída”. Deus chama-nos a caminhar, manda-nos sair e caminhar. Todos, e cada um, somos escolhidos chamados, desde o princípio das nossas vidas. Cada um é chamado pelo seu nome (não ao montão) e independentemente dos seus talentos, méritos, escuridões e feridas.  Chamou Isabel, que era estéril, e María, a Virgem. E estas duas mulheres converteram-se em testemunhas da força transformadora de Deus. É essa experiência do amor transbordante de Deus que não se pode deixar de compartilhar. Por isso, María levantou-se e foi apressadamente, pois, quando Deus chama, não podemos ficar sentados, porque o Mundo, o irmão, o que sofre, o que está ao lado e não conhece a esperança de Deus necessita de receber a alegria de Deus e precisa do nosso serviço de proximidade.

- “O amor de Deus é para todos e a Igreja é de todos.” O amor de Deus reconhece-se pela sua hospitalidade. Deus acolhe sempre, cria, cria espaço para que todos tenhamos lugar e sacrifica-se pelo outro, está atento às necessidades do outro. María permaneceu três meses com Isabel, ajudando-a. Estas duas mulheres estavam a criar espaço para as novas vidas – João Batista e Jesus –, mas também uma para a outra, comunicavam-se. A Igreja é uma Mãe de coração aberto, que sabe acolher e receber, sobretudo quem tem necessidade de maior cuidado. É a casa dos amados, dos chamados. “Quantas feridas, quanto desespero se podem curar onde uma pessoa se pode sentir recebida!” Por isso, o Papa sonha com uma Igreja onde ninguém está a mais. Quer que a Igreja não seja uma “alfândega” para selecionar a quem entra e quem não entra. A entrada é livre, é para todos. E cada um sentirá o convite de Jesus a segui-Lo. Para esta viagem está o ensino e os sacramentos. Quando o Senhor do banquete mandou chamar às encruzilhadas, disse: “Ide e trazei todos” (cf Mt 22,9). Não se pode esquecer esta palavra: “todos”. Portanto, a Igreja é para todos: jovens e velhos, sãos e enfermos, justos e pecadores. Quis Jesus dizer: “todos, todos, todos”.

- É vital que os jovens e os idosos se abram uns aos outros.” Os jovens, ao encontrarem-se com os idosos, têm a oportunidade de receber a riqueza das suas experiências e vivências. E os idosos, ao encontrarem-se com os jovens, encontram neles a promessa de um futuro de esperança. É, pois, importante que os jovens dialoguem com os idosos, com os avós. A experiência de vida dos avós vai mais além do que a dos pais. O ponto de encontro entre Maria e Isabel é o sonho. Ambas sonhavam. Também os jovens e os idosos sonham. O profeta Joel recorda-nos: “Os seus anciãos terão sonhos, os seus jovens terão visões” (cf Jl 2,28). Assim, os idosos sonham com tantas coisas: a democracia, a unidade das nações…; e os jovens profetizam, são chamados a ser artesãos do ambiente e da paz. Isabel, com a sabedoria dos anos, fortaleceu Maria, que era jovem e estava cheia de graça, guiada pelo Espírito.

Por fim, o Papa convidou os jovens a serem construtores de pontes entre as gerações, pois a aliança entre as gerações mantém viva a História e a cultura do povo. Deseja o Santo Padre que os jovens russos sintam a vocação para serem artesãos da paz no meio de tantos conflitos e polarizações; convida-os a serem sementes de reconciliação, sementes que, neste inverno de guerra, ainda não brotaram na terra gelada, mas que irão florescer numa primavera futura. Como disse em Lisboa, também em São Petersburgo Francisco pretende que os jovens tenham a valentia de substituir os medos pelos sonhos, por que não sejam “administradores de medos”, mas “empreendedores de sonhos”.

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Segundo o diretor da Sala de Imprensa da Santa Sé, Francisco “pretendia encorajar os jovens a preservar e promover o que há de positivo na grande herança cultural e espiritual russa”. E eu penso que, sem se meter nos escaninhos da História russa e, em especial, na teia das relações históricas e das influências das diversas nacionalidades, o Papa, em coerência com o diálogo que deseja real e efetivo entre as gerações, na fidelidade às raízes para a construção de um futuro mais humano e de justiça solidária, evocou as glórias da História da Rússia (não ia ali fazê-lo para com outo país). É óbvio que a terra de santos, a mãe Rússia, o império de Pedro, o Grande, e de Catarina II, são raízes vitais destes jovens. Mau seria que Francisco referisse o “império” de Vladimir Putin como o fulcro (ou como simples elemento) dessas raízes. Com efeito, o presente mau combate-se, mas o passado de luz e de glória – apesar das sombras e dos erros – assume-se. Não vale a pena combater o passado, que não volta, mas deve assumir-se o que de bom nos legou.  

Compreende-se o lamento da Igreja Greco-Católica da Ucrânia, a sofrer com o seu povo, embora os seus responsáveis devessem ter compreendido a preocupação do Santo Padre: os jovens russos, como o seu povo, não querem a guerra e sofrem com ela, apreensivos sobre o futuro. E compreende-se a posição do governo de Kiev. Porém, não se compreende a crítica de alguns responsáveis da Igreja Católica a Francisco, como a de alto hierarca alemão, que pensa que alguns discursos do Papa são superficiais, desviados da realidade histórica e teológica.

Ficamos encantados com o elogio a Lisboa, com a citação dos nossos escritores e santos ou com a menção do Cabo da Roca e da onda gigante da Nazaré, sem repararmos na clássica metodologia retórica, da captação da benevolência dos ouvintes (Paulo VI, contrário ao colonialismo, em Fátima abençoou Portugal Continental, Insular e Ultramarino). E, autoanestesiados pelo encanto, deixamos de lado as exigências das mensagens papais.  

Na guerra da Rússia na Ucrânia, o pensamento único continua e querem impô-lo ao Papa, que tem rezado e mandado rezar pelos Ucranianos, envia para lá emissários e ajuda humanitária material. É óbvio que está preocupado com a Rússia e o seu povo e tem dito isso, tal como, logo nos primeiros dias, foi pessoalmente à Embaixada Russa suplicar pelo fim da invasão. Manifestou discordância do Patriarca de Todas as Rússias sobre a guerra. É óbvio que a Rússia, que invadiu a Ucrânia, é o principal responsável pela guerra, mas também é verdade que o dito Ocidente, que assobiou para o lado em 2014, deixando sair a Crimeia para o lado russo, agora tudo faz para manter a guerra. A paz fica para as calendas gregas!

2023.08.31 – Louro de Carvalho

quarta-feira, 30 de agosto de 2023

Grupo BRICS adiciona mais seis países e “desdoloriza”

 

O grupo BRICS é um bloco de países (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), as denominadas economias emergentes, que representa mais de 42% da produção mundial e deve mudar a economia mundial até 2030, sendo o maior parceiro comercial de África.

De 22 a 24 de agosto, decorreu em Sandton, no município metropolitano de Joanesburgo, na África do Sul, a 15.ª cimeira de chefes de Estado e de Governo do BRICS. E o presidente da África do Sul, Cyril Ramaphosa, anunciou, a 24, em conferência de imprensa conjunta, no âmbito das deliberações da cimeira, a entrada da Argentina, do Egito, da Etiópia, do Irão, da Arábia Saudita e dos Emirados Árabes Unidos no grupo de economias BRICS. “Decidimos convidar a República da Argentina, a República Árabe do Egito, a República Federal da Etiópia, a República Islâmica do Irão, o Reino da Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos, para serem membros de pleno direito, efetivo a partir de 1 de janeiro de 2024”, declarou.

Cyril Ramaphosa disse que os líderes BRICS adotaram a declaração “Joanesburgo II” da 15.ª Cimeira dos BRICS. Com efeito, nos últimos dois dias da cimeira, chefes de Estado do Brasil, da Rússia, da Índia, da China e da África do Sul envolveram-se em conversações sobre vários temas, incluindo o reforço da cooperação de segurança, energética, comercial, económica e social. Brasil, Índia e África do Sul estiveram representados pelos respetivos chefes de Estado. A Rússia, esteve representada pelo ministro dos Negócios Estrangeiros, Sergey Lavrov. E, segundo o líder sul-africano, cerca de 1500 líderes empresariais de vários países participaram no Fórum empresarial do bloco. O presidente francês, Emanuel Macron, sugerira a sua participação neste fórum, mas o convite não chegou ao Eliseu.

Já no dia 23, Naledi Pandor, chefe da diplomacia do país anfitrião, avançava que o BRICS adotou um documento que “estabelece diretrizes e princípios, e processos para considerar os países que desejam tornar-se membros”.Essencialmente, concordamos na questão da expansão, temos um documento que adotámos que estabelece diretrizes e princípios, e processos para considerar os países que desejam tornar-se membros do BRICS, o anúncio mais detalhado será feito pelos líderes do BRICS antes da conclusão da cimeira”, precisou.

A ministra das Relações Internacionais e Cooperação sul-africana, que falava a um canal de rádio tutelado pelo seu ministério, disse que o bloco estabeleceu uma aliança de mulheres e um fórum para a juventude dentro do BRICS. “É extremamente importante [como] a formação da juventude. Pela primeira vez, tivemos dois jovens líderes a dirigirem-se aos líderes do BRICS de forma muito positiva e inspiradora, estabelecendo as aspirações dos jovens dos países BRICS, relativamente ao papel que esperam que os BRICS desempenhem no desenvolvimento dos jovens”, salientou.

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Esteve, pois, no centro do debate a expansão do grupo, cujo historial e interesses se podem sintetizar como segue.

Em 2009, a Rússia teve a iniciativa de formar um bloco de países que fizessem frente à ordem mundial liderada pelos Estados Unidos da América (EUA) e às potências económicas do dito Ocidente. Unindo-se ao Brasil, à Índia e à China, nasceu o BRIC, inspirado no acrónimo cunhado, anos antes, por Jim O’Neill – ao tempo, economista-chefe do Goldman Sachs – num trabalho de investigação que vincava o potencial de crescimento das quatro economias.

Dois anos depois da sua oficialização na cimeira de Ecaterimburgo, na Rússia, juntou-se ao grupo a África do Sul, assumindo o grupo a designação de BRICS. E, em 2014, foi anunciada a criação do Novo Banco de Desenvolvimento (NBD), instituição financeira que, desde a sua formalização, emprestou mais de 30 mil milhões de dólares para projetos de infraestruturas, de energia renovável e de transportes nos países-membros. E formou-se o Fundo de Reservas do BRICS, com 100 mil milhões de dólares, para preservar a estabilidade financeira em tempos de crise.

O BRICS não é organização formal como as Nações Unidas, o Banco Mundial ou a Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP), ou nem bloco económico, como a União Europeia (UE). Todavia, funciona por consenso, cada país assume a presidência rotativa do grupo por um ano, e os membros integram o G20, que reúne as 20 principais economias.

Agora, o grande tema, na agenda da cimeira, foi a expansão do grupo a mais países. O alargamento sempre esteve no escopo do BRICS – de tal modo que a África do Sul entrou um ano e meio após a primeira cimeira –, impulsionado sobretudo pela China, mas tem enfrentado a resistência dos restantes membros. No entanto, o contexto atual é diferente do de 2010, sobretudo se se tiver em conta a pandemia de covid-19, que fez aumentar a insatisfação dos países em desenvolvimento, face aos Estados mais ricos. Embora enfrente uma fase de abrandamento económico, Pequim consolidou-se como potência e viu crescer a sua capacidade de influência a nível internacional; Moscovo precisa de apoio de outros países, quando está em guerra contra a Ucrânia e enfrenta pesadas sanções dos EUA e dos aliados; e a África do Sul vê o seu papel de liderança em África questionado perante economias em crescimento na região.

Foram debatidas formas de acelerar o distanciamento do dólar norte-americano, pela maior utilização de moedas locais no comércio entre os países membros. Porém, Jim O’Neill considerou uma “loucura” a ideia de uma moeda comum do BRICS a superar o dólar.

Além dos seis países admitidos, muitos outros queriam entrar. Entre Irão, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Argentina, Argélia, Bolívia, Indonésia, Egito, Etiópia, Cuba, República Democrática do Congo, Comores, Gabão e Cazaquistão, contam-se mais de 40 que manifestaram interesse em aderir, para os quais o BRICS é um sinal de esperança, já que esperam que a adesão ao bloco lhes traga benefícios como o financiamento do próprio desenvolvimento económico e o aumento do comércio e do investimento.

O Irão, que detém cerca de um quarto das reservas de petróleo do Médio Oriente, espera que o mecanismo de adesão seja decidido “o mais rapidamente possível”, ao passo que a Arábia Saudita esteve entre os países que participaram nas conversações dos “Amigos dos BRICS” na Cidade do Cabo, em junho, tendo recebido o apoio da Rússia e do Brasil.

Sobre a adesão da Arábia Saudita ao BRICS, Jim O’Neill antecipa que seria “um grande negócio”, pois os laços estreitos do país com os EUA e o seu papel como o maior produtor de petróleo do Mundo acrescentariam peso ao bloco. Para o economista, a adesão de mais países ao BRICS será economicamente importante, se a Arábia Saudita for um deles, ao invés, é difícil ver o interesse.

Argentina afirmou, ainda em julho de 2022, ter recebido o apoio formal da China. O presidente da Bolívia, Luis Arce, manifestou interesse em aderir ao BRICS, mostrando-se determinado a reduzir a dependência do dólar no comércio externo. A Etiópia, uma das economias de crescimento mais rápido de África, avançou, em junho, que pedira para aderir ao bloco, com um porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros a dizer que o país continuará a trabalhar com instituições internacionais que possam proteger os seus interesses.

Em julho, a Argélia anunciou que se candidatou a membro do grupo, bem como a acionista do NBD. Este país, rico em recursos de petróleo e gás, tenta diversificar a sua economia e reforçar a parceria com a China e com outros países.

É possível que as expectativas dos candidatos ao BRICS sejam demasiado exageradas em relação ao que a sua adesão irá realmente proporcionar na prática”, afirmou Steven Gruzd, do Instituto Sul-Africano de Assuntos Internacionais.

Formando contrapeso ao Ocidente, face às tensões entre a China e os EUA e às consequências da invasão da Ucrânia pela Rússia, o aumento do número de membros dará força ao grupo e ao seu desejo de reforma global. Mas as suas ambições de se tornar ator político e económico global têm sido frustradas por divisões internas e pela falta de visão coerente.

Enquanto se esperava que os líderes do BRICS discutissem um quadro para a admissão de novos membros, verificava-se a diminuição dos benefícios tangíveis da adesão. Por exemplo, o NBD está a ser prejudicado pelas sanções contra a Rússia. Já a África do Sul, apesar de ter visto o seu comércio com os países do grupo aumentar, de forma constante, desde a sua adesão, segundo uma análise da Corporação de Desenvolvimento Industrial do país, deve tal crescimento, em grande parte, às importações da China, além de que o bloco representa só um quinto do total do comércio bilateral sul-africano. Por seu turno, o Brasil e a Rússia, em conjunto, absorvem só 0,6% das exportações da África do Sul. Em 2022, o défice comercial do país com os seus parceiros do BRICS tinha quadruplicado para 14,9 mil milhões de dólares, face a 2010.

Estes resultados devem levar os candidatos a pensar duas vezes antes de aderir ao grupo. “É difícil encontrar realizações concretas para os BRICS”, apontou Steven Gruzd.

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Há muitas formas de dividir o mundo e uma delas acabou de se aprofundar: o BRICS vai acolher seis novos membros, num conjunto de economias que contrasta com o G7, que agrega os países mais industrializados do Mundo. A força que o bloco alargado é ainda incerta, mas a inclusão de exportadores de petróleo reforça a “desdolarização”.

A expansão é novo ponto de partida para a cooperação do BRICS. “Trará novo vigor ao mecanismo de cooperação e fortalecerá a força para a paz mundial e para o desenvolvimento”, disse Xi Jinping, presidente chinês, na cimeira. A escolha acabou por recair em seis economias: Arábia Saudita, Argentina, Egito, Etiópia, Irão e Emirados Árabes Unidos.

A escolha dos novos membros não se afigura óbvia para os analistas, tendo Jim O’Neill apontado à BBC que não lhe parece ter havido um “critério objetivo para determinar que países seriam convidados a aderir”. Porém, uma nota do banco ING, com sede em Amsterdão, frisa que a inclusão destas economias “parece refletir os crescentes laços comerciais com os países originais do BRICS”, pois, ao longo dos anos, a sua participação nas importações dos novos convidados aumentou de 23% para 30%, contra a Zona Euro, os EUA e outras economias desenvolvidas.

O presidente do Brasil, Lula da Silva, defende que o grupo “não quer ser contraponto” ao G7 ou ao G20, nem aos EUA, mas que os países se organizem. Porém, vários os sinais apontam para esta ambição e divisão. Um responsável da equipa chinesa disse ao “Financial Times” que, ao expandir o BRICS para “representar uma fatia semelhante do PIB mundial ao G7, a voz coletiva no mundo ficará mais forte”, o que insinua intuito de se opor ao grupo ocidental.

Está por apurar se o alargamento terá impacto no poder do grupo. Contudo, o alargamento do BRICS tem tido impacto no dólar americano, que deixou de ser utilizado em algumas trocas comerciais, substituído pela rúpia indiana e pelo yuan chinês (moedas pouco estáveis, o que dificulta o câmbio). Além disso, o alargamento do BRICS conta com os principais produtores de petróleo a nível mundial, sendo, ainda, o petróleo a principal fonte de energia para o desenvolvimento económico.

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Veremos se a capacidade de estabelecer consensos ultrapassará a tendência capelina para as divergências (uns são democracias, outos não; uns têm armas nucleares, outros não) e para o zelo pelos próprios interesses. Teremos, aqui, nova fonte de paz, num tempo em que a guerra é também – e sobretudo – económica? Teremos à disposição um novo foco de contrapeso, com vista ao equilíbrio no Mundo? O futuro o dirá e nós o esperamos.

2023.08.30 – Louro de Carvalho

Aumentaram as queixas contra entidades prestadoras de serviços

 

As reclamações dos munícipes contra as autarquias aumentaram 21% para 1528, entre janeiro e agosto deste ano, face a igual período de 2022, que registou 1261 denúncias, conforme dados do Portal da Queixa, de 29 de agosto. São mais 267 contestações. E, quanto ao volume mensal de reclamações mensal, no 1.º semestre, cada mês gerou perto de 200 queixas, tendo julho e agosto superado as 220 reclamações, com 255 e 221, respetivamente.

Pedro Lourenço, fundador do Portal da Queixa, pensa que a nova realidade digital potencia maior intervenção cívica dos munícipes na identificação de falhas, problemas e melhorias, passando “a capacidade de resposta e de resolução das autarquias” a ser “um forte barómetro da satisfação e da confiança dos cidadãos, face ao poder local”. Esta realidade exerce pressão acrescida ao trabalho dos candidatos eleitos, obrigando-os à atenção ao índice de satisfação dos munícipes, sob pena de penalização na reeleição, mercê do aumento do poder da opinião pública.

A câmara municipal (CM) de Lisboa, a de Almada e a de Loures estão no topo. O município da capital, com o volume de reclamações de 23,6%, equivalente à subida de 25%, face a 2022, lidera o ranking. Segue-se a CM de Almada, a acolher 12,8% das denúncias, um aumento de 14% em relação ao 2022. Em terceiro lugar e a absorver 5,2% das ocorrências, está a CM de Loures, com o crescimento de mais de 70% das reclamações. Na quarta posição, está a CM de Vila Nova de Gaia, alvo de 4,3% das queixas nos primeiros oitos meses do ano. Depois, vem a CM do Porto, com 3,8% das reclamações, tendo sido o município que registou o maior crescimento de reclamações: mais 107%, face ao período homólogo de 2022.

A falta de limpeza é a principal reclamação dos munícipes de Lisboa: 16,7% das ocorrências dizem-lhe respeito. Já no Porto, 41,6% das queixas têm a ver com a iluminação pública.

Quanto à performance das autarquias na resposta e na resolução dos problemas reportados, com os três melhores índices de satisfação (IS) estão a CM da Nazaré, com uma pontuação atribuída pelos consumidores de 90,8%; a CM de Sesimbra (89,6%) e a CM de Lagos (73,8%).

Relativamente às queixas por distrito, no topo continua a posicionar-se a CM de Lisboa, a recolher 63% das reclamações. Seguem-se a do Porto (10,1%) a de Braga (3,1%), a de Coimbra (3%) e a de Faro (2,8%). Contudo, este município algarvio foi o único que registou uma descida do número de queixas, face a 2022 (-20%).

Entre os cinco principais motivos de reclamação estão problemas relacionados com a falta de limpeza (22%), nomeadamente sobre falha de recolha de lixo e de limpeza de terrenos, motivo que cresceu 35%, em relação a 2022. Geram 15,8% das reclamações as obras mal executadas, a que se juntam demora, danos causados e trânsito condicionado pela intervenção – tema que sobe 12,9%. Provoca 7,2% das ocorrências a iluminação pública, sobretudo nos constrangimentos pela falta ou pela demora nas reparações, o que aumentou 10%, face a 2022. O barulho ocupa a fatia de 6,3% das queixas, denunciando os munícipes situações de ruído fora do horário legal. O tema cresce 8,5%, em comparação com 2022. Há 5,3% das queixas por falta de lugar para estacionar, por viaturas em lugar indevido ou por multa, superando em 25% o volume de 2022.

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Porém, não são as autarquias as únicas entidades que são objeto de queixa. Outras as acompanham neste panorama de insatisfação. Por exemplo, as reclamações dos utentes contra a Carris e contra a Carris Metropolitana aumentaram 150%, entre janeiro e 15 de agosto de 2023, face ao período homólogo de 2022, sendo a maioria das queixas relacionadas com atrasos. E, de acordo com o Portal da Queixa, alterações de carreiras e má conduta dos motoristas estão também entre os principais motivos que levaram os utentes a reclamar.

As queixas dos utentes da Carris e da Carris Metropolitana dispararam, sendo a carreira 3710 (entre Costa da Caparica (Terminal) – Lisboa (Areeiro) a mais apontada. Neste ano, já foram registadas na plataforma 1229 reclamações contra as duas, um aumento de 150%, em comparação com o período homólogo, que registou 492 queixas. A soma dá o total de 2183 ocorrências, tendo a Carris Metropolitana (iniciou a atividade em junho de 2022) 80% deste volume.

Entre janeiro e agosto de 2022, a Carris foi alvo de 382 queixas e, neste ano, somou 1009, verificando-se a subida de 164%. Já a Carris Metropolitana duplicou o número de reclamações: foram 110 as registadas, em 2022, face às 220 deste ano. Os meses de mais queixas na Carris Metropolitana foram janeiro (414), fevereiro (155) e março (108). E, nos meses da Jornada Mundial da Juventude (JMJ), observaram-se 127 reclamações, de julho a 15 de agosto.

Os principais motivos das queixas são: os atrasos e as variações dos horários dos autocarros (53,8% das queixas); a alteração de carreiras (19%), queixando-se os consumidores de “mudanças nos percursos e a remoção de carreiras sem a substituição adequada”; a conduta dos motoristas (12,2% dos passageiros os denunciam), que “não respeitam paragens, cometem infrações de trânsito e conduzem os veículos de forma perigosa”; e a falta de autocarros (11,3% das queixas).

Segundo os indicadores de performance da Carris e da Carris Metropolitana no Portal da Queixa, a primeira tem o IS avaliado pelos consumidores como “Razoável”, com 58,7 pontos em 100, ao passo que a segunda tem um “Insatisfatório”, com 8,3 pontos em 100.

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As instituições de ensino superior (IEA) receberam, em 2023, mais de 100 queixas, mas só quatro acusados foram penalizados. A agência Lusa questionou universidades e institutos politécnicos (IP) sobre a existência de canais de denúncia para vítimas, número e tipo de queixas registadas e resultados. As 19 IES que responderam – 11 universidades e oito IP) – dizem ter recebido 154 queixas de assédio sexual, moral, de questões pedagógicas e de discriminação. As respostas mostraram que só duas instituições penalizaram os alvos de quatro queixas: três professores e um aluno. Todas as outras 150 não tiveram consequências para o agressor, havendo muitos casos em análise, outros arquivados e, pelo menos, uma história em que a vítima desistiu da queixa.

Pela primeira vez, tiveram efeito imediato denúncias de alunos: o IP do Porto instaurou processos disciplinares e suspendeu preventivamente três docentes por suspeitas de assédio a estudantes, na sequência de queixas e de reclamações recebidas (vinte e uma). O outro caso com penalizações para o agressor passou-se no Centro: um aluno do IP da Guarda agrediu um professor e foi temporariamente suspenso. O IP da Guarda é uma das IES que disse não ter canal de denúncia. As outras são a Universidade da Beira Interior (UBI) e o IP de Castelo Branco.

É nas IES mais antigas que está a grande maioria das queixas: a Universidade de Lisboa (UL) registou 60, a Universidade de Coimbra (UC) 36 e a Universidade do Porto (UP) 19.

Há um ano, a Faculdade de Direito da UL (FDUL) abriu um canal de denúncias e, em 11 dias, recebeu 50 queixas, mas nenhum dos casos de assédio chegou à barra dos tribunais. As denúncias, todas anónimas, deram azo a relatório enviado pela faculdade ao Ministério Público (MP), que “procedeu ao seu arquivamento”. Entretanto, a FDUL criou o Gabinete de Apoio à Vítima, a que chegaram 10 denúncias, de que resultaram três processos de inquérito analisados por instrutores externos, “que concluíram pelo seu arquivamento, por prescrição”.

A UC registou “36 reportes” desde a criação da plataforma, em junho de 2022, havendo dois casos de assédio moral e cinco de discriminação. A maioria foi arquivada por falta de elementos e duas participações de assédio moral levaram à instauração de procedimentos, mas um foi arquivado por “inexistência de condutas dessa natureza” e o outro está “em fase de instrução”.

A UP validou, desde junho de 2022, 19 queixas e reclamações, cinco das quais relacionadas com assédio moral e sexual, que levaram à abertura de processos de inquéritos ainda em curso.

No IP de Viseu, há duas queixas em análise, na Universidade do Algarve está em averiguação uma denúncia de assédio moral; e, na Universidade dos Açores, decorre um processo relacionado com questões pedagógicas. A Universidade da Madeira criou, em dezembro de 2022, o Portal do Denunciante, a que chegaram duas denúncias: uma “foi arquivada por falta de fundamento” e a outra está em análise. Mas há casos em que todas as queixas foram arquivadas, como aconteceu no IP de Bragança. E o IP de Coimbra considerou uma queixa de assédio moral resolvida, porque o denunciante desistiu do processo.

O assédio na academia não é de agora. E a ministra do Ensino Superior, Elvira Fortunato, apelou, há um ano, a que as IES desenvolvessem ações de prevenção e criassem mecanismos de denúncia, mas professores, investigadores e alunos, pela voz de sindicatos e de associações representativas de estudantes, criticam a criação de canais dentro das instituições, alertando para o perigo de as vítimas desistirem por temerem ser identificadas ou perseguidas. Por isso, defendem a existência de um canal de denúncias nacional, a funcionar de forma independente das IES.

A criação de instrumentos de denúncia não promove a queixa, como foi o caso do IP de Leiria, cuja plataforma digital começou a funcionar em fevereiro, mas todas as queixas de assédio são anteriores: duas de assédio moral e duas de assédio sexual, estando três arquivadas e um processo “em tramitação”. Também a Universidade do Minho e o IP de Portalegre, que têm canais de denúncia anteriores ao apelo da ministra, dizem nunca ter recebido qualquer queixa.

Na lista das IES sem cadastro estão ainda a UBI, a Universidade de Évora e a Universidade de Aveiro (UA). A UA tem vários instrumentos para denunciar situações de assédio sexual e moral, com a possibilidade de as queixas serem submetidas através do envio de email ao Reitor, do canal de comunicação Pergunta ao Reitor ou do canal de denúncias internas, que assegura o anonimato.

As informações das IES revelam tempos diferentes de ação e diferentes abordagens perante o mesmo problema, o que tem sido criticado pelos sindicatos.

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Embora os dados apontem uma evolução do nível de satisfação dos portugueses relativamente às marcas CTT e CTT Expresso – registando ambas uma melhoria nos indicadores de performance referentes à resposta aos problemas que lhe são reportados, bem como o crescimento do grau de retenção de clientes –, a existência de reclamações dirigidas às marcas também é uma realidade. Desde o início do ano até 8 de agosto, segundo o Portal da Queixa, as marcas CTT e CTT Expresso somaram 3853 reclamações, 64,2% das quais dirigidas à primeira e 35,8% à segunda. 

Entre os principais motivos de reclamação, estão os atrasos nas entregas, com 32,7% das queixas de 2023, valor que melhorou, em comparação a igual período de 2022, em que totalizou 33,9%. Encomenda não entregue é o segundo motivo mais reportado, a absorver 20.4% das queixas. A motivar 10,4% das reclamações está a entrega errada, a entrega feita em morada errada ou a destinatário desconhecido. Já as dificuldades no atendimento – contacto com o apoio ao cliente – foram responsáveis por 7% das queixas. E, a gerar 5,9% das reclamações, em 2023, está a entrega incompleta que ocorre quando apenas parte dos itens são efetivamente entregues.  

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Em relação à banca, entre 1 de janeiro e 21 de agosto, os clientes registaram 4614 queixas no Portal da Queixa, um crescimento de 34%, em comparação com igual período de 2022, onde se observaram 3442 reclamações. Situações com o Crédito à Habitação – com foco em problemas conexos com a renegociação – são o principal motivo de queixa dos clientes, a gerar perto de 20% das ocorrências – aumento significativo, face a igual período de 2022, com subida de 100%.

Entre os outros motivos estão: apoio ao cliente (18,9%), reclamando os clientes da falta ou da dificuldade em falar com a entidade bancária; reembolso (14,4%) ou reposição de valores debitados indevidamente na conta do cliente; problemas com a aplicação e Internet banking (13,9%); e constrangimentos na conta/cartão de crédito bloqueados (6,1%), alegando os clientes que não podem utilizar a conta ou o cartão de crédito, devido ao bloqueio imposto pela entidade.

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A amostra está longe de espelhar o que se passa no país, mas é significativa da falta de empenho em promover o bem comum, em servir e proteger o público utente dos serviços e em honrar os contratos. O povo, os utentes e os clientes merecem melhor.   

2023.08.30 – Louro de Carvalho

terça-feira, 29 de agosto de 2023

A doutrina progride, dilata-se, consolida-se e torna-se mais firme

 

A 5 de agosto, na visita apostólica a Portugal, aquando da Jornada Mundial da Juventude (JMJ), o Papa encontrou-se com os jesuítas no Colégio de São João de Brito e conversou. Porém, do conteúdo nada transpirou, até a “Civiltà Cattolica” o publicar, no dia 28. 

O inspetor Padre Miguel Almeida apresentou a Província, dizendo que “fomos três vezes expulsos de Portugal e tantas outras regressamos”, pois, como disse ironicamente, “a erva daninha é difícil de arrancar”. E, vincando o cariz missionário da Companhia de Jesus e a sua proximidade com os pobres, apresentou as obras da Província Portuguesa: educação, pastoral universitária, paróquias, trabalho social e com a área da cultura. Referiu que “há um bom ambiente”, que, por via de crises que houve, “estamos num processo de perdão e de reconciliação”. Por sua vez, o Papa enalteceu o realismo assumido, pois não foi a descrição de um museu, e dispôs-se a escutar.

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Um estudante de Filosofia, que apontou a sociedade sexualizada e consumista, interrogou Francisco sobre a validade da formação jesuítica. O Papa assentiu que vivemos numa sociedade mundana, o que o preocupa, sobretudo quando o mundanismo toma o lugar da vida consagrada. E mencionou a carta ao clero de Roma sobre o clericalismo, uma forma de mundanismo, para vincar que “o mundanismo espiritual é uma armadilha muito recorrente”, vincando que uma coisa é dialogar com o Mundo – como se faz com a arte e com a cultura – e outra é comprometer-se com a mundanidade. Depois, citou a conclusão do livro do Padre de Lubac “Meditação sobre a Igreja”, que tem quatro páginas, dedicadas à mundanidade espiritual, o pior mal que pode penetrar na Igreja, pior do que a era dos papas libertinos. Por isso, é preciso discernir se somos mundanos. Porém, é preciso dialogar com o Mundo, “porque não se pode viver em apuros”. Não é preciso ser o religioso que sorri e protege o seu ambiente sem convocar ninguém. Portanto, devemos sair para o Mundo, que tem valores positivos e negativos.

Tendo dirigido falado a todos os sacerdotes que trabalham na Cúria, a maioria jovem, os quais não mencionaram, nomeadamente o uso de telemóveis e a pornografia em telemóveis. E um deles terá comentado: “Dá para perceber que passou horas no confessionário.”

Quando era noviço, ouvia falar da santa castidade e pedir para não olharem fotos ousadas. Eram tempos em que os problemas não eram tão graves e eram escondidos. Hoje, a porta está aberta e não há razão para os problemas ficarem ocultos. Se alguém esconde os problemas, a culpa não é da Companhia, nem da comunidade religiosa, mas dele próprio. A sociedade de hoje não deixa os problemas de lado, fala deles, pelo que têm de ser encarados. Hoje, o grave problema é o dos refúgios ocultos da autobusca, que dizem respeito à sexualidade e a outras coisas. E a ajuda está no exame de consciência. Porém, há pessoas consagradas que têm o coração exposto aos quatro ventos, com janelas e portas abertas, mas sem consistência interna.

O Papa não tem medo da sociedade sexualizada, mas dos padrões mundanos, em que se inclui, por exemplo, o desejo de se promover, a vontade de se destacar ou de subir. E menciona o caso da sua sábia avó, que um dia avisou: “É preciso progredir na vida”, comprar um terreno, um tijolo, uma casa... […] Mas não confundas progresso com escalada. Na verdade, quem sobe, sobe, sobe, sobe e, em vez de ter uma casa, montar um negócio, trabalhar ou ganhar uma posição, quando está no topo, a única coisa que mostra é o rabo.”

Lorenzo, que trabalha com crianças e adolescentes num bairro pobre, perguntou o que podem os Jesuítas fazer, pessoalmente e nas suas comunidades, para que o seu estilo de vida e o seu testemunho sejam cada vez mais sinal profético, com impacto na vida dos mais pobres. Francisco, por seu turno, lembrou que o trabalho com os pobres, implícito na fórmula inaciana, percorreu vários caminhos na Companhia, com desvios, mas tem sido uma busca muito intensa. Recordou que, na Argentina – no tempo de estudante – um dos pais foi morar numa vila pobre e olharam-no de soslaio, como sucedeu ao Padre Llanos, em Madrid, tido por louco. Hoje, a espiritualidade jesuíta leva-os ao compromisso com os que estão à margem: da religião, da vida. E, com o Padre Janssens, nasceram os centros de investigação e ação social, que abriram grande caminho de reflexão. Por fim, chegou a integração direta, a escolha de conviver com os pobres. A inserção entre os pobres ajuda, evangeliza. Santo Inácio leva fazer o voto de não mudar a pobreza na Companhia, mas torná-la mais estreita. É o espírito de pobreza que devemos ter.

Em suma, na espiritualidade inaciana, há a opção pelos pobres e pelo acompanhamento dos pobres. Porém, há  mil maneiras de abordar os problemas sociais. A inserção tem autenticidade esplêndida, por significar partilha e permitir conhecer e seguir a sabedoria popular.

O Papa, quando era arcebispo, gostava de ir às vilas misérias. Um dia, ao chegar lá, disseram-lhe que o Papa João Paulo II estava morto. Celebrou a missa com o povo e pararam a conversar. Uma idosa perguntou-lhe como se elege o Papa. Ele explicou e ela perguntou se o podiam fazer Papa. E, como o arcebispo disse que “podem fazer qualquer um Papa”, ela ditou: “Se te fizerem Papa, compra um cachorrinho. […] Alimenta o cachorrinho, primeiro.” E Bergoglio comentou: “A velha era pobre, de uma vila pobre , mas conhecia os factos da Igreja.”

De facto, os pobres têm uma sabedoria especial, a sabedoria de assumir o trabalho e a sua condição com dignidade, mas Francisco avisa: Quando os pobres se tornam perversos, por não conseguirem suportar a sua situação, podem abrir caminho o ressentimento e o ódio.  Devemos, pois, evitar que os pobres sejam esmagados pela situação, ajudando-os a caminhar, a progredir e a reconhecer a sua dignidade. Há problemas graves, nos bairros de lata, que não são mais graves do que os das zonas residenciais, só que, nestas, ficam ocultos. E há problemas graves, mas ao lado de sabedoria das pessoas que vivem do seu trabalho e suportam a doença e a morte. Daí que a pastoral popular seja uma riqueza.

Um irmão religioso, que passou um ano sabático nos Estados Unidos da América (EUA), apontou o facto de muitos, inclusive bispos, criticarem a forma de Francisco liderar a Igreja, acusando os jesuítas de já não serem, como era usual, “uma espécie de recurso crítico do Papa”. E perguntou se Francisco sentia falta da crítica do jesuíta ao Papa, ao Magistério, ao Vaticano. Aí, o Bispo de Roma, também jesuíta, assentiu que a situação nos EUA não é fácil, pois “uma atitude reacionária forte e organizada “estrutura um sentimento emocional de pertença”. Contudo, é de lembrar que “o atraso é inútil” e que “é preciso entender que há uma correta evolução na compreensão das questões de fé e de moral, desde que seguidos os três critérios indicados por Vicente de Lérins, no século V: a doutrina evolui ut annis consolidatetur, dilatetur tempore, sublimetur aetate. Ou seja, com o tempo, a doutrina avança, consolida-se expande-se e consolida-se e torna-se mais firme, mas sempre progredindo. A mudança desenvolve-se da raiz para cima, como a linfa que sobe, crescendo com estes três critérios. Por exemplo, hoje é pecado ter bombas atómicas (dantes, não existiam), como não se pode praticar a pena de morte (antes, era tolerada). E a escravatura, que Papas toleraram, hoje é rejeitada. Enfim, mudamos, mas com critérios. 

Vicente de Lérins compara o desenvolvimento biológico do homem e a transmissão de uma época a outra do depositum fidei, que cresce e se consolida com o tempo, poi, com o tempo, a compreensão do homem muda e a consciência do homem aprofunda-se. As outras ciências e a sua evolução também ajudam a Igreja neste crescimento de compreensão. Porém, alguns andam para trás. E, quando se retrocede, forma-se algo fechado e desconectado das raízes da Igreja e perde-se a linfa da revelação. Ora, os problemas que os moralistas devem examinar hoje são muito graves e, para enfrentá-los, devem correr o risco de mudar, mas na direção correta.

O Papa adverte que se pode vivenciar o clima de fechamento em algumas situações, como nos EUA. Mas perde-se a verdadeira tradição e recorre-se a ideologias em busca de apoio de todos os tipos. E a ideologia suplanta a fé; a pertença a um setor da Igreja substitui a pertença à Igreja.

O Padre Arrupe encontrou a Companhia atolada. O geral Ledóchowski elaborou o “Epítome”, de que nada sobrou. Era uma seleção de Constituições e Normas. Ledóchowski, muito ordeiro, disse estar a compilar para os jesuítas terem claro “tudo o que têm de fazer”. E enviou o primeiro exemplar a um abade beneditino amigo, que lhe respondeu: “Mataste a Companhia.”

Essa foi a espiritualidade que Arrupe recebeu e que teve a coragem de pôr em movimento. Algo saiu do controlo, como a questão da análise marxista da realidade. Teve de esclarecer algumas coisas, mas era um homem que sabia olhar para frente. E, em 1969, fundou o Centro Inaciano de Espiritualidade, cujo secretário, o Padre Luís Gonzalez Hernandez, foi encarregado de dar a volta ao Mundo para dar Exercícios e abrir este novo panorama.

Ora, os ditos grupos americanos, tão fechados, estão a isolar-se. Em vez de viverem da doutrina verdadeira, que se desenvolve e dá frutos, vivem de ideologias. E, quando, na vida, substituímos a doutrina por uma ideologia, perdemos como na guerra.

A quem lhe disse que é o Papa dos seus sonhos, depois do Concílio Vaticano II, e lhe perguntou o que sonha para a Igreja do futuro, respondeu que muitos questionam, sem o nomearem, os ensinamentos do Vaticano II. Ao olhar para o futuro, acha que devemos seguir o Espírito e ver o que Ele nos diz, com coragem. Ancorado no balanço da situação da Companhia de Jesus, De status Societatis, sustenta que o seu sonho para o futuro “é estar aberto ao que o Espírito nos diz, aberto ao discernimento e não ao funcionalismo”. E, evocando o Padre Arrupe, referiu que aos muito ocupados a trabalhar com os refugiados falou de oração. 

Ao recém-nomeado Mestre de Noviços, que perguntou que afetos desordenados são mais frequentes na Igreja e, sobretudo, na Companhia, respondeu com a carta ao clero de Roma sobre mundanismo e clericalismo. O clericalismo que se infiltra nos padres é pior, quando se infiltra nos leigos: leigos clericalizados são assustadores. Lembrou o seu grande mestre espiritual, Padre Fiorito, que lhe apresentou as obras do Padre Claude Judde, um diretor espiritual do século XVIII, do escolasticado de Chantilly, a quem se deve o ensaio sobre o discernimento das “palavras motoras”, que levam a uma decisão, sob a égide do Espírito. Um sério exame de consciência deve alertar contra os demónios que tocam a campainha, a pedir, sorrateiramente, licença para entrar e que tomam conta da casa. E Jesus avisa que a condição do homem é, então pior do que antes. 

O irmão mais novo da Província Portuguesa, de 56 anos de idade e 32 de casa, aponta a crise de vocações e pergunta o que o Papa acha que a Companhia pode fazer, no campo vocacional, para sair da crise. Francisco reconhece que houve um tempo em que havia, na Companhia, muitos irmãos. Quando foi inspetor, as melhores relações para a ordenação de um escolástico vinham dos irmãos ou das mulheres que trabalhavam na casa de formação. E diz que, para a vocação de irmão, não é necessário procurar candidatos: o Senhor cuidará disso; mas devemos abrir as portas para ver esta possibilidade em muitos jovens.

Um jesuíta que trabalha no centro universitário de Coimbra diz que alguns jovens universitários, bons e muito comprometidos com a Igreja, se identificam como homossexuais. Sentem-se parte ativa da Igreja, mas não veem, na doutrina, a forma de viver a sua afetividade e não veem o apelo à castidade como apelo pessoal ao celibato, mas como imposição. Assim, pergunta como agir, do ponto de vista pastoral para que essas pessoas se sintam, no seu modo de vida, chamadas por Deus a uma vida afetiva saudável e fecunda e como se pode ver, nas suas relações, a possibilidade de abrir e dar sementes do verdadeiro amor cristão, como o bem que podem fazer, a resposta que podem dar ao Senhor. O Papa, em resposta, disse crer que não há discussão sobre a convocatória dirigida a “todos”. Jesus é muito claro. Os convidados não quiseram ir à festa. E Ele disse para irem à encruzilhada a chamar toda a gente: “sãos e doentes”, “justos e pecadores”, todos. A porta está aberta a todos, cada um tem o seu lugar na Igreja. E devemos ajudar as pessoas a viver para poderem amadurecer naquele lugar, o que vale para todos os tipos de pessoas.

Hoje, o tema da homossexualidade é muito forte e a sensibilidade a este respeito muda de acordo com as circunstâncias históricas. Mas o que o Papa não gosta é que se olhe com uma lupa o “pecado da carne”. Se alguém explorava os trabalhadores, se mentia ou trapaceava, isso não contava, mas eram relevantes os pecados abaixo da cintura.

Então, todos estão convidados.  E é necessário aplicar a atitude pastoral mais adequada a cada um. Não devemos ser superficiais e ingénuos, forçando as pessoas a coisas e comportamentos para os quais não estão maduras ou de que não são capazes. Acompanhar as pessoas, espiritual e pastoralmente, exige sensibilidade e criatividade. Mas todos são chamados a viver na Igreja. E o Papa deu um exemplo. Uma freira de Charles de Foucauld, que tem 80 anos e é capelã do Circo de Roma com outras duas, participa nas audiências gerais de quarta-feira. Moram numa casa itinerante ao lado do Circo. O Papa foi vê-los. Têm a capela, cozinha, área onde dormem, tudo bem organizado. E a freira também trabalha muito com meninas transexuais. Um dia, perguntou se as podia levar à audiência. Obviamente, a resposta foi afirmativa. A primeira vez que vieram, choraram: não pensavam que o Papa as recebesse. E habituaram-se.

A quem lhe perguntava o que lhe pesa no coração e que alegrias está a vivenciar, garantiu que a alegria que mais tem presente é a preparação para o Sínodo, embora perceba que há deficiências na forma de o conduzir. Alegram-no as reflexões de pequenos grupos paroquiais, de pequenos grupos de igrejas e a grande emoção. Precisou que o Sínodo não é invenção sua. Foi Paulo VI, no final do Concílio, que percebeu que a Igreja Católica havia perdido a sinodalidade. E criou o Secretariado do Sínodo dos Bispos. Houve um progresso lento e imperfeito. Chegaram a querer um Sínodo com censura. Porém, nos últimos 10 anos, estamos a progredir, até alcançarmos “uma expressão madura do que é a sinodalidade”. A sinodalidade não é a procura de votos, como faria um partido político, mas deixar o Espírito guiar as coisas. 

Já o que muito preocupa o Papa são as guerras. Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, as guerras têm sido incessantes em todo o Mundo. E vemos o que está a acontecer. 

A quem o questionou sobre a missão dos jesuítas como Igreja, como Sociedade universal e como Província Portuguesa e sobre o seu papel na colheita dos frutos desta JMJ, para não se perder esta oportunidade, Francisco atirou que a JMJ estava a envolver muitos jovens portugueses, sendo necessário acolher a sua inquietação e ajudá-los a desenvolvê-la, para que a inquietação não se torne coisa do passado. A JMJ é uma plantação no coração de cada um e de cada uma, portanto não pode acabar como lembrança do passado. É preciso chegar a um fruto, o que não é fácil. E o Pontífice exorta os jesuítas a continuarem com os jovens que lá estavam e com os que não participaram. A água foi agitada e o Espírito Santo aproveita o ensejo para tocar os corações. E, agora, é a vez dos agentes da pastoral: acompanhá-los para que se mantenham e cresçam. “É hora de lançar as redes, no sentido evangélico da palavra”.

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A doutrina é mesma, porém, evolui como a vida, amadurece e cria novos contornos!

2023.08.29 – Louro de Carvalho