domingo, 20 de agosto de 2023

A Igreja é para todos, porque a salvação é para todos

 

O Evangelho do 20.º domingo do Tempo Comum no Ano A (Mt 15,21-28) apresenta-nos a realização da profecia do Tritoisaías, apresentada na primeira leitura. E Jesus fá-lo através da súplica insistente da cananeia. Depois de verificar como os fariseus e os doutores da Lei recusavam a doutrina do Reino, entra numa região pagã, para mostrar como os pagãos são dignos de acolher o dom de Deus. E, face à grandeza da fé da cananeia, garante que a salvação prometida por Deus se derramará sobre todos os homens e mulheres, sem exceção.

Continuamos no âmbito da “instrução sobre o Reino” (cf Mt 13,1-17,27). Depois de apresentar a pregação do Reino em parábolas, Mateus descreve a resposta dos interlocutores de Jesus à proposta que Ele lhes fez. Em geral, a comunidade judaica não aceita o desafio de Jesus. Herodes, Nazarenos, escribas, fariseus e saduceus recusam embarcar na aventura do Reino.

O episódio evangélico em referência foi antecedido de um confronto entre Jesus, por um lado, e os fariseus e, por outro, os doutores da Lei, por causa das tradições judaicas. Em rutura com os fariseus e com os doutores da Lei, Jesus “retirou-Se dali e foi para os lados de Tiro e de Sídon”. A recusa de Israel em acolher o Reino apressa a pregação de Jesus fora das fronteiras de Israel. A comunidade dos discípulos – o grupo que escutou a proposta do Reino e a acolheu – acompanha Jesus para a “região de Tiro e Sídon”. Apresenta-se a Jesus uma mulher “cananeia”. O apelativo “cananeia” designa, no Antigo Testamento (AT), uma mulher pagã: aqui, uma mulher fenícia, residente na região de Tiro e Sídon.

A Fenícia não era, aos olhos dos judeus, região recomendável. De lá surgiam, não raro, exércitos inimigos e influências religiosas nefastas, que afastavam os israelitas da fé em Javé e os faziam correr atrás dos deuses cananeus. Jezabel, mulher do rei Acab, que potenciou o culto a Baal e Asserá, em meados do século IX a.C., no tempo de Elias, era filha de um rei de Sídon. Não admira, pois, que os fariseus e os doutores da Lei, defensores intransigentes da Lei e da pureza da fé, tivessem os habitantes da zona como “cães” (designação altamente pejorativa).

O apelo da mulher vai no sentido de ela poder, também, ter acesso à salvação que Jesus prega. Com efeito, os judeus pensavam que a salvação era só para eles, portanto, vedada aos outros povos. Assim, não merecerá, nesta ótica, a graça da salvação um estanheiro, inimigo, oriundo de uma região com má fama e, sobretudo, sendo mulher. Porém, Jesus ultrapassará os preconceitos religiosos dos judeus.

As três intervenções da mulher fenícia mostram a sua ânsia de salvação e a fé firme e convicta que a anima: as designações “filho de David” – equivalente a “Messias” – e “Senhor” – “Kýrios” – com que se dirige a Jesus, lidas em contexto cristão, equivalem a uma confissão de fé. É uma figura que impressiona pela fé, pela humildade e pelo sofrimento que transparece no seu apelo.
É surpreendente a forma dura como Jesus trata esta mulher que pede ajuda. Começa por passar em silêncio, aparentemente insensível aos apelos da mulher. Ao invés, os discípulos insistem em que a atenda e a mande embora. Porém, o que os movia não era a compaixão, mas o incómodo dos gritos e a convicção subconsciente de que a salvação não era para estranhos ao Povo escolhido. E Jesus, na resposta, parece alinhar com a mentalidade judaica e israelita: “Não fui enviado senão às ovelhas perdidas da casa de Israel”. E, ante o dramático apelo (“socorre-me, Senhor”), responde: “Não é justo que se tome o pão dos filhos para o lançar aos cães.”.

Esta atitude rude e insensível do mestre galileu, preocupado em traduzir, em gestos concretos o amor e a misericórdia de Deus, mais do que afirmar a convicção de que, segundo o plano de Deus, a salvação devia atingir, primeiro, os Judeus, antes de alcançar os gentios, constitui uma estratégia pedagógica para mostrar o absurdo dos preconceitos judaicos contra os pagãos.

Jesus orientou o jogo de forma a demonstrar como era ridícula a discriminação dos pagãos, constante da catequese oficial judaica. Endurecendo, progressivamente, a sua atitude, face ao apelo da “cananeia”, Jesus dá à mulher a possibilidade de demonstrar a firmeza e a convicção da sua fé e prova aos judeus que os pagãos são dignos – talvez mais dignos do que esses “santos” membros do Povo de Deus – de se sentarem à mesa do Reino. Esta mulher, na sua humildade, nem pretende equiparar-se ao Povo eleito, convidado por Deus para o banquete do Reino. Está disposta a ficar, como os cachorrinhos, só com “as migalhas” que caem da mesa; mas pede que lhe permitam o acesso à salvação que Jesus traz. Ao invés, os fariseus e doutores da Lei, fechados na sua autossuficiência, rejeitam a salvação que Jesus não desiste de lhes oferecer.

No termo de toda esta caminhada de afirmação da bondade e do merecimento dos pagãos, que a teologia de Israel desprezava, Jesus conclui: “Mulher, grande é a tua fé. Faça-se como desejas”. A afirmação de Jesus significa: “Na verdade, tu estás disposta a acolher-Me como o enviado do Pai e a aceitar o pão do Reino, o pão com que Deus mata a fome de vida de todos os seus filhos. Recebe a salvação que se destina a todos os que têm o coração aberto ao dom de Deus.”

É possível que Mateus esteja a responder a uma situação concreta da sua comunidade. Nos finais do século I, alguns judeo-cristãos ainda tinham dificuldade em aceitar a entrada dos pagãos na Igreja. E Mateus recorda-lhes que, para Jesus, o decisivo não é a raça, a história, a eleição, mas a adesão firme e convicta à salvação que, em Jesus, Deus faz aos homens.

O trecho em apreço mostra que a mensagem de Jesus é para todos. A comunidade de Jesus é uma comunidade universal. O que é decisivo, no acesso à salvação, é a fé – isto é, a capacidade de aderir a Jesus e ao seu estilo de vida.

Neste dia, ressoam, em todas as celebrações da Eucaristia, as palavras do Papa Francisco: “A Igreja é para todos, todos, todos!” Contudo, é de prever que elas sejam desvirtuadas: uns a dizer que a Igreja é para todos, mas que têm de se amoldar, caso contrário, podem ser excluídos; outros a dizer que a Igreja é para todos e para tudo, até para a usarem segundo os seus interesses e conveniências (permanentes ou pontuais). Ora, a Igreja é, efetivamente para todos, porque a salvação é para todos. Por isso, tem de ser o espaço de acolhimento a todos, não só os convertidos, não só os que se querem converter, mas dando o abraço compassivo, igualitário (mas diferenciado segundo as necessidades específicas de cada um), com a paciência e com a esperança de que Deus estimule e aceite a conversão de todos e de cada um, sem exceções.   

***

A 1.ª leitura (Is 56,1.6-7) constitui uma antecipação profética do passo evangélico meditado. Javé garante ao seu Povo a chegada da nova era, em que se revelará plenamente a salvação de Deus. Porém, a salvação não se destina apenas a Israel, mas a todos os homens e mulheres que aceitarem o convite para integrar a comunidade do Povo de Deus.

O trecho veterotestamentário em apreço integra um bloco de textos designados por “Tritoisaías” (cf Is 56-66), quiçá textos dum profeta anónimo pós-exílico, que exerceu o seu ministério em Jerusalém, entre os retornados da Babilónia, nos anos 537-520 a.C., ou textos provenientes de vários de autores e redigidos num arco de tempo relativamente longo (entre os séculos VI e V a.C.). Estamos, em qualquer caso, na época pós-exílica, nada fácil.

Os retornados estão desiludidos, pois a reconstrução é demorada e difícil: o país arruinado; as cidades destruídas e desabitadas; os campos incultos e abandonados. Os ricos oprimem os pobres e os humildes. Em termos religiosos, reina a incompreensão do plano de Deus, o ceticismo e a desconfiança, o culto meramente exterior e a idolatria. Desempenham papel fundamental o sacerdote Josué e o governador Zorobabel, responsáveis pela reconstrução do Templo.

Não se sabe dizer como é que os regressados a Jerusalém se relacionam, nesta fase, com os outros povos, pois não se conhece bem este período da História do Povo de Deus. Alguns textos da época mostram certa abertura à universalidade, sugerindo que o exílio, ao permitir o contacto com outras realidades culturais e religiosas, levou o Povo de Deus à tolerância para com as outras nações. Porém, outros textos manifestam um fechamento cada vez mais acentuado (além da experiência do exílio, a oposição dos povos vizinhos, quando os retornados tentam reconstruir Jerusalém aumenta a desconfiança em relação aos estrangeiros), que culminará na política xenófoba de Esdras e Neemias, na segunda metade do século V a.C. Os casamentos mistos entre judeus e estrangeiros são anulados e proibidos.

Não podemos situar exatamente, em termos cronológicos, o trecho em apreço, que aparece, provavelmente, nos primeiros decénios após o exílio, quando a comunidade discute se os eunucos e os estrangeiros devem integrar a comunidade do Povo de Deus. Em todo caso, o texto coloca-nos nesse ambiente – rico de desafios, mas cheio de contradições – da época pós-exílica.

À comunidade desiludida e dececionada o profeta anuncia que está para chegar um tempo novo, com a presença da salvação e da justiça na comunidade do Povo de Deus. Porém, a comunidade precisa de se preparar para receber o dom de Deus, guardando o direito e praticando a justiça (“mishpat” e “zedaqa”), as decisões justas dos tribunais, que garantem a reta ordem social.

Até aqui, a “promessa” não apresenta nada de novo. A “justiça” foi pregada e anunciada, vezes sem conta (com estas palavras ou com outras similares), por todos os profetas de Israel. A grande novidade aparece a seguir: a salvação de Deus não se destina apenas a Israel, mas também aos estrangeiros. Trata-se de uma espantosa revolução no universo religioso do Povo de Deus. Com efeito, para os autores do livro do Deuteronómio, os estrangeiros devem ser vencidos e destruídos, não podendo Israel jamais fazer qualquer pacto, nem aceitar qualquer aliança matrimonial com eles, mas destruir-lhes os altares, quebrar-lhes os monumentos, cortar-lhes os postes sagrados, queimar-lhes os ídolos no fogo. Se Israel não procedesse dessa forma e tolerasse os estrangeiros, a cólera de Javé inflamar-se-ia contra o Povo e exterminá-lo-ia rapidamente (cf Dt 7,2-5).

Agora, é o próprio Deus que oferece a salvação a todos os povos, incluindo os estrangeiros. O que é necessário aos estrangeiros – “os estrangeiros que desejam unir-se ao Senhor para O servirem, para amarem o seu nome e serem seus servos” – é guardarem o sábado, sem o profanarem e serem fiéis à Aliança. Serão membros de pleno direito do Povo de Deus. Participarão plenamente na vida litúrgica do Povo de Deus e o próprio Senhor os conduzirá ao Templo, onde oferecerão holocaustos e sacrifícios, como os israelitas. O Templo não será um condomínio fechado a que só Israel tem acesso, mas a “casa de oração para todos os povos”.

Esta perspetiva conheceu tal dificuldade em se firmar que, até na época neotestamentária, os estrangeiros que visitavam Jerusalém não podiam passar da esplanada exterior do Templo – o “átrio dos gentios” – e nunca podiam penetrar no “átrio dos israelitas”.

 

A 2.ª leitura (Rm 11,13-15.29-32) sugere que a misericórdia de Deus se derrama sobre todos, mesmo sobre os que rejeitam as suas propostas. Deus respeita as opções dos homens, mas não desiste de propor, em todos os momentos e a todos os seus filhos, oportunidades novas.

Israel, apesar de ser o Povo de eleito e o Povo da Promessa, recusou a salvação que Cristo veio oferecer. E Paulo confessava a sua dor e tristeza, ao ver o seu povo obstinado na recusa da vida nova de Deus. Paulo admitia, até, aceitar ser separado – ele próprio – de Cristo, se isso servisse para o Povo judeu aceitar a salvação que Deus não desiste de lhe oferecer. Contudo, mostrará que a questão não está encerrada, pois uma parte (um “resto”) de Israel aderiu a Jesus e entrou na comunidade do Reino (Paulo integra esse grupo); e o endurecimento de Israel está previsto na Escritura e insere-se, certamente, nos planos de Deus. De resto, a recusa de Israel fez com que o Evangelho fosse pregado mais cedo aos gentios. Deus escreve direito por linhas tortas.

Entretanto, Paulo, continuando o seu ministério entre os gentios, com a esperança de que os israelitas sintam ciúmes e acolham o dom de Deus, está convicto de que todo o Israel será salvo. Com efeito, está anunciado na Escritura e Deus permanece fiel às suas promessas. Por sua vez, os gentios não se devem sentir superiores aos israelitas. Israel foi chamado por Deus, desde os seus inícios, por chamamento irrevogável. Os gentios, que estavam longe de Deus, agora têm acesso à sua graça; e os Judeus, que se afastam dos dons de Deus, hão de alcançar a graça. Parece enquadrar-se tudo no projeto salvífico de Deus, que permitiu que todos sejam rebeldes, a fim de derramar sobre todos a sua misericórdia. E Israel, o Povo eleito, desde os seus inícios, não pode deixar de ser objeto especial da misericórdia de Deus.

2023.08.20 – Louro de Carvalho

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