quarta-feira, 9 de agosto de 2023

Um discurso papal relegado para o limbo político-económico

 

Refiro-me ao notável discurso político do Papa Francisco, a 2 de agosto, no Centro Cultural de Belém, em Lisboa, perante o Presidente da República, o governo, o corpo diplomático, outras autoridades e representantes da sociedade civil. 

Para muitos, é lícito que o Papa se pronuncie sobre matéria doutrinal e da moral católica, pois reconhecem-lhe esse dever e esse direito; depois, cada um pensa e faz como quer. Muitas pessoas e grupos alinham com ele, quando aborda questões como as atinentes ao ambiente, à proteção do planeta e ao futuro, quando prega a inclusão, o diálogo intergeracional e a fraternidade ou quando clama que a Igreja é para “todos, todos, todos”. É óbvio que se gosta de Francisco, pela empatia e pelo calor humano que transmite, a par com a debilidade que é subvertida pela determinação e pela capacidade de trabalho.

Porém, quando o discurso questiona a situação do Mundo, marcado por um modelo económico de desenvolvimento (economia que mata) enfeudado aos grandes interesses, à ambição bélica e à cultura do descarte, da destruição e da morte, a música é outra: quem não tem vergonha contesta; quem não concorda, mas quer ficar bem na fotografia, aplaude e esquece; e muitos, que até concordam, sentem que Francisco lhes está a roubar uma bandeira política que julgavam ser exclusivamente sua. Resta um escol, já bastante numeroso, constituído por pensantes, na sua maioria, jovens que aderem ao discurso total de Francisco – muitos deles católicos, mas também de outras religiões e até descrentes, mas cuja consciência os impele.

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Desta feita, saboreamos as citações de poetas, de prosadores e de artistas portugueses (mesmo de crença duvidosa e até nula) e os elogios a Lisboa e a Portugal, sem repararmos que partem da verificação da realidade que o orador assume para captar a benevolência do auditório, mas cujo escopo final é tirar consequências, ao nível da responsabilidade histórica dos referentes.

Há quem tenha anotado a crítica ao aborto e à eutanásia, mas sem a contextualizar no quadro mais vasto da cultura do descarte que assola a Humanidade, e alegando que outra coisa não era de esperar do líder máximo da Igreja Católica. É a normal tolerância da diferença!

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Vejamos alguns tópicos do discurso.       

Protocolarmente, agradeceu as palavras e o acolhimento do Presidente da República.  

Feliz por estar em Lisboa – cidade do encontro de vários povos e culturas e que, naqueles dias, se mostrava mais universal, tornando-se a capital do mundo (e a capital do futuro, porque os jovens são o futuro) – vincou o seu caráter multiétnico e multicultural, o que “revela os traços cosmopolitas de Portugal, que afunda as suas raízes no desejo de se abrir ao mundo e [de] explorá-lo, navegando rumo a novos e amplos horizontes”. Não posso, aqui, deixar de pensar na primeira edição do selo da Jornada Mundial da Juventude (JMJ), que o Vaticano retirou da circulação, mercê das críticas de nacionalismo e de pretensa utilização do Padrão dos Descobrimentos em que o Papa substituía o Infante na condução da caravela (não de Portugal, mas da Igreja). 

Citando Camões, considerou que, durante séculos, se acreditou que, no Cabo da Roca, estivessem “os confins do Mundo”, para admitir a legitimidade dessa crença, pois “este país confina com o oceano, que delimita os continentes”; para eleger o mar – o “mar sonoro, mar sem fundo, mar sem fim” (S. de Mello Breyner) – como o “apelo que não cessa de ecoar no ânimo de cada português”, e para verificar que, “à vista do oceano, os portugueses são levados a refletir sobre os imensos espaços da alma e sobre o sentido da vida no mundo”.

O lado positivista da vida já não nos leva a esta reflexão perante o mar. Não obstante, deixando-se “levar pela imagem do oceano”, o Santo Padre partilhou com o auditório português e do Mundo (estava o corpo diplomático: embaixadores e similares) algumas reflexões.

A vastidão do Oceano, como filho do Céu leva os mortais elevarem-se para o infinito; e, como filho da Terra que abraça, “convida a envolver de ternura todo o mundo habitado”. Não me digam que não subjaz a este segmento o apelo ao humanismo e à cultura da paz e da fraternidade.

Porém, o oceano une povos e países, terras e continentes, pelo que “Lisboa, cidade do oceano, lembra a importância do conjunto, a importância de conceber as fronteiras, não como limites que separam, mas como zonas de contacto”. Há, aqui, o apelo à união, pois, apesar de as grandes questões serem globais e de termos a experiência da ineficácia da resposta às mesmas, o Mundo, face a problemas comuns, mantém-se dividido ou insuficientemente unido, “incapaz de enfrentar” o que põe todos em crise. “As injustiças planetárias, as guerras, as crises climáticas e migratórias” correm mais do que a capacidade e a vontade de enfrentar, em conjunto, tais desafios.

E o Papa, a este propósito, atribui a Lisboa acrescida responsabilidade: a de “sugerir uma mudança de ritmo”. Com efeito, em 2007, foi assinado o Tratado de reforma da União Europeia (UE), declarando que “a União tem por objetivo promover a paz, os seus valores e o bem-estar dos seus povos” e que, “nas suas relações com o resto do mundo [...], contribui para a paz, a segurança, o desenvolvimento sustentável do planeta, a solidariedade e o respeito mútuo entre os povos, o comércio livre e equitativo, a erradicação da pobreza e a proteção dos direitos humanos”. Estas palavras são “marcos miliários no caminho da comunidade europeia, esculpidos na memória desta cidade”. É “o espírito do conjunto, animado pelo sonho europeu dum multilateralismo mais amplo do que o mero contexto ocidental”.

Diz o Papa que, segundo etimologia discutível, que o nome “Europa” deriva duma palavra que “indica a direção do ocidente”. E Lisboa, sendo “a capital mais ocidental da Europa continental”, lembra “a necessidade de abrir caminhos de encontro mais vastos, como aliás Portugal está a fazer, sobretudo com os países de outros continentes, irmanados pela mesma língua”. Por isso, Francisco espera que a JMJ seja, para o “velho continente” ou continente “ancião”, “um impulso de abertura universal”, que o torne “mais jovem”.

Porém, não é só Lisboa que tem a responsabilidade pelos desvios da UE, em relação às raízes e aos compromissos europeus, o que leva o orador preconizar que o Mundo tem necessidade da Europa verdadeira, do seu “papel de construtora de pontes e de pacificadora no Leste europeu, no Mediterrâneo, na África e no Médio Oriente”. Por isso, pode trazer, para o cenário internacional, a sua originalidade específica, delineada no século XX, quando do crisol dos conflitos mundiais fez saltar a centelha da reconciliação, concretizando “o sonho de se construir o amanhã, juntamente com o inimigo de ontem”: “abrir percursos de diálogo, percursos de inclusão”, através da “diplomacia da paz que extinga os conflitos e acalme as tensões, capaz de captar o mais débil sinal de distensão e de o ler por entre as linhas mais distorcidas da realidade”.

Considerando que, no oceano da História, navegamos “num momento tempestuoso” e se sente “a falta de rotas corajosas de paz”, o Pontífice olha a Europa com afeto, no espírito de diálogo que a carateriza, mas interpela-a: “Para onde navegas, se não ofereces percursos de paz, vias inovadoras para acabar com a guerra na Ucrânia e com tantos conflitos que ensanguentam o mundo?” É óbvio que a interpelação contraria o pensamento único construído à volta da exclusiva responsabilidade da Rússia pelo conflito. Daqui, o principal apagão!  

Como é óbvio, a Europa que deu cartas ao Mundo, tornou-se dependente e membro do Ocidente que a asfixia, pelo que o Papa alargou a interpelação: “Que rota estás a seguir, Ocidente? A tua tecnologia, que marcou o progresso e globalizou o Mundo, sozinha não basta; e muito menos bastam as armas mais sofisticadas, que não representam investimentos para o futuro, mas empobrecimento do verdadeiro capital humano que é a educação, a saúde, o estado social.”

Agora o apagão é mais hipócrita: todos juram paixão pela Educação, pela Saúde, pelo Estado Social”, mas gastam muito mais em equipamentos de guerra. E o meigo Francisco zurziu: “Em muitos lugares, investem-se, continuamente, os recursos em armas, e não no futuro dos filhos. […] O investimento que rende melhor é na fabricação de armas. Investe-se mais em armas do que no futuro dos nossos filhos.”

Porém, não desiste: “Sonho uma Europa, coração do Ocidente, que use o seu engenho para apagar focos de guerra e acender luzes de esperança; […] que saiba reencontrar o seu ânimo jovem, sonhando a grandeza do conjunto e indo além das necessidades imediatas; […] que inclua povos e pessoas com a sua própria cultura, sem correr atrás de teorias e colonizações ideológicas [ideia recorrente].” Enfim, sonha como os pais fundadores da UE, que “sonhavam em grande”.

Depois, frisando que o oceano, com a imensa vastidão de água, “recorda as origens da vida”, sustenta que, no mundo evoluído, se tornou prioritário “defender a vida humana, posta em risco por derivas utilitaristas, que a usam e descartam” (está aqui o nó do problema): a cultura do descarte da vida (que leva à cultura da morte). E o Papa fala das “crianças não-nascidas” e dos idosos abandonados a si mesmos, da “dificuldade de acolher, proteger, promover e integrar quem vem de longe e bate às nossas portas, no desamparo em que são deixadas muitas famílias com dificuldade para trazer ao mundo e fazer crescer os filhos”.

Por isso, interroga: “Para onde navegais, Europa e Ocidente, com o descarte dos idosos, os muros de arame farpado, as mortandades no mar e os berços vazios? […] Para onde ides se, perante o tormento de viver, vos limitais a oferecer remédios rápidos e errados como o fácil acesso à morte, solução cómoda que parece doce, mas na realidade é mais amarga que as águas do mar?” E pensa “em tantas leis sofisticadas sobre a eutanásia”. Porém, não exige a mudança das leis, mas a consciencialização das pessoas para os problemas e para as soluções à luz da ética, que se estende à atitude de abandono, de negligência e de morte, pela fome e pela guerra.

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Após estas duras interpelações, Francisco olha para Lisboa, abraçada pelo oceano, como cidade da esperança, que nos oferece “motivos para esperar”. Agradece o trabalho e o empenho de Portugal para acolher esta grande “maré de jovens que se espraia sobre esta cidade acolhedora”, num evento “tão complexo de gerir, mas fecundo de esperança” (“ao lado dos jovens, não se envelhece”). São “jovens provenientes de todo o Mundo que cultivam anseios de unidade, paz e fraternidade”, e que nos desafiam a “realizar os seus sonhos bons”. Não gritam raiva, mas partilham “a esperança do Evangelho, a esperança da vida”. E, ao invés do clima de protesto e de insatisfação, que é “terreno fértil para populismos e conspirações”, a JMJ “é ocasião para construir, juntos” e “reaviva o desejo de criar coisas novas, fazer-se ao largo e navegar juntos rumo ao futuro”.

E, citando Fernando Pessoa, dizendo que “Navegar é preciso; viver não é preciso […]; o que é necessário é criar”, fixou que “navegar é preciso”, criativamente, mas juntos, e imaginou três estaleiros da esperança, onde podemos trabalhar, unidos: o ambiente, o futuro, a fraternidade.

Do ambiente, disse que “Portugal partilha com a Europa muitos esforços exemplares na defesa da criação”. Todavia, o problema global é muito grave: os oceanos aquecem e “sobe à superfície a torpeza com que poluímos a nossa casa comum”. Transformamos “as grandes reservas de vida em lixeiras de plástico”. Ora, “o oceano lembra-nos que a existência humana é chamada a viver de harmonia com um ambiente maior do que nós” e que “deve ser guardado com cuidado, tendo em conta as gerações mais novas”, pois não acreditamos nos jovens, “se não lhes dermos um espaço sadio para construírem o seu futuro”.

“O futuro são os jovens”. Porém, muitos fatores os desanimam: a falta de trabalho, os ritmos frenéticos em que se veem imersos, o aumento do custo de vida, a dificuldade de encontrar casa e o medo de constituir família e de trazer filhos ao mundo. No Ocidente, “assiste-se a uma fase descendente na curva demográfica”, parecendo o progresso ser uma questão atinente “ao desenvolvimento técnico e ao conforto dos indivíduos”. Porém, o futuro pede que se contrarie “a queda da natalidade e o declínio da vontade de viver”.

E deixa a lição da boa política: “pode gerar esperança”, pois “não é chamada a conservar o poder, mas a dar às pessoas a possibilidade de esperar”, a “corrigir os desequilíbrios económicos dum mercado que produz riquezas, mas não as distribui, empobrecendo de recursos e de certezas os ânimos”; é chamada “a voltar a descobrir-se como geradora de vida e de cuidado da criação”, a investir no futuro, nas famílias e nos filhos, a promover alianças intergeracionais, onde não se apague o passado mas se favoreçam os laços entre jovens e idosos”.

É óbvio que uma ótica ultraliberal e hedonista não digere este tipo de discurso. Portanto, cala-o.

Evocando a saudade portuguesa, que exprime nostalgia, o Papa quer a retoma do diálogo entre jovens e idosos. E considera: “Os jovens devem encontrar as suas próprias raízes nos idosos. […] É importante a educação, que não pode limitar-se a fornecer noções técnicas para se progredir economicamente, mas destina-se a introduzir numa História, transmitir uma tradição, valorizar a necessidade religiosa do homem e favorecer a amizade social.”

Por último, vem o estaleiro da fraternidade, que os cristãos aprendem do Senhor Jesus Cristo. Se, em muitas partes de Portugal, está vivo o sentido de vizinhança e da solidariedade, “no contexto geral duma globalização que nos aproxima, mas não nos dá uma proximidade fraterna, somos todos chamados a cultivar o sentido da comunidade, começando por ir ter com quem vive ao nosso lado, pois, como escreveu Saramago, “o que dá verdadeiro sentido ao encontro é a busca; e é preciso andar muito, para se alcançar o que está perto”. E o Papa enalteceu a beleza de “voltar[mos] a descobrir-nos irmãos e irmãs”, de “trabalhar pelo bem comum, deixando para trás contrastes e diferenças de perspetiva” e, derrubando, como os jovens, “as rígidas divisórias de pertença erguidas em nome de opiniões e de crenças diversas”.

Evocando o exemplo de muitos jovens que cultivam o desejo de se fazerem próximo dos outros, mencionou a iniciativa ‘Missão País’, “que leva milhares de jovens a viver, no espírito do Evangelho, experiências de solidariedade missionária em zonas periféricas”, “indo ao encontro de muitos idosos sozinhos”. Agradeceu e encorajou a tantos que, em Portugal, “se preocupam com os outros, nomeadamente a Igreja, e que fazem tanto bem mesmo longe dos holofotes”.

Por fim, exortou a que nos sintamos “chamados, todos juntos fraternalmente, a dar esperança ao Mundo em que vivemos”, bem como “a este magnífico país”, que Deus abençoe.

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Queria ver o discurso assumido todo e por todos, sem apagões, nem instrumentalizações.

2023.08.09 – Louro de carvalho

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