domingo, 27 de agosto de 2023

Jesus convoca a Igreja em volta de Pedro, para ela servir, não mandar

 

No cerne da liturgia do 21.º domingo do Tempo Comum, no Ano A, está o tema fundamental em torno do qual se estrutura e constrói a vida cristã: a relação Cristo-Igreja.

Não vejo aqui dois temas, mas um tema único, visto que a relação íntima e operativa torna o binómio Cristo/Igreja, uma só realidade. Contudo, é de advertir, antes de mais, que Foi Jesus Cristo que instituiu a Igreja e não foi esta que inventou Cristo. Por isso, a referência última dos cristãos é Jesus de Nazaré, o Cristo, o Filho do Deus vivo, e não a Igreja, sendo esta que se amolda a Cristo, não vice-versa.

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O trecho do Evangelho (Mt 16,13-20) proclamado faz a pedagogia da fé cristológica e lança, pela voz de Jesus, o ser da Igreja e a sua estruturação à volta de Pedro, vincando que a Igreja é fruto da fé em Cristo.

Situamo-nos no Norte da Galileia, perto das nascentes do rio Jordão, em Cesareia de Filipe (zona da atual Bânias), cidade construída por Herodes Filipe (filho de Herodes, o Grande) no ano 2 ou 3 a.C., em honra do imperador Augusto. O episódio em causa ocupa lugar central no Evangelho de Mateus, constituindo um momento de viragem, por se desenhar, no horizonte de Jesus, o destino de cruz. Após o êxito inicial do seu ministério, Jesus sente a oposição dos líderes e algum desinteresse da parte do Povo. A pregação do Reino só é acolhida pelo pequeno grupo dos discípulos. E era preciso testar a solidez do grupo, que vivia com Jesus, O escutava, mas tinha dificuldade em entendê-Lo no essencial, pois o conceito de Messias que os discípulos tinham na cabeça era o do rei que distribuía lugares de mando e reinava a ferro e fogo.   

Jesus começa por interrogar os discípulos sobre o que dizem as pessoas que Ele é, para chegar à pergunta sob o que pensam eles do seu Mestre. Não visava medir o grau de popularidade, mas esclarecer os discípulos e confirmá-los na escolha do seguimento de Jesus e na aposta no Reino.

Mateus remodelou e ampliou o texto de Marcos, acrescentando a afirmação de Pedro sobre Jesus, “Tu és o Messias” (Sý eî ho Khistós), o apositivo, “o Filho do Deus vivo” (ho hyiòs toû Theoû toû Zôntoûs), bem como o discurso sobre a Igreja firmada sobre Pedro.  

O trecho em apreço divide-se em duas partes. A primeira (Mt 16,13-16) centra-se em Jesus e na definição da sua identidade; a segunda (Mt 16,17-20), não se despregando de Jesus, realça a Igreja, que Jesus convoca à volta de Pedro.

Na primeira parte, percebemos que a opinião dos “homens” vê Jesus na sequência do passado (João Batista, Elias, Jeremias ou algum dos profetas); não capta a condição única, a novidade de Jesus. Só admite que Jesus é um homem convocado por Deus e enviado ao Mundo com uma missão – tal como os profetas do Antigo Testamento (AT). Na sua ótica, Jesus é um homem bom, justo e generoso, que escutou o apelo de Deus e que Se esforçou por ser um sinal vivo de Deus. Ora, isso não é o suficiente: significa que os homens não entenderam a profundidade do mistério de Jesus. E a opinião dos discípulos, que viviam com Jesus, não ia muito além disto. Não obstante, Pedro, porta-voz da comunidade dos discípulos, adianta-se e resume o sentir da comunidade do Reino na expressão: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo”.

Nestes dois títulos resume-se a fé da Igreja de Mateus e a catequese aí feita sobre Jesus. Dizer que Jesus é “o Cristo” (Messias) significa aceitá-Lo como o libertador que Israel esperava, enviado por Deus para libertar o Povo e para lhe oferecer a salvação. Todavia, para os membros da comunidade do Reino, Jesus não é só o Messias: é também o “Filho de Deus”.  

No AT, a expressão “Filho de Deus” é aplicada aos anjos, aos vários membros do Povo de Deus e ao Messias/rei da linhagem de David. Designa a condição de quem tem particular relação com Deus, a quem Deus elegeu e a quem Deus confiou uma missão. Definir Jesus como o Filho de Deus é dizer que Ele recebe vida de Deus, que vive em total comunhão com Deus, que desenvolve com Deus uma relação de profunda intimidade e que Deus Lhe confiou uma missão única para a salvação dos homens. Significa reconhecer a profunda unidade e intimidade entre Jesus e o Pai, de modo que Jesus conhece e realiza o desígnio do Pai entre os homens. E os discípulos são convidados a entender, desta forma, o mistério de Jesus.

Na segunda parte, Jesus responde à confissão de fé da comunidade dos discípulos, proferida pela voz de Pedro. Felicita Pedro (isto é, a comunidade) pela clareza da fé que o anima. Porém, adverte que a fé não é mérito de Pedro, mas dom de Deus (“não foram a carne e o sangue que to revelaram, mas o meu Pai que está nos céus”). Pedro (os discípulos) pertence à categoria dos pobres, dos simples, abertos à novidade de Deus, que têm o coração disponível para acolher o dom de Deus, em contraposição com os líderes – fariseus, doutores da Lei, escribas – instalados nas suas seguranças e preconceitos, incapazes de abrir o coração aos desafios de Deus.

O facto de Jesus dizer a Pedro que ele é a rocha (“Pedro” é a tradução grega do hebraico “Kephâ” – “rocha”) sobre a qual é firmada a Igreja de Jesus deve ser visto no contexto da confissão de fé precedente. Portanto, Mateus afirma que a base firme e inamovível sobre a qual assenta a “Ekklesía” de Jesus é a fé que Pedro e a comunidade dos discípulos professam: a fé em Jesus como o Messias, o Filho do Deus vivo.

Para tanto, Jesus promete a Pedro “as chaves do Reino dos céus” e o poder de “ligar e desligar”. A entrega das chaves equivale à nomeação do “administrador do palácio” de que fala a primeira leitura: o “administrador do palácio”, entre outras coisas, administrava os bens do soberano, fixava o horário da abertura e do fechamento das portas do palácio e definia quais os visitantes a introduzir junto do soberano. E a expressão “atar e desatar” designava, entre os Judeus, o poder de interpretar a Lei com autoridade, declarando o que era permitido, ou não, para reintroduzir alguém na comunidade do Povo de Deus. Assim, Jesus nomeia Pedro para administrador e supervisor da Igreja, com autoridade para interpretar as palavras de Jesus, para adaptar os ensinamentos de Jesus a novas necessidades e situações e para acolher, ou não, novos membros na comunidade dos discípulos do Reino. Todos são chamados por Deus a integrar a comunidade do Reino e devem ser nela acolhidos e abraçados; mas os que rejeitam a pessoa de Jesus e o Reino está a autoexcluir-se. Porém, se Pedro usar a chave só para fechar, se se esquece de abrir, transforma a Igreja numa seita, num gueto.

A chave é para fechar a porta, não para impedir as pessoas de entrarem, mas para as proteger (já dentro) dos inimigos, das intempéries, das trevas da noite. A chave é a para abrir portas: para acolher quem chega e para não impedir de sair quem o queira fazer.

As portas do inferno não prevalecerão. É verdade, mas não é só porque a Igreja é forte, mas porque Jesus está nela e com ela e porque não se deixa vencer em ternura, em acolhimento, em serviço, em fraternidade. Mal andam os que fazem gala nas absolvições que negam, nas excomunhões que lançam, nas exclusões a que procedem, nos oportunismos com que viram a Igreja a seu favor!

Não se trata de um poder absoluto confiado a Pedro. Aliás, tem-se visto a rocha de Pedro como a pedra onde batem as ondas do mar bravo (o Mundo com seus erros) ou a rocha dura contra a qual investem os inimigos, quando ela tem a outra faceta: a ela aderem as lapas e os musgos; nela, feita gruta de acolhimento e de proteção, repousam os aflitos, os cansados, os desanimados; nela convivem os irmãos e companheiros; nela retemperam forças para retoma da caminhada.       

Pedro é, aqui, um discípulo que dá voz a todos os que acreditam em Jesus e representa a comunidade dos discípulos. Com efeito, o poder de “ligar e desligar”, por exemplo, aparece confiado à totalidade da comunidade, não a Pedro em exclusivo (cf Mt 18,18), no contexto da correção fraterna, sendo que todos devem assumir a responsabilidade pela sorte dos irmãos.  

Por isso, o mais óbvio é ver em Pedro o protótipo do discípulo; nele, está representada e firmada a comunidade que se reúne à volta de Jesus e que proclama a fé em Jesus como o “Messias”, o “Filho de Deus”. É a esta comunidade, representada e presidida por Pedro, que Jesus confia as chaves do Reino e o poder de acolher ou de declarar a autoexclusão. Isso não impede que Pedro fosse uma figura de referência para os primeiros cristãos e que desempenhasse papel de primeiro plano na animação da Igreja nascente.

Aquele(s)que detém(êm) “as chaves” não pode(m) usar a autoridade para concretizar interesses pessoais e para impedir aos irmãos o acesso aos bens eternos, mas para exercer o serviço como o pai que procura o bem dos filhos, com solicitude, com amor e com justiça.

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A primeira leitura (Is 22,19-23) prepara-nos para entendermos o poder das chaves.

Isaías nasceu por de 760 a.C., provavelmente em Jerusalém. Bastante jovem, sentiu-se chamado por Deus para ser profeta (“no ano da morte do rei Ozias”, por volta de 740-739 a.C.), pelo que desempenhará essa missão por longo espaço de tempo (os últimos oráculos são de finais do século VIII ou princípios do século VII a.C.), constituindo a consciência crítica dos reis que, nessa fase, presidiram aos destinos do Povo de Deus.

De família nobre, Isaías, homem culto e enérgico, frequenta os círculos de poder, é dos notáveis do reino de Judá e participa nas decisões relativas à condução do reino, falando com autoridade aos altos funcionários e aos reis. Porém, não apoia as classes altas: os seus maiores ataques são dirigidos aos grupos dominantes: autoridades, juízes, latifundiários, políticos, mulheres da classe alta que vivem em luxo escandaloso. Defende, com paixão, os oprimidos, os órfãos, as viúvas, o povo explorado e desencaminhado pelos governantes. E convida instantemente povo à conversão, para que se volte para Javé, respeite os compromissos assumidos, reaprenda a viver no âmbito da Aliança e ponha, de novo, Deus e os mandamentos no centro da vida.

O oráculo de hoje leva-nos à época do rei Ezequias. Em 714 a.C., Ezequias atinge a maioridade e toma conta dos destinos de Judá. Com o desejo de reforma religiosa e de independência política, revela propensão para alianças políticas contra os assírios (que, desde o reinado de Acaz, mantêm Judá sob a sua autoridade). Em resposta, Senaquerib volta-se contra Judá e devasta-a. Em 701 a.C., Jerusalém é cercada pelos assírios e Ezequias tem de aceitar uma submissão ainda mais onerosa do que a anterior.

Contudo, o episódio em causa não se refere aos grandes acontecimentos políticos em que Judá se vê envolvido. Refere-se, antes, a um episódio doméstico da vida do palácio. Shebna e Elyaqîm são altos funcionários de Ezequias, que o Segundo Livro dos Reis cita a propósito de um episódio relacionado com a invasão de Senaquerib.

O oráculo dirige-se a Shebna, administrador do palácio. Anuncia-lhe a expulsão do cargo e a substituição por Elyaqîm, pois Shebna talhou, para si, um sepulcro no alto e cavou na rocha um mausoléu. E foi condenado, ou porque isto era sinal de orgulho pessoal, ou porque terá utilizado o dinheiro do povo ou despendido dinheiro em futilidades, quando o povo mais precisava.

Shebna, substituído nas suas funções, será despojado das insígnias do seu poder (a túnica, o cinto, a chave do palácio), que serão atribuídas a Elyaqîm. E Elyaqîm receberá, o “poder das chaves” do palácio. O mordomo do palácio, entre outras coisas, conservava as chaves do palácio, administrava os bens do soberano, fixava a abertura e o fechamento das portas e definia quais os visitantes a introduzir junto do soberano.

Isaías deposita grande esperança em Elyaqîm e na forma como ele desempenhará funções. A expressão do profeta – “ele será um pai para os habitantes de Jerusalém e para a casa de Judá” – indica que Elyaqîm exercerá o serviço da autoridade com solicitude, com amor, com justiça. A referência à estaca (“fixá-lo-ei como uma estaca num lugar firme”) revela que, na ótica de Isaías, Elyaqîm desempenhará as suas funções com grande firmeza.

Esta história privada – de corrupção e de venalidade – é-nos dada como Palavra de Deus, porque antecipa o passo evangélico hoje proclamado, meditado e, desejavelmente, assumido. Prepara-nos para entendermos melhor este Evangelho . Define em que consiste o verdadeiro serviço “das chaves”, o serviço da autoridade: ser um pai para aqueles sobre quem se tem responsabilidade e procurar o bem de todos com solicitude, com amor, com justiça.

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A segunda leitura (Rm 11,33-36) convida a contemplar a riqueza, a sabedoria e a ciência de Deus que, de forma misteriosa e até desconcertante, realiza o seu desígnio de salvação. Ao homem resta entregar-se, confiadamente, nas mãos de Deus e deixar que o seu espanto e adoração se transformem em hino de amor e de louvor ao Deus salvador e libertador.

Após refletir sobre o desígnio salvífico de Deus e de ter tentado perceber o lugar de Israel nesse desígnio, Paulo, abismado, contempla a riqueza, a sabedoria e a ciência de Deus, três qualidades de Deus que induzem as exclamações e interrogações que preenchem o resto do hino. Ou seja, o apóstolo reconhece que o desígnio de Deus é misterioso e ultrapassa infinitamente a capacidade de compreensão e de entendimento do homem. Deus é sempre mais do que aquilo que o homem possa imaginar: mais sábio, mais poderoso, mais misericordioso.

Ao homem cabe reconhecer a sua pequenez, os seus limites, a sua finitude, a sua incapacidade de compreender totalmente o Deus desconcertante e incompreensível. E, mesmo quando as coisas parecem não fazer sentido (porque a lógica de Deus é diferente da dos homens), ao homem resta atirar-se, confiadamente, para os braços de Deus, acolher a sua Palavra e procurar seguir, com simplicidade e amor, os seus caminhos. O verdadeiro crente é aquele que, mesmo sem entender o alcance do desígnio de Deus, se entrega nas suas mãos e deixa que o seu espanto e adoração se transformem num hino de louvor: “Glória a Deus para sempre. Ámen”.

É ao serviço do desígnio insondável do Pai misericordioso que Jesus vem ao Mundo, de que tira o pecado, e congrega a Igreja sob Pedro, para que anuncie o Reino e para ele encaminhe toda a Humanidade, a fim de que a alegria de Deus e a alegria dos homens sejam uníssonas, numa só comunhão de vida.

2023.08.27 – Louro de Carvalho

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