terça-feira, 8 de agosto de 2023

Tratado da Carta da Energia corre o risco de extinção

 

Está em marcha a retirada “concertada”, a nível europeu, do Tratado da Carta da Energia (TCE), assinado, em dezembro de 1994, em Lisboa, para proteção dos investimentos na área da energia – renovável e não renovável – para garantia do direito das empresas de processarem os estados signatários, quando adotarem políticas que ponham em causa a normal operação destas empresas e os respetivos investimentos.

O documento encontra-se desalinhado dos objetivos de transição para uma Europa mais verde e organizações ambientais, como a associação ambientalista Zero e a Troca (organização portuguesa por um comércio internacional justo), têm apelado à sua denúncia por parte dos 27 estados-membros da União Europeia (UE), aduzindo que o TCE protege cerca de 344 mil milhões de euros de investimentos em combustíveis fósseis cujas emissões são muito mais do que as possíveis para manter o aquecimento do planeta abaixo de 1,5°C (1,5 graus Celsius).

Um a um, os 27 estados-membros da UE têm mostrado vontade política de abandonar o TCE, pois as propostas de alteração às alíneas mais críticas, em negociação durante cinco anos, entre os 53 signatários, não foram suficientes para convencer vários elementos do bloco europeu a ficar, o que pode significar a morte desta iniciativa, de acordo com Agostinho Pereira de Miranda, sócio e fundador da Miranda & Associados e membro da equipa jurídica que aconselha o Secretariado da Carta da Energia, que opera em Bruxelas.

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Tudo começou no início dos anos 90, como fim da Guerra Fria, que ofereceu uma oportunidade sem precedentes para superar as divisões económicas entre as nações de ambos os lados da chamada Cortina de Ferro, sendo o setor de energia a aposta mais interessante para a cooperação benéfica mutuamente codependente, devido à crescente demanda de energia da Europa, à vasta disponibilidade de recursos nos países pós-soviéticos e à reconhecida de se estabelecer uma base comumente aceite para a cooperação energética entre os estados da Euro-Ásia.

Assim, foi assinada, em Haia, a 17 de dezembro de 1991, declaração original da Carta Europeia da Energia, uma declaração política de princípios para a cooperação energética internacional em comércio, em trânsito e em investimento, juntamente com a intenção de negociar um Tratado juridicamente vinculativo, marcando o início do desenvolvimento do TCE. Um dos óbices era encontrar uma linguagem que assegurasse a soberania nacional sobre os recursos naturais e que consagrasse o princípio da cooperação internacional, para permitir o acesso externo a tais recursos. E os negociadores garantiram à Áustria e à Suíça que não arcariam com um ónus de trânsito indevido para recursos energéticos.

Em dezembro de 1994, foi assinado o TCE, com o protocolo de eficiência energética e de aspetos ambientais conexos, que entraram em vigor em abril de 1998. Foi, ainda, feita uma emenda às disposições conexas com o comércio, que reflete a mudança dos processos do Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio para os da Organização Mundial do Comércio (OMC).

Seguiu-se a Carta Internacional de Energia, uma declaração política não vinculativa que sustenta princípios-chave de cooperação internacional em energia. Reflete as mudanças na energia que surgiram desde o desenvolvimento do TCE original. A Carta Internacional da Energia foi assinada a 20 de maio de 2015, por 72 países mais a UE, a Comunidade Europeia da Energia Atómica (Euratom) e a Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO), numa conferência ministerial organizada pelo governo dos Países Baixos.

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A 7 de julho, a Comissão Europeia propôs que os 27 estados-membros denunciassem o CTE, de forma “coordenada e ordenada”, por considerar que o documento se manteve “praticamente inalterado, desde que foi acordado”, e por “já não ser compatível com a ambição reforçada da UE em matéria de clima, no âmbito do Pacto Ecológico Europeu e do Acordo de Paris”. Além disso, decidiu retirar a anterior proposta de modernização do documento, já “que não reuniu a maioria necessária entre os estados-membros”. A proposta previa, entre outros aspetos, o termo da proteção do investimento estrangeiro em combustíveis fósseis. A retirada desta proposta é tida por Agostinho Pereira de Miranda como o “aspeto mais negativo” do processo: “O Conselho [da União Europeia] entendeu que a versão modernizada do TCE não vai suficientemente longe, e eu antecipo que essa venha a ser a posição de quase todos os Estados-Membros”, defendeu.

Dez dias depois de a Comissão da UE ter anunciado a proposta, Duarte Cordeiro, ministro do Ambiente e da Ação Climática, anunciou, na Assembleia da República (AR), que Portugal já iniciara o processo de denúncia. E Filipe de Vasconcelos Fernandes, especialista em economia da energia, considerou que a resolução de litígios “terá sido uma das principais razões subjacentes à decisão do governo português, de iniciar a respetiva saída”, pois permite “o recurso a arbitragem, sem qualquer discriminação do vetor energético em causa”. “Algumas entidades, especialmente ONG [organizações não governamentais] ligadas à proteção do ambiente, reivindicavam, há muito, que tal levaria a um recurso predominante (e consequente proteção) às entidades do segmento não renovável, com o consequente prejuízo para a transição energética”, explicou.

Também países como Espanha, os Países Baixos, a Polónia, a Alemanha e a França já tinham recusado, unilateralmente, manter-se como signatários, decisão que terá de ser formalmente notificada a Portugal, por ser o depositário do TCE.

O que está em causa é se a UE se retira de forma coordenada – única opção razoável – ou se permite que os estados que queiram permanecer o façam. Segundo a Reuters, é possível que países como o Chipre, a Hungria e a Eslováquia rejeitem a saída concertada e optem por ficar na versão atualizada. Ainda assim, com a maioria da UE de saída, o TCE, tido como “o grande motor da modernização”,  não terá futuro, pois o Secretariado não terá financiamento.

Sem os 27, restariam 26 signatários do TCE, que, segundo a Zero e a Troca, estão motivados pela perceção de que o tratado ajuda a atrair investimento no setor energético. “Trata-se, porém, de um argumento infundado, já que estudos demonstram que não há evidência de que o TCE e tratados semelhantes influenciem os fluxos de investimento”, vincaram.

O TCE é um acordo internacional, multilateral e juridicamente vinculativo, de promoção e proteção de investimentos no setor da energia, abrangendo todos os aspetos das atividades comerciais, incluindo comércio, transporte, investimentos e eficiência energética.

Assinado na capital portuguesa, apos fim da Guerra Fria, para reforçar a relação entre os setores energéticos dos estados do Bloco de Leste – com amplos recursos energéticos e a necessitar de investimento – e os da Europa Ocidental, que precisavam de diversificar as suas fontes de energia em mercados europeus e mundiais mais amplos, hoje não evidencia, segundo alguns analistas, razões para a sua legitimidade, em termos de facilitação do investimento ou da redução do custo da energia. Porém, outros pensam que Portugal beneficiou e continua a beneficiar das disposições favoráveis para os investidores portugueses que investiram em países que são partes do TCE, estendendo-se os benefícios aos programas de eficiência energética, de proteção do ambiente e a outros, “regularmente apoiados pelo Secretariado do TCE.

Por outro lado, Portugal pode ser prejudicado, quando o investidor de país que não é membro do TCE constitui uma sociedade veículo num país que o é, com vista a beneficiar das garantias que o TCE oferece aos investimentos provindos deste último. É o que terá sucedido com a venda de participações do Estado da EDP e da REN a empresas chinesas.

Até 1 de maio de 2023, o Secretariado tinha em curso 158 casos de arbitragem referentes a investimento, instituídos ao abrigo do TCE, 59% dos quais se reportam a investimentos no setor das energias renováveis e 34% nas energias fósseis. Essa poderá ser “a razão principal que tem levado à denúncia do TCE por diferentes países.

O Estado português não tem histórico de disputas, havendo apenas um caso em curso que envolve uma empresa portuguesa, a Cavalum SGPS, que, em 2015, avançou com uma arbitragem contra Espanha (que tem em curso mais de 50 disputas), reclamando 59 milhões de euros e contestando a intervenção do país sobre as receitas das empresas de energias renováveis. Todavia,  isso não quer dizer que Portugal não tenha estado prestes a acumular a sua lista de casos. Por exemplo, quando a Troika levou Portugal a cortar os subsídios às renováveis em 2012, ficou sujeito a processamento por via do TCE, como sucedeu em Espanha. Tal não aconteceu, porque Portugal terá preferido negociar sigilosamente e acordado com as produtoras energéticas.

Embora já tenha sido anunciada, uma saída formal do TCE não será fácil, nem imediata. Aliás, nos termos do documento, a denúncia só ficará concluída um ano mais tarde. Mesmo assim, os signatários que decidirem sair ficam expostos à cláusula de caducidade chamada “sunset clause”, que tem sido objeto de críticas, desde há muito. Com efeito, o artigo 47.º estipula que, “se um estado sair, as disposições do tratado continuarão a aplicar-se aos investimentos já em curso, durante um período de 20 anos a partir dessa data”.

Enquanto alguns analistas sustentam que a cláusula draconiana “viola os princípios e regras do direito internacional dos tratados”, nomeadamente das convenções de Viena, outros apontam que surgiu na ótica de proteção da confiança jurídica à data da realização dos investimentos.

Segundo os dados do TCE, sunset clause foi ativada na Rússia e em Itália, depois da denúncia do tratado, a 30 de julho de 2009, e a 31 de dezembro de 2014, respetivamente.

Para proteger os estados-membros do risco de disputas, face a eventual retirada concertada, a Comissão Europeia sugeriu que, no âmbito desta cláusula, “sejam limitados” os futuros processos judiciais e que seja redigido um acordo entre os países, “já que 70% dos investimentos energéticos na UE são feitos por empresas oriundas da própria UE”, embora a cláusula de caducidade nunca se tenha aplicado nas relações intra-UE. “Esta é a opção menos dispendiosa e a única que permite à UE ser livre e coerente nas suas políticas em matéria de clima e [de] energia”, reforçam Susana Militão e Ana Moreno, da Zero e da Troca.

Enquanto Filipe de Vasconcelos Fernandes, sem margens para dúvidas, sustenta que é “altamente improvável” que a retirada do TCE possa contribuir para uma crise energética na UE, à semelhança daquela vivida em 2022, desencadeada pela Guerra na Ucrânia, as representantes da Zero e da Troca, defendem que o abandono do tratado permitirá aos ex-signatários “conceber e ajustar as suas políticas energéticas às suas necessidades e políticas climáticas”, sem terem de negociar as suas decisões com investidores estrangeiros e sem temerem retaliações.

Todavia, a retirada europeia do TCE contribuirá para alguma instabilidade nos círculos dos investidores, especialmente financeiros, vindos de países que dele fazem parte. Haverá, certamente, nova crise energética, no curto prazo (um a dois anos). Porém, as razões principais serão mais geopolíticas do que financeiras ou económicas.

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Os países estão num dilema: os acordos sobre a ação climática implicam o quase abandono dos combustíveis fósseis e a aposta nas energias renováveis; porém, as guerras, o tempo e os custos das alternativas energéticas impõem a necessidade de recurso intensivo aos combustíveis fósseis, dificultando o ritmo da descarbonização e, mesmo, impedindo-a. Assim, ou acabam as guerras e se topam, a breve trecho, alternativas energéticas e de equipamentos ou o ambiente tem de esperar. Por onde anda a vontade política de sustentabilidade do planeta e de promoção do bem comum?

2023.08.08 – Louro de Carvalho

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