quarta-feira, 23 de agosto de 2023

Dos antigos imóveis das Forças Armadas ainda não se fizeram casas

 

A comunicação social dá conta, nestes dias, de que ainda não se concretizou nenhum dos 1379 novos fogos para habitação acessível, a instalar em oito imóveis militares sem uso, em Lisboa, no Porto e em Oeiras, passados dois anos.

Através de protocolo de 30 de junho de 2021, o então ministro da Defesa Nacional, João Gomes Cravinho, cedeu ao então ministro das Infraestruturas e da Habitação, Pedro Nuno Santos, oito imóveis militares para serem integrados no Programa de Arrendamento Acessível (PAA), que se previa executado até 2026. E, a 23 de dezembro de 2021, foi publicado um despacho conjunto do Ministério das Finanças (MF) e do Ministério da Defesa Nacional (MDN), que possibilita, no âmbito da Lei das Infraestruturas Militares (LIM), a constituição de direitos de superfície em oito imóveis da Defesa Nacional (DN), por um período de 75 anos, que não se encontram atualmente a ser utilizados pelas Forças Armadas (FA).

Tais imóveis eram a Quinta da Alfarrobeira (365 fogos), a Cerca do Convento da Estrela – Ala Sul (107), o edifício do antigo Hospital Militar da Estrela (84), localizados em Lisboa; as antigas instalações utilizadas pela Manutenção Militar e a Oficina Geral de Fardamento e Equipamento (67) na avenida da Boavista, o edifício na Avenida de França (36), o Trem do Ouro e a Casa do Lordelo do Ouro (90), localizados na rua do Ouro, no Porto; e a antiga Estação Radionaval de Algés, em Oeiras (630).

Com o referido protocolo, que levou também a assinatura do então secretário de Estado do Tesouro, Miguel Cruz, o governo anunciava que as FA receberiam 110 milhões de euros, para investimento nas suas infraestruturas, um dos modos de consecução de receitas assumido pela nova LIM. Entretanto, o plano conheceu uma baixa significativa: a Câmara Municipal de Lisboa (CML), que mudou de liderança em 2021, desistiu de participar no mais importante dos projetos, o da Quinta da Alfarrobeira. E, passados dois anos, as FA (os três Ramos: Exército, Marinha e Força Aérea) apenas receberam 15,4 milhões de euros dos 110 milhões da acordada cedência do direito de superfície, por 75 anos.

A agravar, Carlos Moedas, tendo aceitado que a CML fosse parceira do plano no mais importante e valioso imóvel, a Quinta da Alfarrobeira, desistiu da operação.

A ideia deste negócio, nascida do ex-secretário de Estado da Defesa, Jorge Seguro Sanches, tinha como parceiros preferenciais do aproveitamento e da rentabilização destes imóveis as entidades públicas, nomeadamente os municípios, a favor das quais, preferencialmente, se entendia como  interessante a constituição de direitos de superfície, com duração limitada, devendo os imóveis regressar ao património da DN, após esse período.

Seguro Sanches defendia este modelo de que não resulta perda vitalícia património, mas com o qual se adquire uma  rentabilização programada, permitindo que se financie, com a receita, o necessário investimento para conservação, manutenção, segurança, modernização e edificação de outras infraestruturas do Estado-Maior-General das Forças Armadas (EMGFA) e dos Ramos. Acreditava que a solução era boa, pois mantinha o património na esfera da DN e, ao mesmo tempo, permitia “a construção naqueles três concelhos, prosseguindo o país o desígnio de potenciar a habitação em concelhos mais populosos e com preços mais adequados aos rendimentos das famílias”. Assim, pela primeira vez, seria possível às FA planear e programar, a médio prazo, os investimentos nas suas infraestruturas, com a certeza e a garantia de uma receita faseada e anual, para afetar a projetos atinentes a essas infraestruturas.

Todavia o que parecia um presente para Pedro Nuno Santos e para as FA não teve o ambicionado desenvolvimento. Até parece estar em banho-maria, desde que Seguro Sanches deixou o governo.

Sobre o número de fogos já disponíveis para arrendamento acessível, a porta-voz da ministra da Habitação, Marina Gonçalves, diz que “os imóveis estão em diferentes estados na operação de conversão em arrendamento acessível, faltando apenas a integração de um dos imóveis, cujo registo está em curso, por parte da Direção-Geral de Recursos da Defesa Nacional (DGRDN)”. Sublinha estarem em causa “operações de elevada complexidade que pressupõem regularizações registrais, loteamentos, pareceres e avaliações de entidades externas e, na grande maioria das operações, construção de raiz, pelo que são operações a concluir até 2026, no âmbito do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR)”. E acrescenta que, no caso da Quinta da Alfarrobeira, que seria cedida à CML, mas esta não quis continuar com a operação, se encontra em curso a avaliação do imóvel para integração no Instituto de Habitação e da Reabilitação Urbana (IHRU) e no programa do governo de promoção de habitações a custos acessíveis.

Por seu turno, a CML justifica a decisão, referindo que, avaliada a opção e as suas implicações, nomeadamente a nível de encargos para a CML, num valor de investimento financeiro muito considerável, e havendo alternativa na disponibilidade de outros locais que integram o património municipal, “a decisão foi de que, estrategicamente, não fazia sentido manter essa possibilidade em concreto”.

Logo em 2019, estava em curso um plano para a sua venda, com a estimativa de licitação inicial em hasta pública de 25 milhões de euros. Era Alberto Coelho, detido no âmbito da Operação Tempestade Perfeita, em que se investiga corrupção, o responsável por estes processos, enquanto diretor-geral da DGRDN.

Seguro Sanches pediu ao MF uma reavaliação, de que resultou a subida do valor do imóvel para os 47 milhões de euros. Porém, já no âmbito do plano de cedência do direito de superfície por 75 anos, o valor baixou para cerca de 33 milhões. Resta, agora saber qual a nova avaliação de um imóvel que o MF considerou poder ser vendido por 47 milhões de euros.

Esta avaliação da Alfarrobeira não consta da lista da avaliação na posse do MDN. Para já, foram facultados dados de seis dos oito imóveis: o Hospital Militar da Estrela (13,3 milhões); da Cerca do Convento da Estrela – Ala Sul (19,2 milhões); da Estação Radionaval (37, 1 milhões); do Trem de Ouro e Casa do Lordelo (5,6 milhões); e do edifício da avenida de França (4,3 milhões). Ao total de 79,5 milhões, avaliação que o MDN assegura ter sido feita, de forma independente, por perito avaliador registado na Comissão de Mercado de Valores Mobiliários (CMVM), homologada pela Direção-Geral do Tesouro e Finanças (DGTF), faltam a Quinta da Alfarrobeira, as antigas instalações da Manutenção Militar e a Oficina Geral de Fardamento e Equipamento.

De acordo com o protocolo, este último imóvel deveria ter o direito de superfície “constituído a favor, em conjunto, do IHRU e do Município do Porto, cuja oferta pública de habitação a custos acessíveis deverá ser promovido nos termos da parceria a estabelecer entre ambos”.

Como já referido, a porta-voz de Marina Gonçalves, informou que, no caso da Alfarrobeira, está “em curso a avaliação do imóvel para integração no IHRU”, declaração coincidente com a da fonte oficial do gabinete da ministra da Defesa Nacional, Helena Carreiras, ao declarar que, em relação a este imóvel e aos da Manutenção Militar e das Oficinas Gerais de Fardamento e Equipamento está em curso “a tramitação processual a favor do IHRU”. Portanto, desconhece-se qual será, agora, o valor destes dois imóveis e de que forma isso afetará o montante de 110 milhões que deveriam reverter para as FA.

O MDN garante que, na rentabilização de imóveis da DN para o Programa de Arrendamento Acessível (PAA), foram direcionados 15,4 milhões de euros para a melhoria das infraestruturas das FA, provenientes das primeiras prestações recebidas, relativamente a quatro dos imóveis em causa (o programa começou com oito imóveis, mas só houve prestações de quatro). E diz que está “em fase final uma proposta de reafetação de mais 7,6 milhões de euros”.

Quando o PAA foi delineado, ficou definido, ao pormenor, onde o Exército, a Força Aérea e a Marinha utilizariam estas verbas. Porém, fonte oficial do EMGFA explica: “A afetação de verbas oriundas da rentabilização de imóveis da Lei de Infraestruturas Militares (LIM) é aprovada por despacho do Secretário de Estado da Defesa Nacional, de acordo com as necessidades de investimento identificadas pelo EMGFA e pelos ramos das Forças Armadas. Cabe a cada uma das entidades executantes – EMGFA e Ramos – o correspondente investimento nas infraestruturas militares, no âmbito da componente fixa do sistema de forças aprovado.”

“Em relação à reafetação das verbas proveniente de receita do PAA, a indicação que tenho é que não é possível desagregar do valor total de receitas da LIM”, justificou a mesma porta-voz de Helena Carreiras. Quer dizer: ninguém sabe dizer onde são ou foram aplicadas tais dinheiros!      

Seguro Sanches, que fez do PAA uma das bandeiras do seu mandato como secretário de Estado, compreende a demora nos resultados. “São sempre processos morosos. Senti que, em 2019, este não era o modelo preferido ou proposto pelos serviços [era a venda a particulares]. Entendemos que era melhor envolver os municípios e dar um contributo para a política de habitação sem alienar os imóveis [cedendo, apenas por 75 anos, o direito de superfície e voltando os mesmos a defesa nacional passado esse tempo]”, vincou o agora deputado.

Salienta que a DN e os Ramos das FA “trabalharam, de forma célere, junto das Finanças e, no final de 2021, esta solução estava encontrada em entendimento nas três áreas governativas”. E sustenta que este modelo “garante que, no final, o interesse público nunca perde o imóvel, o que, além de diminuir as hipóteses de especulação, aumenta a transparência”.

Para Jorge Seguro Sanches, o aproveitamento de património, não utilizado ou abandonado pelo Estado, para habitação, a custos controlados, pode consistir numa oportunidade de o Estado fazer regulação na habitação e de arrecadar receita pública. Por outro lado, encaixa na oportunidade gizada, em 2021, “de utilizar as verbas do PRR, de forma faseada”, significando “planeamento também na execução a vários anos”.

***

Neste caso (como em outros de interesse público), não bastam as boas ideias. Há um peso terrível da burocracia da administração pública. Já houve tempo mais que suficiente para uma avaliação sustentável dos imóveis, que ainda não está fechada. Há descoordenação entre os diversos departamentos do Estado: por exemplo, define-se, ao pormenor, a aplicação das verbas, mas ninguém sabe onde se gastou uma ínfima parte da verba já disponibilizada. E, apesar do drama da falta de habitação, não há pressa: já deviam ter sido abertos concursos para projetos e obras ou, então, contratos-programa com os municípios interessados. Mas o que não está bem é um município prometer uma cooperação ativa num programa e, depois, retirar-se, alegando altos custo e a existência de alternativa (que o discurso deixa no olvido).

Porém, se, como pretendiam os serviços, os imóveis fossem cedidos a particulares, dificilmente estes aceitariam a reversão para o Estado ao fim de 75 anos. Por outro lado, os particulares teriam de possuir dinheiro e vontade de transformar imóveis em habitações, sem lhes descaraterizar as estruturas externas – o que não é tão apetecível como construir de raiz ad libitum.

Seja como for, este impasse constitui mais uma dificuldade à execução do PRR. Depois, queixamo-nos de que perdemos fundos europeus, que só ficam disponíveis, à medida que há capacidade de execução física e financeira. Ou seja, por um lado, o promotor tem de dispor de dinheiro para adiantar a obra e para custear uma parte da mesma; e, por outro, deve ter capacidade técnica (pessoal, tempo e logística) para conceber, planear e executar a obra. Se a isto juntarmos os óbices ao “Mais Habitação”, o drama habitacional está para durar. E famílias sofrem!

2023.08.23 – Louro de Carvalho

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