terça-feira, 22 de agosto de 2023

Portugal quer 700 milhões de euros da UE para linha Porto-Lisboa

 

O governo vai submeter, até ao final de janeiro de 2024 (términus do prazo), candidatura a fundos da União Europeia (UE) para a linha de alta velocidade Porto-Lisboa, um dos emblemáticos projetos ferroviários que pretende concretizar. A candidatura ascende, para já, ao montante de 700 milhões de euros – a que corresponde, nesta fase, a dotação para Portugal do programa Connecting Europe Facility (CEF: em Português, Mecanismo Interligar a Europa). A dúvida era se o país podia candidatar-se para uma obra em que mantém a construção da linha em bitola ibérica, em vez da bitola europeia.

A questão da bitola (distância entre carris) tem sido objeto de acesas discussões nos últimos anos, com empresários, gestores e académicos a defender que Portugal deve avançar já para a construção das novas linhas em bitola europeia, que existe em toda a Europa, menos em Espanha, mas onde já foi adotada nas linhas de alta velocidade construídas nos últimos anos. Defendem que Portugal ficará isolado de Espanha e da Europa, se não proceder já a essa migração, com a consequente perda de competitividade no transporte de mercadorias.

A Comissão Europeia (CE) mantém o que respondera, em janeiro, aos eurodeputados do Partido Social Democrata (PSD) que tinham perguntado se Portugal perderia fundos europeus, se mantivesse a intenção de construir as linhas em bitola ibérica (1668 milímetros). Segundo a proposta da CE de regulamento relativo às orientações da rede transeuropeia de transportes, mas ainda não aprovada, Portugal pode candidatar-se aos fundos nesses termos, desde que faça a migração para a bitola europeia até final de 2030. E a aprovação de financiamento para o primeiro troço, entre Porto e Soure, não aconteceu em 2022, porque o projeto não estava suficientemente amadurecido. Não obstante, a CE considera de extrema importância a migração desta linha para a bitola padrão europeia (1435 milímetros).

Para facilitar a transição, serão implementadas soluções como as travessas polivalentes, para minimizar as interrupções no tráfego. Assim, o financiamento da UE através do CEF para apoiar a construção desta linha é possível. Porém, ela só estará concluída após 2030. E só depois de concluída é que se deverá começar a pensar na migração para a bitola europeia, diz o governo, acreditando numa flexibilização de prazos da parte da CE, face ao calendário de construção da linha e à análise custo-benefício da migração para a bitola europeia.

O governo justifica a insistência na construção em bitola ibérica com o facto de esta ser a única forma de obter vantagens, o mais rápido possível, das novas linhas e com o argumento de que será bastante barato e relativamente fácil proceder, depois, à migração.

O troço do Porto a Soure, concluído em 2028, será posto, de imediato, em exploração, fazendo a ligação de Soure para sul pela Linha do Norte. O de Soure ao Carregado será aberto no final de 2030. E o do Carregado a Lisboa ficará concluído para lá de 2030. Se fosse construída em bitola europeia, a linha só entraria em exploração, quando estivesse integralmente concluída.

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A luta contra os investimentos ferroviários portugueses em bitola ibérica tornou-se visível há seis anos, quando, em julho de 2017, se publicou o manifesto “Portugal – uma ilha ferroviária na União Europeia”, assinado por um conjunto de 39 empresários, gestores e investigadores e enviado aos partidos com assento parlamentar e ao Presidente da República, a alertar para os riscos para a economia portuguesa, caso Portugal não aproveitasse os fundos europeus para passar da bitola ibérica à europeia. E, no início do ano, alguns promotores, tendo por alvo o Plano Ferroviário Nacional (PFN), e enviaram uma carta aberta ao Presidente da República e à Assembleia da República a propor um debate aberto e participado sobre o PFN, que esteve em discussão pública até 28 de fevereiro. A temática da bitola, que remonta ao tempo em que Portugal e Espanha apostaram em bitola diferente para travar a invasão francesa liderada por Napoleão Bonaparte (século XIX), volta a ser tema quente.

O PFN é o instrumento que o governo quer aprovar para que, à semelhança do que sucedeu com os projetos rodoviários do Plano Rodoviário Nacional (PRN), se definam os projetos ferroviá­rios onde, com força de lei, o país terá de apostar. E há muitos projetos, como a ligação ferroviária a todas as capitais de distrito e outras novas linhas regionais, de longo curso e nas áreas metropolitanas – mas, até ulterior decisão, em bitola ibérica.

O PFN está com o secretário de Estado das Infraestruturas, Frederico Francisco, para incorporar os contributos da consulta pública, cuja análise foi concluída, no final de junho, pelo Instituto da Mobilidade e dos Transportes (IMT). E está em curso a elaboração do relatório da avaliação ambiental estratégica do Laboratório Nacio­nal de Engenharia Civil (LNEC), que se espera que esteja concluído em setembro, para ir a Conselho de Ministros antes do final do ano.

Os promotores da carta aberta dizem que o PFN é um plano caseiro, não interoperável com o resto da Europa, desenhado para impedir a entrada em Portugal da concorrência ferroviária europeia, objetivo de anteriores ministros da área, ao proteger monopólios ferroviários domésticos e ao condenar as exportações portuguesas à dependência dos centros logísticos que Espanha criou ao longo da nossa fronteira e no País Basco. Na sua visão retrógrada e nacionalista, é um plano fora do tempo, não cumpre nenhum dos objetivos definidos pela ­UE, que são objetivos globais, da Europa à China, de redução do consumo de energias fósseis, da substituição do transporte rodoviário de mercadorias e de passageiros pela ferrovia, da eliminação do transporte aéreo para distâncias inferiores a mil quilómetros e a limitação em curso do transporte individual a favor do transporte coletivo.

O empresário Henrique Neto diz que “o governo planeia gastar milhares de milhões de euros em três parcerias público-privadas para a construção da linha férrea de passageiros entre Lisboa e o Porto que serão pagos por nós” e que a UE pagaria, se a bitola fosse a europeia em vez da ibérica, o que está desmentido. Mais diz que a Espanha construiu a mais moderna rede ferroviária da UE, com a ajuda dos fundos europeus, e Portugal não construiu um quilómetro em bitola europeia, com a perda de milhares de milhões de euros de fundos de Bruxelas.

E a Associação Portuguesa para o Desenvolvimento dos Sistemas Integrados de Transportes (ADFERSIT) enviou carta ao primeiro-ministro a criticar a escolha e a simplicidade enganosa com que se apresenta a migração da bitola ibérica para a europeia.

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Contudo, há quem apresente suporte científico e técnico para a opção do governo (aliás a opção vem do governo de Passos Coelho). Assim, a 27 de janeiro, um artigo de TRAINMANIAC no “Portugal Ferroviário” advoga a bitola ibérica, contestando os opositores.

Uma eventual migração massiva da bitola ferroviária em Portugal (Espanha ou Finlândia) é uma disrupção catastrófica para a performance e competitividade do sistema ferroviário durante muitos anos, com as poucas opções mitigadoras a representarem um custo de investimento fora de escala e a requererem uma coordenação técnica que é utópica.

A chave do problema não é a perspetiva concetual, mas a criação condições para que a evolução prática não ponha em causa alinhamentos futuros com o ótimo concetual.

Portugal não terá problema de competitividade ou de isolamento por manter bitola ibérica. É falso que a Espanha tenha um plano de migração total de bitola. Já o teve nos anos 90, mas cancelou-o por choque com a realidade. Assimqualquer implementação de bitola europeia em Portugal é que representará uma ilha operacional que se manterá por muitos anos, complicando a operação ferroviária (precisa de veículos específicos, na melhor das hipóteses) ou as infraestruturas (motivando convivência de bitolas em simultâneo, um pesadelo de gestão).

Quando se iniciar a alteração de bitola, tem de se pensar nas alterações necessárias para o tráfego de mercadorias – desde a locomotiva ao vagão: todo o material circulante utilizado e todas as infraestruturas têm de migrar de bitola. E o comboio de mercadorias usa muitas infraestruturas: linhas gerais, linhas para resguardo, estações de mercadorias, triagens de mercadorias, terminais ferroviários, terminais privados, ramais industriais… No material ou na infraestrutura, qualquer migração parcial fará explodir o número de transbordos e ruturas de cargas. Esta disrupção pode aniquilar boa parte do tráfego de mercadorias que existe e do que podia existir entre Portugal e a Espanha. E a ideia de migração parcial da rede para servir o diminuto tráfego além-Pirenéus atirará grande parte do tráfego para a inviabilidade.

A amplitude financeira de intervir por inteiro na rede e no material circulante excede em muito o investimento necessário para expandir a rede ferroviária em linha com o PFN, pelo que, na lógica de custo de oportunidade, a opção é entre gastar um valor X para integrar mais 500 a 800 quilómetros na rede ferroviária ou gastar o quadruplo para rebitolar a rede atual.

O equilíbrio é fácil de obter e está alcançado. Na infraestrutura, tem de se garantir que todos os eixos novos e em renovação são dotados de travessas polivalentes, com furação para posições distintas dos carris, que permitam a fácil aproximação, quando for viável passar da bitola ibérica à europeia. Do lado do material circulante, para lá de o material novo estar preparado para mais fácil migração (por exemplo, troca de rodados), o transporte de passageiros tem soluções robustas e de fabricantes distintos para migrar de bitola em andamento, permitindo a um comboio começar numa bitola e terminar noutra. Tal solução deve ser a preferida para tráfegos marginais, para simplificar a operação dos fluxos principais da rede. Hoje, um comboio pode ligar Lisboa a Paris. E, nas mercadorias, além de haver eixos telescópicos, está testada solução mais robusta e polivalente – os eixos OGI – que permitem equipar frotas de vagões destinadas a tráfego além-Pirenéus. A Espanha só está a avançar com migração de bitola no corredor mediterrâneo, entre França e Algeciras, pela natureza do sistema ferroviário que, ao longo desse eixo, funciona como um regime quase fechado. Todos os eixos radiais que, de algum modo, contactam com essa linha terminam na costa, sem precisarem de continuar por ela.  

Um dos argumentos para defender a imediata aposta na bitola europeia é a migração de bitola que ocorre em Espanha – argumento que sustenta o corolário da “ilha ferroviária”. Porém, a Espanha não tem um plano para migrar toda a rede para a bitola europeia. Se tivesse, não existiria a ideia de que a Espanha não está interessada em trazer a bitola europeia às nossas fronteiras como forma de impedir o nosso progresso.

De facto, a Espanha tem hoje planos de migração de bitola que, a partir dos Pirenéus, chegarão a pontos bem definidos e sem ramificações. Neste ponto, a obra em curso está a ser algaliação de via clássica – isto é, nos troços onde o itinerário de bitola europeia coincide com o itinerário histórico, a via terá duas bitolas simultâneas, para utilização fácil por qualquer comboio, solução muito onerosa. Do lado do Mediterrâneo, o corredor é maior, aproveitando um funcionamento como sistema quase individualizado. A generalidade dos serviços ou corre integralmente neste corredor (e é fácil mudá-los de bitola, sem disrupções) ou chega a ele e serve só uma estação nodal (sendo fácil fazer coabitar duas bitolas em pontos singulares, como uma estação). Com os comboios bibitola, são sobrecustos impagáveis. 

No quadro da recente atualização regulamentar do quadro de investimentos em infraestruturas ferroviárias financiadas pela UE, tudo isto se insere no previsto regulamentarmente – Estados com bitolas distintas da europeia têm obrigação de se coordenarem para eventual migração, mas não são forçados a avançar para a migração a qualquer custo.

O “soundbyte” da ilha ferroviária parte de premissas erradas. Uma das variantes aponta o desejo de Espanha não trazer bitola europeia até Portugal. Se assim fosse, preveria tráfego de mercadorias em bitola europeia para lá do arco mediterrâneo, serviria Madrid, “o seu coração económico”, e zonas como as Astúrias, potências industriais. Ora, hoje, com bitola igual dos dois lados, a ferrovia só assegura 3% do trânsito terrestre de mercadorias entre os dois países.

Portugal é hoje ilha ferroviária real. O impedimento à concorrência ou à interoperabilidade entre os dois países está na obsolescência do sistema de controlo de velocidade português (Convel), que não está disponível para instalar em novas séries de material circulante. Assim, até que se aprove um módulo que compatibilize o Convel com o sistema europeu ERTMS, um comboio que não tenha tido Convel não entrará em serviço regular no país.

O argumento da interoperabilidade no país é o argumento-chave para manter a bitola ibérica, enquanto se prepara rede e material circulante para eventual migração futura.

Excetuada a linha do Vouga, estabelecida em bitola de mil milímetros (via estreita), toda a restante rede está estabelecida em bitola ibérica, o que leve a que linha que não esteja nesta bitola postule: comboios que sirvam exclusivamente a linha de bitola distinta; comboios polivalentes; instalações fixas para permitir aos comboios a alteração de bitola em movimento; e transbordos de carga nos comboios de mercadorias (a massificação de comboios bibitola parece pouco viável em larga escala). Ora, se, um dia, for razoável migrar a bitola portuguesa, será porque, gradualmente, se preparou toda a rede para fácil migração e porque terá passado tempo suficiente para que do lado do material circulante a migração possa ser fácil. 

Argumentar com os regulamentos europeus está fora de causa, como se viu com a autorização para candidatura à UE para a nova linha Porto-Lisboa. Aliás, quando os regulamentos se afiguravam inflexíveis, a Finlândia e os países bálticos opuseram-se, por terem a ferrovia articulada com a russa, cuja bitola é de1524 milímetros.

Também não vale a pena pensar que os nossos portos abastecerão, por comboio, o centro da Europa. Esta está dotada de portos suficientes. Quando muito, Sines abastecerá o interior da Península Ibérica, para o que terá condições. Por outro lado, as trocas comerciais, via terrestre, com os países Além-Pirenéus são diminutas, comparativamente com as trocas com a Espanha. E há soluções para o transbordo de cargas: fazê-lo em terminais de mercadorias em zonas de reunião das duas bitolas; ou dotar frotas específicas de vagões, dimensionadas para esse mais magro volume de mercadorias a transitar, com eixos bibitola.

É certo que a construção da linha Porto-Lisboa em bitola ibérica limita, em alguns aspetos, a concorrência. E isso acontece por via indireta, pois a maioria dos comboios de alta velocidade são em bitola internacional, sendo mais fácil a sua aquisição ou reaproveitamento. Porém, os comboios bibitola são hoje uma realidade.

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Enfim, a bitola é uma questão política (eu preferia a europeia, ao menos para grandes ligações internacionais, no esquema traçado para o TGV). Há custos de vulto – reais e de oportunidade, em qualquer das opções, tendo, por último, de adotar a bitola europeia. Porém, não vale apoucar o PFN, nem fazer aduções infundadas ou desatualizadas. Execute-se o PFN!

2023.08.22 – Louro de Carvalho

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