domingo, 20 de agosto de 2023

Ucranianas qualificadas têm poucas oportunidades em Portugal

 

Diz-se que, a 24 de fevereiro de 2022, se iniciou o primeiro conflito militar na Europa desde o fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945. Com efeito, embora o conflito remonte, pelo menos a 2014, com a anexação da Crimeia, só desta feita, se ouviam sirenes e eram dadas ordens de recolha domiciliária, à medida que os Russos iam ganhando terreno. Nos meses subsequentes, ocorreram massacres e alegados crimes de guerra em cidades que, em Portugal, a maioria nunca ouvira falar, como Bucha, Kherson, Mikolayiv ou Mariupol. E, apesar de muitos Ucranianos terem recusado dar o país à Rússia, ficando na Ucrânia em pleno conflito, nas semanas seguintes, iniciou-se uma das maiores vagas de refugiados na História recente da Europa.

O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) revela que, desde o início, mais de cinco milhões de Ucranianos optaram por ficar no país, mas fugiram para outras cidades onde o conflito ainda era pouco visível. Porém, 6,2 milhões deixaram a Ucrânia, procurando refúgio em países vizinhos, como a Polónia, a Moldávia ou a Roménia. Outros foram mais longe, na Europa, tendo chegado até Portugal mais de 50 mil.

Os que chegaram ao nosso país receberam apoio institucional para a documentação e, em Lisboa, a Associação de Ucranianos em Portugal (AUP), “uma ilha ucraniana” no país, desde de 2003, abriu-lhes as portas, segundo Yuriy Kondra (voluntário ali desde 2007, após ter imigrado para Portugal, em 1999). Deu assistência no preenchimento de documentação e de formulários e no apoio a nível da habitação, pela criação de um programa com o Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana (IHRU). “Desde o dia 25 de fevereiro [de 2022] que estamos a prestar apoio à Ucrânia. Logo no início de março, começaram a chegar os primeiros refugiados”, diz Kondra.

Segundo o balanço do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), até junho de 2023, chegaram a Portugal, de carro e de avião, mais de 56528 refugiados ucranianos e estrangeiros que residiam na Ucrânia, valor que tem vindo a diminuir nos últimos meses. No início de maio, totalizavam 58191, mas o SEF adiantou que cerca de dois mil Ucranianos tinham pedido o cancelamento dos pedidos de proteção temporária. Além dos pedidos de cancelamentos dos títulos, há alguns que não renovam as proteções temporárias, que tinham a duração de um ano e caducaram.

Além dos títulos de proteção temporária, à chegada de Portugal, o SEF atribuiu, automaticamente, números de identificação fiscal (NIF), números de identificação da Segurança Social (NISS) e números de utente do Serviço Nacional de Saúde (SNS). “Foi tudo muito mais facilitado para este tipo de refugiados. Seria bom que isto fosse também transferido para todos os outros migrantes que aqui chegam”, defende o coordenador do SEF.

A maior dos refugiados da Ucrânia é constituída por mulheres (33949), muitas acompanhadas dos filhos menores, das mães, das sogras, ou de outras familiares, pois a Lei Marcial obriga os homens ucranianos entre os 18 e os 60 anos a ficarem no país. O número de refugiados ucranianos masculinos situou-se, até junho, nos 22579.

O perfil destes imigrantes diferencia-se da maioria dos que provêm de países do Sul da Ásia ou do Norte de África. “Trabalhamos com outras associações que apoiam migrantes, em rede, e existe a noção de que este não é o típico migrante que chega a Portugal”, diz Afonso Nogueira, coordenador da AUP, aludindo ao estatuto destes refugiados.

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Sobre o fenómeno concreto das refugiadas ucranianas, com destaque para mulheres academicamente qualificadas, o jornal digital Eco, publicou, a 19 de agosto, uma reportagem de Jéssica Sousa e Hugo Amaral, de que se respigam os dados mais significativos.   

Um dos casos apontados é o de uma engenheira de construção civil, de 43 anos, que saiu de Odessa, em março de 2022, quando já sacos de areia protegiam a estátua de bronze, no centro da Avenida Prymorskyi, dos bombardeamentos russos que vinham do Mar Negro. Há vários anos, em exercício na Ucrânia, sabe que a estadia em Portugal é temporária, ainda que a filha de 13 anos e o filho de sete estejam inscritos na escola, onde aprendem Português. A falta de oportunidades de emprego na área não a motivam a estabilizar-se por cá.

Uma jurista, de 47 anos, deixou, também em março de 2022, a região de Butcha, em Kiev – quando foram denunciadas mais de 400 mortes de civis, encontrados em valas comuns. Trouxe consigo a sua mãe de 75 anos de idade e o filho de oito. A jurista, com décadas de experiência na área, quer regressar à Ucrânia, mas sabe que não pode ficar à espera de que a guerra acabe. Por isso, inscreveu-se, juntamente com 22 outras Ucranianas, num curso de culinária do Mezze Escola. A sua expectativa é que, no final do curso, consiga arranjar emprego, já que, na sua área de formação, sem o domínio do Português, dificilmente terá oportunidade.

Uma arquiteta paisagista, de 45 anos, chegou a Portugal, a partir de Kiev, em abril, com a filha de 11 anos, que começou a estudar numa escola portuguesa, onde aprende Português. Para trás ficou o marido, oficial do exército que está na linha da frente do combate. A expectativa é voltar, pois tem “uma vida estabilizada lá”. Começou por frequentar os cursos de Português, mas, quando percebeu que o conflito militar não tinha fim à vista, teve de aceitar a possibilidade de ficar por cá. E, quando surge a oportunidade, faz trabalhos temporários para uma empresa de catering.

Uma jornalista (e apresentadora de televisão), de 32 anos, conduziu automóvel até Portugal, durante cinco dias. Quando chegou, trabalhava à distância como editora de uma revista online e como assessora do Parlamento ucraniano, mas demitiu-se, por ser “psicologicamente difícil”, e passou a trabalhar no departamento fiscal de um banco. Não quer que tenham pena de si.  

Uma engenheira química, de 43 anos, quer regressar à Ucrânia, mas não enquanto lá estiverem os Russos. Enviou currículo para várias empresas da área, mas ainda espera resposta.

Uma economista, de 31 anos, começara a trabalhar na banca, mas passou a uma empresa comercial e de logística. Em Portugal, trabalhar no Novo Banco.

E uma especialista de marketing, de 31 anos, saiu de Lugansk, onde sempre viveu, e veio sozinha para Portugal de avião a partir de Moscovo. Começou, pouco tempo após a sua chegada, a trabalhar na restauração e, semanas mais tarde, no serviço de apoio ao cliente do Airbnb. Mas, percebendo que podia ser mais útil, candidatou-se a uma vaga de marketing e, por sorte, preencheu a posição que exige que saiba falar, pelo menos, Inglês – língua que começou a praticar cedo, graças à insistência da avó.

Todas estas refugiadas qualificadas querem regressar, mas trabalhar enquanto permanecem em Portugal. Por isso, aprendem a língua e espreitam as oportunidades que rareiam.   

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Grande parte das refugiadas que chegaram a Portugal são de classe média e com formação numa área especializada – medicina, engenharia, gestão, economia ou profissões de áreas científicas, como investigação e engenharia química,  profissões de que Portugal podia beneficiar –, mas as dificuldades nas transferências de competências e equivalências, a falta de oportunidades especializadas e as barreiras linguísticas impedem que sejam aproveitadas. Não são migrantes por motivos económicos. O objetivo é manter as profissões que tinham na Ucrânia ou regressar. Têm mais expectativas e o trauma leva-as a menor abertura “a começar por baixo”.

Nesse sentido, a AUP organizou dezenas feiras de emprego e parcerias institucionais com empresas, ao longo de 2022, para ajudar estas instituições a preencher vagas mais especializadas e para apoiar estas refugiadas a ter rendimentos numa altura em que regressar ao país da origem, em segurança, ainda não é possível. Também o Instituto de Emprego e Formação Profissional (IEFP) procura integrar estas refugiadas através de oportunidades de emprego. No âmbito da Operação Refugiados Ucrânia, com a criação de um mecanismo de acolhimento e de integração social e profissional destes cidadãos, em conjunto com as empresas que manifestaram interesse e disponibilidade para sua a contratação. Em abril de 2022, as vagas de emprego em Portugal ascendiam às 22 mil, um pouco por todo o país, com um salário médio de 884 euros por mês.

Entre março e julho de 2022, houve uma avalanche de ofertas, mas a falta de “disponibilidade emocional” impedia que estes refugiados estivessem “preparados para trabalhar”. Só a partir de setembro é que as famílias ucranianas deslocadas em Portugal se viam obrigadas a pensar em constituir uma vida longe de casa.

Até agosto de 2023, só 10500 dos 56 mil cidadãos ucranianos refugiados residentes em território nacional tinham celebrado contratos de trabalho em Portugal, através do IEFP, encontrando-se atualmente ativas 3278 ofertas de emprego no turismo e na restauração, nas tecnologias de informação, na construção civil, no setor social e nos transportes. A maioria (634) está localizada em Lisboa, Portalegre (446), Faro (350) e Coimbra (267).

Fora da rede IEFP, também se procurou agilizar a integração destes refugiados. Uma das empresas que trabalhou, de forma autónoma, nessa integração foi a Sonae, que já efetivou dezenas de contratos de trabalho com refugiados ucranianos, no âmbito do programa Sonae for Ukraine (que tenta responder às necessidades dos que fugiram da guerra e se refugiaram em Portugal, sendo uma das áreas prioritárias o emprego), quer pela criação de uma plataforma bilingue, em Ucraniano e em Inglês, de forma a permitir candidaturas simplificadas, quer por ações de recrutamento realizadas um pouco por todo o país.

Em parceria com a Speak Social, a AUP desenvolveu cursos de Português, na ótica da educação não formal, cujas aulas contam, semanalmente, com dezenas de cidadãos ucranianos para melhorar o domínio da língua lusa. Porém, a falta de certificação do curso impede que seja validada a capacidade linguística destes refugiados. O IEFP ainda não efetivou, com a AUP, a organização de cursos específicos para Ucranianos.

Da parte do IEFP, mais de 7300 refugiados ucranianos participaram em cursos de Português para estrangeiros, até agosto deste ano, e a maioria já obteve os certificados do nível mais básico. E mais de 460 refugiados foram também integrados em outras ações de formação profissional.

Num estudo da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), publicado em 2016, as conclusões sobre o impacto dos refugiados numa economia resumem-se no título: “Os refugiados não são um fardo, são uma oportunidade”.

No documento, é elencada uma lista de benefícios económicos (bem como um conjunto de recomendações, entre elas, a nível da educação e apuramento de competências) que os refugiados podem trazer ao país de abrigo, como trabalhadores, como empreendedores, como empresários, como contribuintes, como consumidores e como investidores. “Os esforços [dos refugiados] podem ajudar a criar empregos, aumentar a produtividade e os salários dos trabalhadores locais, elevar o retorno do capital, estimular o comércio internacional e o investimento, e impulsionar a inovação, o empreendedorismo e o crescimento”, vinca o autor do estudo, Philippe Legrain.

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Não espanta que as refugiadas qualificadas tenham poucas oportunidades aqui, pois, também os cidadãos portugueses qualificados têm dificuldade em arranjar emprego compatível com as suas habilitações. O setor privado tem dificuldade em admiti-los; é um calvário o percurso de admissão nos quadros da administração pública (a não ser nos gabinetes ministeriais e equivalentes, onde a nomeação é feita na base da confiança política); e os salários são baixos. Tudo isto leva a que alguns fiquem em casa, outros emigrem e outros se sujeitem a trabalho indiferenciado. Entretanto, as empresas não têm competitividade e a administração pública parece em pré-falência.  

Penso que o país está a fazer o que pode pelos refugiados e pelas refugiadas – qualificados ou não. Porém, a resposta às necessidades é sempre insuficiente.      

2023.08.20 – Louro de Carvalho

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