segunda-feira, 21 de agosto de 2023

Controlo do espaço geoestratégico dos Açores e do Atlântico em geral

 

A edição online do Diário de Notícias (DN), de 21 de agosto, publicou um artigo do jornalista açoriano Armando Mendes intitulado “O regresso da Base das Lajes”, em que vale a pena refletir, pois equaciona a “nova realidade estratégica (e tecnológica)”, em que, tal sucede acontece com o controlo do Ártico,  mobiliza os Estados Unidos da América (EUA) e seus aliados, a China e Rússia para uma disputa pelo controlo do espaço geoestratégico dos Açores e do Atlântico em geral, reateando, no pensamento militar dos EUA, o debate sobre a Base das Lajes como ativo essencial, após a redução administrativa de efetivos militares e civis e de meios (downsizing), operada em 2015, mas nunca aceite pelos militares.

Efetivamente, por via do debate público sobre esta estrutura militar de valor geoestratégico, subsequente ao debate que se desenrolava em restritos círculos militares e civis norte-americanos, militares e civis, os EUA decidiram, na primeira década do século, reorganizar as suas forças na Europa, determinando, para a base da ilha Terceira, nos Açores, significativa redução de 900 para 400 trabalhadores portugueses e de 650 para 165 militares norte-americanos, o que redundou na poupança anual de 35 milhões de dólares.

A reestruturação (designativo corrente na redução de meios em empresas e em serviços do Estados), aprazada para 2012/2013, foi adiada para 2015/2016, devido a questões estratégicas surgidas no Congresso e ao impacto económico na comunidade local.

O que levou a tal decisão, nos termos da reorganização geral das forças dos EUA nos cenários overseas (ultramarinos) e, em especial, na Europa, foram as dificuldades orçamentais; a convicção de que a Rússia já não constituiria perigo ou desafio; e a fixação no cenário indo-pacífico a fim de contrabalançar aí o emergente poder chinês.

O debate centrava-se, para uns, na poupança (irrelevante) anual de 35 milhões de dólares e, para outros, na redução de efetivos militares e civis, que poria em causa a prontidão e a capacidade de resposta, face a operações de maior exigência. Tal redução implicou a passagem da operação de 24 horas por dia, sete dias por semana, para oito horas por dia, e a continuação do encerramento das operações de busca e caça a submarinos (ASW – Anti-Submarine Warfare) que funcionaram na Guerra Fria e até 1994, com aviões P-3 Orion. O abando destas operações tinha a ver com a ideia-força de que os submarinos russos já não constituiriam credível ameaça no Atlântico.  

O recurso a ativos treinados para operar em qualquer base e concentrados, sobretudo em bases nos EUA, atenuou a redução de pessoal; e a redução das horas de operação foi, casuisticamente, resolvida. Porém, isto não foi considerado solução satisfatória e nunca agradou aos militares.

O encerramento das operações ASW arrastou-se até 2018, quando os novos aviões de busca e caça a submarinos P-8 Poseidon realizaram treinos de adaptação à pista das Lajes, iniciando as operações efetivas em 2019 (precedidas de operações esporádicas antes de 2018). A inexistência de operações ASW a partir da Base das Lajes foi considerada crítica sobretudo por analistas da US Navy (a Marinha dos EUA). E o almirante James Foggo III, comandante das US Naval Forces Europe-Africa entre 2017 e 2020, dizia que está em curso a 4.ª Batalha do Atlântico, com a Rússia a projetar submarinos no Atlântico e a China à procura de influência na zona. Só em 2019, quando os P-8 iniciam operações ASW regulares a partir das Lajes, são detetados 10 submarinos russos em simultâneo. A situação na zona é tal que o general Joseph Dunford, antigo chairman do Joint Chiefs of Staff (2015-2019), afirmou que a decisão de retirar o foco da Europa pode induzir a incapacidade de mover forças através do Atlântico.

A discussão pública sobre a importância da base para os EUA, que, enquanto potência quer continuar a dominar o Atlântico, está ativa, graças à iniciativa de militares norte-americanos e da comunicação social militar, a qual serve as bases norte-americanas na Europa, bem como devido a estudos científicos, por exemplo os publicados por instituições de ensino militar e por outras, destacando-se o estudo do, até há pouco tempo, 2.º comandante da Base das Lajes, Shawn D. Littleton, publicado pela Air University e divulgado pelo jornal Kaiserslautern American (de 21 de abril). Este aparato comunicacional, crítico da reestruturação que afetou a base em 2015/2016, converge na nova realidade estratégica com impacto no espaço geoestratégico dos Açores, sendo os interesses dos EUA contestados em ambiente de competição, que, exponencialmente, se agravará, envolvendo a Rússia e a China.

O debate público em torno do espaço geoestratégico dos Açores e, em especial, dos papéis da Base das Lajes, instalado por iniciativa norte-americana, dificilmente aconteceria, se não fosse do interesse so U.S. European Command, com sede na Bbase de Ramstein, na Alemanha, que integra a redação do jornal Kaiserslautern American, bem como do U.S. Department of Defense e da U.S. Air Force (Força Aérea dos EUA), face aos estudos da Air University (embora os militares dos EUA desfrutem de liberdade científica em ambiente académico).

Assim, concluir-se-á que, no âmbito do poder militar norte-americano, há empenho significativo em tirar todo o partido possível da Base das Lajes, no quadro da presente competição estratégica. É o próprio Kaiserslautern American que assumiu, em reportagem (28 de outubro de 2022), a divulgação de informação que valoriza as Lajes para lá da projeção de força tradicional, lembrando que a base controla o sistema de comunicação de ondas curtas de longo alcance, para a missão de Comando, Controlo e Comunicações Nucleares da Força Aérea, auxilia na retransmissão de comunicações que dá cobertura, através de satélite, ao Mid-Atlantic Gap, protegendo e ampliando o alcance operacional para os EUA (e seus aliados), além de armazenar 48% da capacidade de combustível que a US Air Force detém na Europa.

Os militares norte-americanos aproveitam todas as oportunidades para focarem a importância da Base das Lajes, o que pode estar ligado à definição, em curso, de uma visão para as bases de Lajes e de Móron (Espanha), que estão sob o memso comando sedeado na Ilha Terceira, para vigorar até 2030. Ao concluir a missão de comandante das Lajes, a 10 de agosto, o coronel Brian Hardeman expressou o seu entendimento de que seria “trágico” tudo ficar como está. “Temos de avançar, nestes dias de competição estratégica para tornar as Lajes e Móron no que devem ser”, preconizou, clarificando a sua visão sobre a base açoriana, quando, a seu ver, o espaço dos Açores é de “interesse primordial para a China”, como reporta Diário Insular (DI) (12 de agosto).  

Os norte-americanos registam visitas do presidente chinês e de dois primeiros-ministros à Ilha Terceira, desde 2012, quando foi anunciada a reestruturação nas Lajes e tomaram nota dos acordos de Portugal com a China, em fins de 2018, quando o presidente chinês, Xi Jinping, visitou Lisboa, que implicam os mares açorianos, e não esquecem que, em 2016, na primeira visita que o nosso primeiro-ministro fez à China, admitiu que a Base das Lajes não estaria interdita aos chineses, se os EUA não renovassem o acordo de exclusividade, mas para fins científicos e não militares. Já em 2023, o embaixador da China em Lisboa alarmou a comunidade local dos EUA, com a visita aos Açores em que propôs a criação de uma escola de Mandarim, iniciativas de divulgação da cultura chinesa, projetos de aquicultura, o reforço da exportação de produtos lácteos açorianos e a cooperação ao nível do turismo (DI de 7 de abril).

A capacidade da Rússia para invadir a Ucrânia e para entrar com submarinos no espaço do Atlântico Norte despertou o pensamento estratégico dos EUA para a necessidade de precaver os meios, o que levou Hardeman a afirmar que as duas bases, além de serem plataformas estratégicas de projeção de poder, possibilitam aos bombardeiros e caças permanecerem fora da área de ameaça russa, mas suficientemente perto, para apoiarem a iniciativa de dissuasão europeia e a operação no Médio Oriente. Assim, esta visão aproxima a Base das Lajes de uma base de ataque, com bombardeiros e caças, partindo de posição segura e com apoio de reabastecedores. Hardeman considera que a China continua a expandir-se para a África e para o Atlântico, enquanto a Rússia se assume como “ameaça desestabilizadora”. Está, pois, superado o discurso de desvalorização das capacidades da Rússia e de remissão da China para potência regional, admitindo-se que os dois países compitam com os EUA numa disputa estratégica no Atlântico.

Littleton, quando era ainda 2.º comandante das Lajes, disse que a infraestrutura terceirense será a base mais importante para os EUA, na Europa, nos próximos 20 a 50 anos, pois acredita que a China terá presença nas costas atlânticas africanos e sul-americanas, mas adverte que, para controlar o meio do Atlântico, a China terá de desenvolver investimentos “desproporcionados, enquanto os EUA podem fazer tal controlo, a partir dos Açores, com “investimentos modestos”. Por outro lado, sustenta que a Base das Lajes, pela sua localização geográfica, é “essencial” para garantir a segurança do Atlântico, enquanto bem comum e no âmbito de regras internacionais aceites por países como os EUA e Portugal.

Efetivamente, no estudo científico realizado no âmbito da Air University, Littleton aconselha os EUA a manterem-se nos Açores e, de preferência, em exclusivo, advertindo que mudanças tecnológicas nos transportes, em especial marítimos, indicam que os Açores podem regressar ao tempo das escalas técnicas, sendo uma zona decisiva para o controlo militar (segurança) de rotas comerciais e de cabos submarinos. A defesa de zona é também avançada, face a novas armas em desenvolvimento, que representam ameaças para aviões e navios. Tudo aponta para uma visão em construção para os papéis das Lajes até 2030. A valorização da Lajes é assumida, fora da esfera militar, por Daniel Kochis, para quem a sua importância estratégica é contínua, sendo os Açores um “investimento sábio” para os EUA, no horizonte de 20 a 30 anos, e a base “um dos postos avançados” dos EUA, a constituir “o fulcro das relações bilaterais EUA-Portugal”.

Políticos de topo e académicos açorianos pensam que o Acordo das Lajes, de 1995, com validade de cinco anos, mas em vigor por prorrogação anual automática, enquanto não for denunciado por uma das partes, é mau para Portugal e, em particular, para os Açores, o que se deverá a má interpretação nossa da realidade estratégica, aquando das negociações ocorridas entre 1991 e 1995. Portugal não terá percebido a importância da base para os EUA no pós-Guerra Fria.

Antevendo novas realidades estratégicas e oportunidades para valorizar ativos, como as Lajes, o Parlamento Açoriano criou, em 2023, o Conselho para o Estudo das Potencialidades Geopolíticas e Geoestratégicas dos Açores, para a construção de conhecimento sobre os ativos geoestratégicos próprios e as realidades geopolíticas em que a Região se insere e para a operacionalização desse conhecimento, no âmbito da decisão política e na negociação, procurando contrapartidas justas.

Os documentos preparatórios do Conselho convergem na visão atual dos responsáveis militares norte-americanos, face ao espaço geoestratégico dos Açores. Prevê-se uma disputa do espaço, num futuro não distante, envolvendo a China e os EUA, mas também a Rússia, sobretudo face à capacidade de penetração da nova classe de submarinos oceânicos de ataque. Prevendo tal disputa estratégica, os Açores querem conhecê-la, para tirar partido de futuros acordos.

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Acresce referir que, para o referido Armando Mendes, jornalista e doutorado em História, Defesa e Relações Internacionais, do ponto de vista do valor estratégico dos Açores, esta crise Ocidente-Rússia, por causa da Ucrânia, vem à tona um episódio da Guerra Fria, a guerra do Yom Kippur, de outubro de 1973, que opôs Israel a vários países árabes. Enquanto aviões de transporte estratégico da União Soviética entregavam material bélico aos árabes, os EUA garantiam apoio a Israel, através de ponte aérea de dimensões colossais suportada apenas na Base das Lajes, já que a Europa continental fechara os aeroportos à operação, receando retaliação árabe, a nível do petróleo, o que ocorreu, provocando a crise energética. Agora, se o conflito alastrar, as Lajes voltarão a ter papel relevante na geoestratégia, em prol do Ocidente.

Assim, a guerra não acaba, apenas se transforma!

2023.08.21 – Louro de Carvalho

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