sexta-feira, 25 de agosto de 2023

Igreja Siro-Malabar com um problema de desobediência litúrgica

 

A 23 de agosto o jornal digital “7Margens”, citando o jornal “Industan Times”, dava conta de que, no dia 22, quatro jovens padres católicos da arquieparquia (equivalente a arquidiocese) de Ernakulam-Angamaly, no estado de Kerala, na parte Sul da Índia, foram transferidos para outro local, por terem recusado as decisões do Sínodo quanto ao modo de celebrar a liturgia da missa, passando por cima do ultimato que lhes fora dado, na última semana, pelo enviado do Papa, o arcebispo Cyril Vasil, SJ.

Os quatro sacerdotes exerciam funções ministeriais no Seminário Menor do Sagrado Coração de Jesus, em Kochi. E, tendo-lhes sido perguntado se iriam seguir o ritual da missa aprovado pelo Sínodo da Igreja Siro-Malabar e homologado pelo Papa Francisco, responderam negativamente, pelo que tiveram de abandonar o trabalho que exerciam, sem que lhes tivessem sido, entretanto, atribuídas novas funções.

A disputa gravita, aparentemente, em torno da posição, durante a missa, do presbítero que a ela preside. A Igreja Siro-Malabar é sui juris, podendo tomar decisões que são, depois, submetidas a Roma. No caso vertente, uma deliberação, tomada pelo Sínodo desta Igreja, em 2021, procedeu a uma conciliação entre a forma tradicional de celebrar, com o presidente virado a Oriente, e a solução saída do Concílio Vaticano II, em que preside voltado para o povo (versus populum). 

Assim, a Liturgia da Palavra e a parte final passaram a ser conduzidas de frente para o povo e, do ofertório à ação de graças, com o presidente de costas. Porém, a esmagadora maioria dos padres da arquieparquia prefere celebrar toda a Eucaristia de frente para a assembleia.

A decisão do Sínodo, com a respetiva homologação papal, não foi bem recebida, especialmente na principal circunscrição da Igreja Siro-Malabar, a arquieparquia de Ernakulam-Angamaly, que é também a maior de todas, calculando-se que tenha mais de meio milhão de fiéis. Das suas 349 paróquias, não chegou à dezena o número das que seguiram a decisão do Sínodo e as resistências, nos últimos anos, levaram a cenas em que a polícia chegou a ser chamada.

O enviado papal, conhecedor das especificidades da Igreja Siro-Malabar, terá atuado com recurso, sobretudo, a argumentos de autoridade e de unidade, como reconhecem vários observadores credenciados da região, referidos numa reportagem do site católico “The Pillar.

O arcebispo Cyril Vasil começou a ser contestado, mal foi conhecida a notícia da sua nomeação, em julho último. Temia-se que, por ter estudado em Roma com o atual administrador apostólico de Ernakulam-Angamaly, nomeado pelo Papa, em 2022, com a tarefa de aplicar a reforma sinodal, indiciasse a posição do próprio enviado papal. 

No dia 17 de agosto, o enviado de Roma escreveu uma dura carta aos padres, dando-lhes um prazo até ao dia 20, domingo, para adotarem a decisão do Sínodo. 

E, na sequência de várias reuniões que tinha tido nos dias anteriores, o enviado do Papa interpelou os presbíteros na última: “Quereis continuar a ser sacerdotes da Igreja Católica, a Igreja conduzida pelo divino mestre Jesus Cristo que confiou a São Pedro e aos seus sucessores o direito de desatar e atar, de encorajar os irmãos na fé, de ensinar e de governar?”

E advertiu, anunciando a inevitabilidade de sanções canónicas, se continuasse a desautorização do Sínodo e do Papa: “Nunca poderá haver uma bênção de Deus para a desobediência à Sua vontade, por muito que se tente encobrir com frases piedosas e até com orações. Nunca haverá a bênção de Deus para o protesto ilegal e [para] a rebelião”

Porém, no último domingo, dia 20, centenas de manifestantes bloquearam a celebração da Santa Qurbana (Celebração da Eucaristia) na Catedral-Basílica de Santa Maria, em Ernakulam, e os protestos por toda a arquieparquia reiteraram a desobediência. Chegaram a ser queimadas, junto à catedral, cópias da carta de Cyril Vasil.

Tudo indica que o arcebispo Cyril Vasil regressa a Roma, levando consigo um impasse, que até poderá ter-se agravado. Efetivamente, a “UCA News”, instituição católica asiática de difusão de notícias, não hesita em considerar que a situação ficou pior do que estava. 

As penalizações aplicadas aos padres incidiram sobre responsáveis de um seminário e, a manterem-se as coisas no ponto em que estão, dificilmente demoverão os responsáveis das paróquias. Ao invés, informações de última hora, veiculadas pelo jornal “The New Indian Express”, relatam que alguns padres contestatários foram recebidos na sede da Igreja Siro-Malabar para um diálogo com Cyril Vasil, mas se recusaram a abandonar a sala, no final da reunião, declarando-se em greve de fome. Acabariam por ser retirados pela polícia, chamada por funcionários da instituição, alegando que os padres estavam a perturbar o normal funcionamento daquele espaço.

Quando foi difundida a notícia desta ação policial, um outro grupo invadiu o seminário menor e quis forçar o reitor a demitir-se, considerando-o “pau mandado” do administrador apostólico, o qual, por sua vez, estaria a interferir no campo judicial, dado que haviam interposto uma ação a questionar a autoridade do enviado papal, que o tribunal estaria a analisar.

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Arquieparquia Maior de Ernakulam – Angamaly (em Latim, Archieparchia Ernakulamensis –

 Angamaliensis) é uma circunscrição da Igreja Católica, cabeça da Igreja sui iuris Católica Siro-Malabar, situada em Ernakulam, no Estado de Kerala, na Costa do Malabar, na Índia. É fruto da elevação do vicariato apostólico de Ernakulam a arquieparquia. O seu atual  arquieparca é o cardeal-arcebispo Maior George Alencherry. E a sua catedral é a Catedral-Basílica de Santa Maria. Possui 349 paróquias servidas por 790 padres, abrangendo uma população de 4 826 000 habitantes, com 13,1% da dessa população jurisdicionada batizada (633 000 católicos).

Em 1896, o Papa Leão XIII, pela bula “Quæ Rei Sacræ”, instituiu o vicariato apostólico de Ernakulam. A 21 de dezembro de 1923, foi criada a hierarquia Siro-Malabar, pela bula “Romani Pontifices”, do Papa Pio XI, e Ernakulam foi elevada ao estatuto de arquieparquia e tornou-se o centro da Igreja sui iuris Católica Siro-Malabar.

Pela bula “Qui en Beati Petri Cathedræ”, de 29 de julho de 1956, do Papa Pio XII, a arquieparquia de Ernakulam foi bifurcada e erigida a eparquia de Kothamangalam. E as eparquias de Thrissur, Thalassery e Kothamangalam tornaram-se sufragâneas de Ernakulam.

O grande marco histórico para a arquieparquia (equivalente a arquidiocese) e para os Cristãos de São Tomé foi o 16 de dezembro de 1992, quando o Papa São João Paulo II declarou a arquieparquia de Ernakulam como uma Arquieparquia Maior sui iuris, reconhecendo, assim, a autonomia especial da Igreja Siro-Malabar. Dessa forma, também foi declarada a primazia desta circunscrição eclesiástica, agora renomeada para Arquieparquia Maior de Ernakulam-Angamaly. Por isso, o seu arquieparca maior ou arcebispo maior passou a ser o chefe da Igreja Católica Siro-Malabar, que é, atualmente, uma Igreja oriental sui iuris, em comunhão com a Santa Sé e com o Papa – pelo que lhe estão vinculadas a Arquieparquia de Changanacherry, a Arquieparquia de Kottayam, a Arquieparquia de Thalassery e a Arquidiocese de Thrissur.  

Porém, a 6 de março de 2012, foi criada a Eparquia de Faridabad, diretamente sujeita à Santa Sé.  

Igreja Católica Siro-Malabar é a segunda maior Igreja Católica Oriental no Mundo, com uma população total de cerca de 3,8 milhões de católicos (dos quais 2,9 milhões vivem na Índia). Por isso, é a maior comunidade  dos seguidores de São Tomé na Índia. A sua sede é a Arquidiocese Maior de Ernakulam-Angamaly, situada no Estado de Kerala, na Costa do Malabar, na Índia.

A sua união com a Igreja Católica Apostólica Romana remonta ao ano de 1599. Adquiriu o estatuto de Igreja sui iuris em 1992, quando a Ernakulam-Angamaly se tornou numa Arquidiocese Maior. O seu rito litúrgico é de tradição siríaca oriental ou caldaica e usa como línguas litúrgicas o Siríaco e o Malaiala. É, atualmente, governada por George Alencherry, Arcebispo Maior de Ernakulam-Angamaly, juntamente com o seu Sínodo.

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O caso em referência não faz, atualmente, qualquer sentido. Nem a posição tradicional da oração ad Orientem é a originária. Parece que, no período paleocristão (até ao final do século V) não havia essa orientação das basílicas. Ao invés, como sucede ainda hoje, com a Basílica de São Pedro, em Roma, a entrada nos templos era, então, feita pelo lado do nascente, tal como no Templo de Jerusalém. E, quando a liturgia era celebrada em casas particulares, estas tinham a orientação inicial, sem a preocupação da orientação geográfica. Aliás, rezar ad Orientem deveria entender-se como rezar a Cristo, o Sol Nascente da Igreja, o Deus que nos visitou lá do Alto.

Compreende-se que o Papa, no quadro da autonomia do Sínodo, tenha homologado aquela deliberação de compromisso. Contudo, não deveria ter o Sínodo tomado uma decisão à revelia do sensus ecclesiae; e, tomada tal decisão, o enviado papal, ao ver que a decisão não colhia consenso, deveria ter motivado o Sínodo a permitir que o presidente da celebração rezasse versus populum. Não se trata de questão estrita da fé católica. E, além do mais, uma das formas de presença de Cristo na Igreja é da assembleia convocada e reunida: assim, padre a rezar voltado para o povo reza voltado para Cristo.

Conheci um sacerdote que pretendia celebrar, numa capela, a missa versus populum. Mas, como os habitantes do lugar não aceitavam que alterasse a disposição do altar, nem quiseram colocar uma mesa a servir de altar, ao sacerdote não cedeu e passou a celebrar a missa colocado numa das faces laterais do altar, nem voltado para o povo, nem de costas para ele: solução de meio-termo O pessoal dizia de outro modo, que me abstenho de especificar.

Outro sacerdote foi confrontado com um devoto que lhe pediu uma celebração de missa à antiga. E, como o sacerdote lhe perguntasse como era a missa à antiga, atirou: “É em latim e de rabo para a gente!” E são estes os caminhos da fé de muita gente!  

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No caso vertente da Igreja Católica Siro-Malabar, o argumento da unidade falhou: esta constrói-se no respeito pela diversidade e sem pretender a uniformidade ou a unicidade. E o argumento da autoridade, a utilizar parcimoniosamente, não deu resultado, por a norma parecer mais fruto de um capricho do Sínodo e não ter raízes na doutrina. Por isso, como o “7Margens” aponta, “Roma avançou na Índia pela via da autoridade e… falhou”.

2023.08.25 – Louro de Carvalho

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