No discurso
que proferiu, a 3 de agosto, nas instalações da sede da Universidade Católica
Portuguesa (UCP), no âmbito da Jornada Mundial da Juventude 2023 (JMJ 2023), o
Papa Francisco abordou vários temas da atualidade, aglutináveis em torno da
busca e do risco. Dessa intervenção respigo as linhas gerais que reputo mais
pertinentes.
A partir da
asserção da Reitora da UCP de que todos nos sentimos “peregrinos”, Francisco
apontou a necessidade de pôr de lado a rotina habitual e pôr-se a caminho com
uma intenção – um passeio pelos campos ou ir mais dos nossos confins habituais
–, deixando o espaço de conforto pessoal com vista a “um horizonte de sentido”.
Nesta imagem, visualiza-se a conduta humana, já que todos somos interpelados
pelas interrogações que não têm resposta ou não a têm “simplista ou imediata”,
mas instam a “uma viagem, superando-nos a nós próprios, “indo mais além”.
É o processo
que o universitário compreende, pois assim “nasce a ciência” e cresce “a busca
espiritual”. Na verdade “ser peregrino é caminhar para uma meta” ou ir à
procura dela. Contudo, há o risco de enredar-se num labirinto sem meta e sem
saída. Há que desconfiar das “fórmulas pré-fabricadas” e das “respostas que nos
parecem ao alcance da mão” ou “tiradas da manga, como se fossem cartas
viciadas”, e das “propostas que parecem dar tudo, sem pedir nada”. Esta metódica
desconfiança é “uma arma” para caminhar para diante, sem andar às voltas.
Para ilustrar
a necessidade da busca, o Pontífice evocou a parábola do negociante que buscava
pérolas e uma de grande valor (cf Mt 13,45-46). E, assim,
sustenta: “Quem a procura com sabedoria e com espírito de iniciativa, quem dá
tudo e arrisca tudo o que tem para a possuir. Procurar e arriscar: estes são os
dois verbos do peregrino.”
Porém, só
procura e arrisca quem está insatisfeito. E o Papa citou Fernando Pessoa, que
diz, em Mensagem, O Quinto Império, que “ser descontente é ser homem”.
Por isso, “não devemos ter medo de nos sentirmos inquietos”, pois, na justa
medida, “estar insatisfeito é um bom antídoto contra a presunção de
autossuficiência e contra o narcisismo”. É a incompletude que define a condição
de indagadores e de peregrinos, já que “estamos no Mundo, mas não somos do
Mundo (cf Jo 17,16). Caminhamos “para”; somos chamados a “decolagem
sem a qual não há voo. Portanto, é normal encontrarmo-nos “intimamente
sedentos, inquietos, incompletos, desejosos de sentido e de futuro, com saudade do futuro”; e é
necessário “manter viva a memória do futuro”. Devemos, antes, preocupar-nos, se
estamos prontos a substituir a estrada a fazer por uma paragem em área de
serviço, com a ilusão do conforto; se “substituímos os rostos pelos ecrãs, o
real pelo virtual”; se, “em vez das perguntas lacerantes, preferimos as respostas
fáceis que anestesiam” e que se veem em qualquer manual de relações sociais.
É, pois,
necessário procurar e arriscar.
E o Papa, considerando que “os desafios são enormes, os gemidos dolorosos”,
sublinha que “estamos a viver uma terceira guerra mundial feita aos pedaços”. Todavia,
brada que “não estamos numa agonia, mas num parto”, ou “não no fim, mas no
início dum grande espetáculo”. Ora, “pensar assim” implica a postura de
coragem. Por isso, o apelo é a que os jovens sejam “protagonistas duma ‘nova
coreografia’ que ponham no centro a pessoa humana”, isto é, que sejam “coreógrafos
da dança da vida”.
Neste
contexto apelativo, confessou-se inspirado nas palavras da Reitora, quando
afirmou que “a universidade não existe para se preservar como instituição, mas
para responder com coragem aos desafios do presente e do futuro”. Disse que “a autopreservação
é uma tentação”, “um reflexo condicionado pelo medo”, que faz olhar a
existência “de forma distorcida”. Servindo-se da imagem das sementes, frisou
que, se elas “se preservassem a si mesmas”, desperdiçariam “a sua força
geradora e condenar-nos-iam à fome”, tal como se o inverno se preservasse a si
mesmo, “não existiria a maravilha da primavera”. E exortou à coragem de “substituir
os medos pelos sonhos” e a que não
sejamos “administradores de medos, mas empreendedores de sonhos”.
Da
universidade, que se comprometeu a “formar as novas gerações”, diz que seria “desperdício
pensá-la apenas para perpetuar o atual sistema elitista e desigual do Mundo com
o ensino superior”, que continua a ser “privilégio de poucos”; e que, “se o
conhecimento não for acolhido como uma responsabilidade, torna-se estéril”. E
foca um aspeto muito importante, a que a sociedade liberal é avessa: “Se quem
recebeu um ensino superior – que hoje, em Portugal e no Mundo, continua a ser
um privilégio –, não se esforça por restituir aquilo de que beneficiou,
significa que não compreendeu profundamente o que lhe foi oferecido”.
Não é pressuposto
ideológico suspeito, mas um olhar bíblico. No Génesis, as primeiras perguntas
que Deus faz ao homem são: “Onde estás?” (Gn
3,9) e “Onde está o teu irmão?” (Gn
4,9). Assim, devemos perguntar-nos: “Onde estou?” E cada um deve questionar-se se está fechado no seu
canto ou se abraça o risco de sair das suas seguranças, para se tornar “cristão
praticante”, “artesão de justiça”, “artesão da beleza”. E deve cada
perguntar-se: Onde está o meu irmão?
Pegando em experiências
de serviço fraterno como a “Missão País”, que surgem no meio académico, sustenta
que “deveriam ser consideradas indispensáveis para quem passa por uma
universidade”, pois o título de estudo não deve ser visto só como licença para
construir o bem-estar pessoal, mas como um “mandato para se dedicar a uma
sociedade mais justa”, mais inclusiva, ou seja, “mais desenvolvida”. Para
tanto, evoca o desejo de Sophia de Mello Breyner Andresen, formulado à laia de
testamento: “Gostaria que se realizasse a justiça social, a diminuição das diferenças
entre ricos e pobres” (Entrevista a Joaci Oliveira, Cidade Nova, n.º
3/2001). E o Pontífice interpela os estudantes, enquanto “peregrinos do saber”
sobre o que querem ver realizado em Portugal e no Mundo, que mudanças, que
transformação. E, como é óbvio, quer saber “como pode a universidade,
especialmente a Católica, contribuir para isso.
Referindo-se
aos testemunhos de quatro jovens, em todos vislumbrou o tom de esperança, a
carga de entusiasmo realista, sem queixumes nem escapadelas idealistas; e acolheu
o desejo de serem “protagonistas da mudança”, o que lhe fez lembrar uma frase
de Almada Negreiros: “Sonhei com um país onde todos chegavam a Mestres” (A
Invenção do Dia Claro). E reconhecendo-se idoso, porfiou, enquanto idoso,
que sonha que a esta geração “se torne uma geração de mestres: mestres de
humanidade, mestres de compaixão, mestres de novas oportunidades para o planeta
e seus habitantes, mestres de esperança. E mestres que defendam a vida do
planeta, ameaçada neste momento por uma grave destruição ecológica.”
Corroborou o
que eles disseram da necessidade de reconhecer “a urgência dramática de cuidar
da casa comum”, para vincar que isso postula a “conversão do coração” e a “mudança
da visão antropológica subjacente à economia e à política”, não bastando as “simples
medidas paliativas” ou os “tímidos e ambíguos compromissos”. “Os meios-termos
são apenas um pequeno adiamento do colapso” – disse-o, reiterando o que
escreveu na encíclica Laudato si’.
Trata-se, antes, de “tomar a peito o que, infelizmente, continua a ser adiado”,
isto é, “a necessidade de redefinir o que chamamos progresso e evolução”. De
facto, “em nome do progresso, já se abriu caminho a um grande retrocesso”. Porém,
crê que estes jovens são “a geração que pode vencer este desafio”, por disporem
de “instrumentos científicos e tecnológicos mais avançados”. Entretanto, não
podem cair na “cilada de visões parciais”: urge “uma ecologia integral”, a
escuta do “sofrimento do planeta juntamente com o dos pobres”; urge “colocar o
drama da desertificação em paralelo com o dos refugiados”, o “tema das
migrações juntamente com o da queda da natalidade”; e urge ocuparmo-nos da “dimensão
material da vida no âmbito duma dimensão espiritual”. Tudo sem polarizações,
mas com visões de conjunto.
Como disse ao
Papa um dos jovens, “não é possível uma verdadeira ecologia integral sem Deus”
e “não pode haver futuro num Mundo sem Deus”. Por isso, Francisco entende que a
fé é credibilizada “através das decisões”, pois, se não “gera estilos de vida
convincentes, não faz levedar a massa”. Não basta ao cristão estar convencido, “deve
ser convincente”. Na verdade, as nossas ações devem refletir a beleza jubilosa
e radical do Evangelho. E “o cristianismo não pode ser habitado como fortaleza
cercada de muros, que ergue baluartes contra o Mundo”. Por isso, o Pontífice
enalteceu o testemunho da jovem que frisou ser “a partir do campo da cultura”
que se sente chamada a “viver as Bem-aventuranças”. De facto, em cada tempo,
uma das tarefas do cristão é “recuperar o sentido da encarnação”. Sem esta, “o
cristianismo torna-se uma ideologia” e a tentação das ideologias cristãs é
muito atual. Ora, “é a encarnação que permite maravilhar-se com a beleza que
Cristo revela, através de cada irmão e irmã, cada homem e mulher”.
Sobre a nova
cátedra dedicada, na UCP, à “Economia de Francisco”, o Papa gostou do
acrescento da figura de Clara, porque “é indispensável o contributo feminino”,
pois, no inconsciente coletivo, se pensa, muitas vezes, que “as mulheres são de
segunda categoria, são reservas, não jogam como titulares”. Porém, a
contribuição feminina é indispensável. Até se vê, na Bíblia, “como a economia
familiar está, em grande parte, na mão da mulher. É ela a verdadeira
“governante” da casa, com uma particularidade de genuína sabedoria: fá-lo
centrada, “não exclusivamente no lucro”, mas no cuidado, na convivência, no
bem-estar físico e espiritual de todos, na partilha com os pobres e com os
estrangeiros. Ora, abordar os estudos económicos nesta linha “é entusiasmante”
e visa “devolver à economia a dignidade que lhe compete, para que não caia como
presa do mercado selvagem e da especulação”.
E, chegado o
momento de falar de uma iniciativa cara ao Papa Francisco, surge a referência ao “Pacto Educativo Global” e
aos princípios da sua arquitetura que incluem muitos dos temas já abordados, que
vão “desde o cuidado da casa comum à plena participação das mulheres, à
necessidade de encontrar novas formas de entender a economia, a política, o
crescimento e o progresso”. Por isso, os estudantes são convidados a estudar
o “Pacto Educativo Global”
e a apaixonarem-se por ele, sobretudo no atinente à educação para o acolhimento
e para a inclusão. Na verdade, não se pode fingir não ter ouvido as palavras de
Jesus no capítulo 25 de Mateus: “era estrangeiro e recolhestes-me” (Mt 25,35). E o Bispo de Roma disse ter
acompanhado, com emoção, o testemunho da jovem que lembrou o que significa
viver com o “sentimento constante de ausência de um lar, da família, dos
amigos, […] de ter ficado sem teto, sem universidade, sem dinheiro, […]
cansada, exausta e abatida pela dor e pelas perdas”. Porém, reencontrou a
esperança, “porque alguém acreditou no impacto transformador da cultura do
encontro”. De facto, quando “alguém pratica um gesto de hospitalidade,
desencadeia uma transformação”.
Por fim, o
Papa viu “uma comunidade educativa viva, aberta à realidade e consciente de que
o Evangelho não se limita a servir de ornamento, mas anima as partes e o todo”,
salientando que o percurso abarca diversos âmbitos: estudo, amizade, serviço
social, responsabilidade civil e política, cuidado da casa comum, expressões
artísticas. E sentenciou: “Ser uma universidade ‘católica’ significa, antes de
mais, que cada elemento está em relação com o todo e o todo se revê nas partes.
Assim, enquanto se adquirem competências científicas, vai-se amadurecendo como
pessoa, no conhecimento de si e no discernimento do próprio caminho.”
E, recordando
a tradição, nos termos da qual, quando os peregrinos se cruzavam no Caminho de
Santiago, um saudava o outro exclamando “Ultreia”
(“Eia, mais além!”) ao que este respondia “et Suseia” (“Eia, para cima”). Eram expressões de encorajamento
para prosseguir a busca e o risco da caminhada. Portanto, “Coragem, força, para
diante!”
***
No
respeitante ao perfil do estudante, à economia, ao papel da universidade, o
ensinamento é aplicável a todos. A geração mais bem preparada está descontente,
mas procura e arrisca?
2023.08.03 – Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário