A descoberta, publicada, a 27 de julho, na revista científica “Papers in Paleontology”, chamou a atenção, pela raridade deste método de fossilização, pois, normalmente, os esqueletos destes insetos decompõem-se, rapidamente, devido à composição quitinosa (um composto orgânico).
A quitina é um polissacarídeo constituído por polímero de
cadeia longa de N-acetilglicosamina. Insolúvel em água e córneo, é o precursor
direto da quitosana. Ocorre, naturalmente, em diversos organismos, sendo o principal
componente da parede celular dos fungos e do exoesqueleto dos artrópodes.
Porém, o paleontólogo Carlos Neto de Carvalho, do Geopark Naturtejo e coordenador
do estudo que levou a esta de coberta, ressaltou o excecional estado de
preservação das abelhas, em comunicado de imprensa do Geopark Naturtejo, a que vários
órgãos de comunicação social se referiram, entre 9 e 11 de agosto.
O Geopark
Naturtejo da Meseta Meridional, que integra a rede mundial da UNESCO, inclui os
concelhos de Castelo Branco, Idanha-a-Nova, Oleiros, Penamacor, Proença-a-Nova
e Vila Velha de Ródão, no distrito de Castelo Branco, e Nisa, no distrito de
Portalegre. O projeto que conduziu à nova descoberta resulta de uma cooperação
ibero-italiana, juntando, da parte portuguesa, cientistas do Instituto Dom Luiz
(IDL), da Universidade de Lisboa, do Mare – Centro de Ciências do Mar e do
Ambiente, da Universidade de Coimbra, do Instituto Politécnico de Tomar e do
Centro Português de Geo-História e Pré-História.
Além da
identificação de pormenores anatómicos e da determinação do tipo de abelha, também
foi possível, no estudo, a identificação do sexo e, até, a provisão de pólen
monofloral deixada pelas progenitoras, quando construíram os casulos.
Esta impressionante
descoberta que, certamente, despertará o interesse de pesquisadores e
entusiastas da História Natural, foi feita no âmbito de um projeto de
cooperação ibero-italiana e resultou na identificação de quatro sítios paleontológicos
na região de Odemira, entre Vila Nova de Milfontes e Odeceixe – sítios que
apresentam uma elevada densidade de casulos de abelhas fossilizados, que foram
produzidos há quase três mil anos.
Os sítios paleontológicos, agora
revelados, que contêm uma densidade elevada de fósseis de casulos de abelhas,
localizam-se no litoral de Odemira, portanto, na Costa Sudoeste de Portugal.
Esta descoberta oferece uma visão única do passado e contribui
significativamente para o conhecimento científico sobre essas abelhas e seu
ecossistema há milhares de anos.
De acordo
com o Geopark Naturtejo, os referidos casulos preservam, como num sarcófago, os
jovens adultos da espécie de abelha Eucera, que nunca chegaram a ver a luz do
dia.
O trabalho
do Geopark Naturtejo, na preservação e estudo dessas relíquias paleontológicas,
é digno de reconhecimento; e os resultados obtidos terão, certamente, um impacto
significativo na compreensão da vida das abelhas no passado.
No
referido comunicado, Carlos Neto de Carvalho – coordenador da equipa formada
pelo próprio e por Andrea Baucon, Davide Badano, Pedro
Proença Cunha, Cristiana Ferreira, Silvério Figueiredo, Fernando Muñiz, João
Belo, Federico Bernardini e Mário Cachão – considera que “a mumificação natural é um
processo de fossilização, é um tipo de fossilização”.
Com
efeito, a mumificação é um método de preservação
de cadáveres que diminui drasticamente a intensidade da decomposição. Aquela de
que se fala habitualmente é artificial e tem efeito imediato. Porém,
aquela de que fala o estudo em referência é natural e ocorre vagarosamente, ao
longo de muitos e muitos anos.
No referido comunicado,
começa por se dizer que, há quase três mil anos, era o tempo dos faraós. “Há cerca de 2975 anos, vivia-se o reinado
do faraó Siamun no Baixo Egito; na China decorria a Dinastia Zhou; Salomão iria
suceder a David no trono de Israel; no território que é hoje Portugal, as
tribos caminhavam para o final da Idade do Bronze.” E lê-se ainda: “Na Costa Sudoeste, no
litoral do que é hoje Odemira, algo de estranho e raro acabara de suceder:
centenas de abelhas morreram no interior dos seus casulos e foram preservadas
no mais ínfimo detalhe anatómico.”
Também o paleontólogo
italiano Andrea Baucon, um dos coautores do trabalho, também citado no
comunicado, vinca: “Com um registo fóssil de 100 milhões de anos de ninhos e
colmeias atribuídas à família das abelhas, a verdade é que a fossilização do
seu utilizador é, praticamente, inexistente.”
Como foi apontado, estes casulos produzidos há quase 3000 anos preservam, como num sarcófago, os jovens adultos da abelha Eucera que nunca chegaram a ver a luz do dia. Para se chegar a esta conclusão, além da datação por carbono 14, também a utilização de tomografia microcomputorizada permitiu que os investigadores tivessem imagens tridimensionais das abelhas mumificadas no interior de casulos selados.
De acordo com o estudo em causa, a utilidade deste achamento consiste em que, graças à perceção das razões ecológicas que levaram à morte e à mumificação de populações de abelhas, há quase três mil anos, poderemos vir a entender e a estabelecer estratégias de resiliência às alterações climáticas.
Como releva o coordenador do estudo, “um decréscimo acentuado da temperatura noturna, no final do inverno, ou um alagamento prolongado da área, já fora do período das chuvas, poderá ter levado à morte, pelo frio ou asfixia, e [à] mumificação de centenas destas pequenas abelhas”.
***
Como se pode ler na revista científica em referência, o extenso registo fóssil de 100 milhões de anos de ninhos de abelhas e células (calichnia) em depósitos sedimentares siliciclásticos, ou paleossolos – designação dada em geologia, pedologia e paleontologia aos antigos solos que foram preservados por enterramento, sob sedimentos ou depósitos vulcânicos, ou se formaram em paleoclimas e foram preservados por prolongada exposição, à superfície, a condições climáticas muito diferenciadas das originais –, é virtualmente desprovido da presença dos seus produtores. A ausência de atribuição mais específica a um produtor dos diferentes icnogéneros da icnofamília Celliformidae – baseados na morfologia dos traços, todos eles compostos por células, grupos de células e células ligadas a túneis, pelo que os seus ichnotáxas componentes (ichnotáxa: pl. do nome grego ichnotáxon, referente ao táxon, pegada ou vestígio, baseado no trabalho fossilizado de um organismo) são baseados, exclusivamente, em icnotaxobases morfológicas, que foram avaliadas e selecionadas com relação à arquitetura do ninho dos criadores de vestígios, as abelhas – inviabiliza a sua utilização em estudos filogenéticos e paleobiogeográficos.
Superfícies
de omissão desenvolvidas em paleossolos carbonáticos incipientes no Holoceno
tardio (Neoglacial médio), há cerca de 2975 anos, na Costa Sudoeste de Portugal
continental mostram inseto calichnia (um tipo de vestígio fóssil de uma
estrutura que foi feita para fins de reprodução) em ichnotecidos densos dominados por células rasas
discretas (Palmiraichnus castellanosi) e células no término de hastes
verticais.
Na Carreira
Brava, um dos locais estudados, foram encontradas abelhas prestes a abandonar
as suas células em excecional estado de conservação dentro das câmaras de cria
seladas. As câmaras também preservam a membrana polimerizada hidrofóbica da
célula interna e os restos da provisão de pólen monoespecífico do tipo
Brassicaceae. Embora a causa da mortalidade em massa permaneça um mistério, a
depleção de oxigénio devido à inundação repentina do substrato de nidificação e
consequente queda de temperatura durante a noite, pouco antes da emergência,
são causas plausíveis. As condições anaeróbias e a posterior litificação
diagenética carbonática rápida são as prováveis causas da preservação das
abelhas e da membrana orgânica interna da célula. As condições climáticas
favoráveis para o desenvolvimento de sucessivos icnotecidos densos de um
conjunto omisso dominado por células de criação de abelhas podem ser o
resultado de invernos ligeiramente mais frios e de maior precipitação no
intervalo neoglacial.
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O
estudo em causa motiva uma nota sobre as abelhas Eucera, género de abelhas da
família Apidae, que compreende mais de 100 espécies. Pertencem à
ordem hymenoptera (dos nomes gregos hymên,
membrana, e pterón, asa, pena), que é
um dos maiores grupos entre os insetos, compreendendo as vespas, as abelhas e as
formigas. São mais de 153 mil espécies descritas e, quiçá, até um milhão de
espécies existentes não descritas. São conhecidas, comummente, como
abelhas de chifres longos, mercê das antenas carateristicamente longas,
especialmente nos machos. O Eucera do Velho Mundo pode ser identificado por ter
cinco ou seis palpómeros maxilares, com o primeiro flagelómero mais curto do que
o escapo e o clípeo, projetando-se na frente do olho, composto em, pelo menos,
a largura do olho em vista lateral. Estas caraterísticas são encontradas em
ambos os sexos. Além disso, os machos têm carenas convergentes no seu sexto
segmento abdominal ventral (esternite).
As
espécies Eucera podem ser encontradas em diversos habitats, incluindo prados,
campos e jardins urbanos, principalmente nas regiões Paleártica e Neártica,
cobrindo partes da Europa, da Ásia, do Norte de África e da América do Norte.
Desempenham
papel crucial na polinização de ampla gama de plantas com flores. São abelhas
solitárias, o que significa que a fêmea constrói e abastece o seu próprio ninho,
no solo, sem formar colónias sociais como as outras abelhas. As abelhas Eucera
fêmeas constroem o ninho, geralmente em solo arenoso e bem drenado; depositam os
ovos dentro do ninho; e fornecem alimento para os seus descendentes, retirando
pólen e néctar das flores.
As
abelhas Eucera são ativas da primavera ao outono, e o seu período de voo coincide,
geralmente, com o período de floração das suas plantas com flores preferidas.
São polinizadores generalistas, ou seja, visitam uma grande variedade de
flores, mas algumas espécies apresentam preferência por plantas ou por famílias
específicas, como leguminosas ou girassóis.
As
abelhas Eucera têm uma espessa camada de pelo e são de cor escura. Têm um
clípeo protuberante e, geralmente, com cerca de 0,4 a 0,7 polegadas de
comprimento. O tamanho destas abelhas varia de 11 a 18 milímetros. Ao emergir
dos ninhos, o macho imaturo de Eucera nigrilabris terá cor um pouco vermelha e será
um pouco lento. Já o macho maduro aparecerá na cor cinza e mais ativo.
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Enfim,
segredos destes himenópteros especiais, que não picam os senhores da guerra!
2023.08.13 – Louro de Carvalho
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