domingo, 13 de agosto de 2023

Encontradas, no Alentejo, abelhas mumificadas do tempo dos faraós

A descoberta, publicada, a 27 de julho, na revista científica “Papers in Paleontology”, chamou a atenção, pela raridade deste método de fossilização, pois, normalmente, os esqueletos destes insetos decompõem-se, rapidamente, devido à composição quitinosa (um composto orgânico).

A quitina é um polissacarídeo constituído por polímero de cadeia longa de N-acetilglicosamina. Insolúvel em água e córneo, é o precursor direto da quitosana. Ocorre, naturalmente, em diversos organismos, sendo o principal componente da parede celular dos fungos e do exoesqueleto dos artrópodes.

Porém, o paleontólogo Carlos Neto de Carvalho, do Geopark Naturtejo e coordenador do estudo que levou a esta de coberta, ressaltou o excecional estado de preservação das abelhas, em comunicado de imprensa do Geopark Naturtejo, a que vários órgãos de comunicação social se referiram, entre 9 e 11 de agosto.

O Geopark Naturtejo da Meseta Meridional, que integra a rede mundial da UNESCO, inclui os concelhos de Castelo Branco, Idanha-a-Nova, Oleiros, Penamacor, Proença-a-Nova e Vila Velha de Ródão, no distrito de Castelo Branco, e Nisa, no distrito de Portalegre. O projeto que conduziu à nova descoberta resulta de uma cooperação ibero-italiana, juntando, da parte portuguesa, cientistas do Instituto Dom Luiz (IDL), da Universidade de Lisboa, do Mare – Centro de Ciências do Mar e do Ambiente, da Universidade de Coimbra, do Instituto Politécnico de Tomar e do Centro Português de Geo-História e Pré-História.

Além da identificação de pormenores anatómicos e da determinação do tipo de abelha, também foi possível, no estudo, a identificação do sexo e, até, a provisão de pólen monofloral deixada pelas progenitoras, quando construíram os casulos.

Esta impressionante descoberta que, certamente, despertará o interesse de pesquisadores e entusiastas da História Natural, foi feita no âmbito de um projeto de cooperação ibero-italiana e resultou na identificação de quatro sítios paleontológicos na região de Odemira, entre Vila Nova de Milfontes e Odeceixe – sítios que apresentam uma elevada densidade de casulos de abelhas fossilizados, que foram produzidos há quase três mil anos.

Os sítios paleontológicos, agora revelados, que contêm uma densidade elevada de fósseis de casulos de abelhas, localizam-se no litoral de Odemira, portanto, na Costa Sudoeste de Portugal.

Esta descoberta oferece uma visão única do passado e contribui significativamente para o conhecimento científico sobre essas abelhas e seu ecossistema há milhares de anos.

De acordo com o Geopark Naturtejo, os referidos casulos preservam, como num sarcófago, os jovens adultos da espécie de abelha Eucera, que nunca chegaram a ver a luz do dia.

O trabalho do Geopark Naturtejo, na preservação e estudo dessas relíquias paleontológicas, é digno de reconhecimento; e os resultados obtidos terão, certamente, um impacto significativo na compreensão da vida das abelhas no passado.

No referido comunicado, Carlos Neto de Carvalho – coordenador da equipa formada pelo próprio e por Andrea Baucon, Davide Badano, Pedro Proença Cunha, Cristiana Ferreira, Silvério Figueiredo, Fernando Muñiz, João Belo, Federico Bernardini e Mário Cachão – considera que “a mumificação natural é um processo de fossilização, é um tipo de fossilização”.

Com efeito, a mumificação é um método de preservação de cadáveres que diminui drasticamente a intensidade da decomposição. Aquela de que se fala  habitualmente é artificial e tem efeito imediato. Porém, aquela de que fala o estudo em referência é natural e ocorre vagarosamente, ao longo de muitos e muitos anos.

No referido comunicado, começa por se dizer que, há quase três mil anos, era o tempo dos faraós. Há cerca de 2975 anos, vivia-se o reinado do faraó Siamun no Baixo Egito; na China decorria a Dinastia Zhou; Salomão iria suceder a David no trono de Israel; no território que é hoje Portugal, as tribos caminhavam para o final da Idade do Bronze.” E lê-se ainda: “Na Costa Sudoeste, no litoral do que é hoje Odemira, algo de estranho e raro acabara de suceder: centenas de abelhas morreram no interior dos seus casulos e foram preservadas no mais ínfimo detalhe anatómico.

Carlos Neto de Carvalho refere que o projeto identificou quatro sítios paleontológicos com elevada densidade de fósseis de casulos de abelhas, atingindo milhares num quadrado com um metro de lado. Estes sítios localizam-se entre Vila Nova de Milfontes e Odeceixe, no litoral de Odemira, no distrito de Beja, no Baixo Alentejo. Um destes locais tem a particularidade de ter mantido o corpo das abelhas preservado, enquanto, nos outros, se encontram apenas os casulos, sem a preservação do corpo do animal. “No caso de um dos sítios, encontrámos várias centenas de abelhas preservadas. É um afloramento pequenino; está numa zona de passagem. Basta que haja uma afluência de gente grande e o afloramento pode ser destruído”, alerta o paleontólogo.

Também o paleontólogo italiano Andrea Baucon, um dos coautores do trabalho, também citado no comunicado, vinca: “Com um registo fóssil de 100 milhões de anos de ninhos e colmeias atribuídas à família das abelhas, a verdade é que a fossilização do seu utilizador é, praticamente, inexistente.”

Como foi apontado, estes casulos produzidos há quase 3000 anos preservam, como num sarcófago, os jovens adultos da abelha Eucera que nunca chegaram a ver a luz do dia. Para se chegar a esta conclusão, além da datação por carbono 14, também a utilização de tomografia microcomputorizada permitiu que os investigadores tivessem imagens tridimensionais das abelhas mumificadas no interior de casulos selados.

De acordo com o estudo em causa, a utilidade deste achamento consiste em que, graças à perceção das razões ecológicas que levaram à morte e à mumificação de populações de abelhas, há quase três mil anos, poderemos vir a entender e a estabelecer estratégias de resiliência às alterações climáticas.

Como releva o coordenador do estudo, “um decréscimo acentuado da temperatura noturna, no final do inverno, ou um alagamento prolongado da área, já fora do período das chuvas, poderá ter levado à morte, pelo frio ou asfixia, e [à] mumificação de centenas destas pequenas abelhas.

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Como se pode ler na revista científica em referência, o extenso registo fóssil de 100 milhões de anos de ninhos de abelhas e células (calichnia) em depósitos sedimentares siliciclásticos, ou paleossolos – designação dada em geologia, pedologia e paleontologia aos antigos solos que foram preservados por enterramento, sob sedimentos ou depósitos vulcânicos, ou se formaram em paleoclimas e foram preservados por prolongada exposição, à superfície, a condições climáticas muito diferenciadas das originais –, é virtualmente desprovido da presença dos seus produtores. A ausência de atribuição mais específica a um produtor dos diferentes icnogéneros da icnofamília Celliformidae – baseados na morfologia dos traços, todos eles compostos por células, grupos de células e células ligadas a túneis, pelo que os seus ichnotáxas componentes (ichnotáxa: pl. do nome grego ichnotáxon, referente ao táxon, pegada ou vestígio, baseado no trabalho fossilizado de um organismo) são baseados, exclusivamente, em icnotaxobases morfológicas, que foram avaliadas e selecionadas com relação à arquitetura do ninho dos criadores de vestígios, as abelhas – inviabiliza a sua utilização em estudos filogenéticos e paleobiogeográficos.

Superfícies de omissão desenvolvidas em paleossolos carbonáticos incipientes no Holoceno tardio (Neoglacial médio), há cerca de 2975 anos, na Costa Sudoeste de Portugal continental mostram inseto calichnia (um tipo de vestígio fóssil de uma estrutura que foi feita para fins de reprodução) em ichnotecidos densos dominados por células rasas discretas (Palmiraichnus castellanosi) e células no término de hastes verticais.

Na Carreira Brava, um dos locais estudados, foram encontradas abelhas prestes a abandonar as suas células em excecional estado de conservação dentro das câmaras de cria seladas. As câmaras também preservam a membrana polimerizada hidrofóbica da célula interna e os restos da provisão de pólen monoespecífico do tipo Brassicaceae. Embora a causa da mortalidade em massa permaneça um mistério, a depleção de oxigénio devido à inundação repentina do substrato de nidificação e consequente queda de temperatura durante a noite, pouco antes da emergência, são causas plausíveis. As condições anaeróbias e a posterior litificação diagenética carbonática rápida são as prováveis ​​causas da preservação das abelhas e da membrana orgânica interna da célula. As condições climáticas favoráveis ​​para o desenvolvimento de sucessivos icnotecidos densos de um conjunto omisso dominado por células de criação de abelhas podem ser o resultado de invernos ligeiramente mais frios e de maior precipitação no intervalo neoglacial.

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O estudo em causa motiva uma nota sobre as abelhas Eucera, género de abelhas da família Apidae, que compreende mais de 100 espécies. Pertencem à ordem hymenoptera (dos nomes gregos hymên, membrana, e pterón, asa, pena), que é um dos maiores grupos entre os insetos, compreendendo as vespas, as abelhas e as formigas. São mais de 153 mil espécies descritas e, quiçá, até um milhão de espécies existentes não descritas. São conhecidas, comummente, como abelhas de chifres longos, mercê das antenas carateristicamente longas, especialmente nos machos. O Eucera do Velho Mundo pode ser identificado por ter cinco ou seis palpómeros maxilares, com o primeiro flagelómero mais curto do que o escapo e o clípeo, projetando-se na frente do olho, composto em, pelo menos, a largura do olho em vista lateral. Estas caraterísticas são encontradas em ambos os sexos. Além disso, os machos têm carenas convergentes no seu sexto segmento abdominal ventral (esternite).

As espécies Eucera podem ser encontradas em diversos habitats, incluindo prados, campos e jardins urbanos, principalmente nas regiões Paleártica e Neártica, cobrindo partes da Europa, da Ásia, do Norte de África e da América do Norte.

Desempenham papel crucial na polinização de ampla gama de plantas com flores. São abelhas solitárias, o que significa que a fêmea constrói e abastece o seu próprio ninho, no solo, sem formar colónias sociais como as outras abelhas. As abelhas Eucera fêmeas constroem o ninho, geralmente em solo arenoso e bem drenado; depositam os ovos dentro do ninho; e fornecem alimento para os seus descendentes, retirando pólen e néctar das flores.

As abelhas Eucera são ativas da primavera ao outono, e o seu período de voo coincide, geralmente, com o período de floração das suas plantas com flores preferidas. São polinizadores generalistas, ou seja, visitam uma grande variedade de flores, mas algumas espécies apresentam preferência por plantas ou por famílias específicas, como leguminosas ou girassóis.

As abelhas Eucera têm uma espessa camada de pelo e são de cor escura. Têm um clípeo protuberante e, geralmente, com cerca de 0,4 a 0,7 polegadas de comprimento. O tamanho destas abelhas varia de 11 a 18 milímetros. Ao emergir dos ninhos, o macho imaturo de Eucera nigrilabris terá cor um pouco vermelha e será um pouco lento. Já o macho maduro aparecerá na cor cinza e mais ativo.

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Enfim, segredos destes himenópteros especiais, que não picam os senhores da guerra!

2023.08.13 – Louro de Carvalho

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