terça-feira, 29 de agosto de 2023

A doutrina progride, dilata-se, consolida-se e torna-se mais firme

 

A 5 de agosto, na visita apostólica a Portugal, aquando da Jornada Mundial da Juventude (JMJ), o Papa encontrou-se com os jesuítas no Colégio de São João de Brito e conversou. Porém, do conteúdo nada transpirou, até a “Civiltà Cattolica” o publicar, no dia 28. 

O inspetor Padre Miguel Almeida apresentou a Província, dizendo que “fomos três vezes expulsos de Portugal e tantas outras regressamos”, pois, como disse ironicamente, “a erva daninha é difícil de arrancar”. E, vincando o cariz missionário da Companhia de Jesus e a sua proximidade com os pobres, apresentou as obras da Província Portuguesa: educação, pastoral universitária, paróquias, trabalho social e com a área da cultura. Referiu que “há um bom ambiente”, que, por via de crises que houve, “estamos num processo de perdão e de reconciliação”. Por sua vez, o Papa enalteceu o realismo assumido, pois não foi a descrição de um museu, e dispôs-se a escutar.

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Um estudante de Filosofia, que apontou a sociedade sexualizada e consumista, interrogou Francisco sobre a validade da formação jesuítica. O Papa assentiu que vivemos numa sociedade mundana, o que o preocupa, sobretudo quando o mundanismo toma o lugar da vida consagrada. E mencionou a carta ao clero de Roma sobre o clericalismo, uma forma de mundanismo, para vincar que “o mundanismo espiritual é uma armadilha muito recorrente”, vincando que uma coisa é dialogar com o Mundo – como se faz com a arte e com a cultura – e outra é comprometer-se com a mundanidade. Depois, citou a conclusão do livro do Padre de Lubac “Meditação sobre a Igreja”, que tem quatro páginas, dedicadas à mundanidade espiritual, o pior mal que pode penetrar na Igreja, pior do que a era dos papas libertinos. Por isso, é preciso discernir se somos mundanos. Porém, é preciso dialogar com o Mundo, “porque não se pode viver em apuros”. Não é preciso ser o religioso que sorri e protege o seu ambiente sem convocar ninguém. Portanto, devemos sair para o Mundo, que tem valores positivos e negativos.

Tendo dirigido falado a todos os sacerdotes que trabalham na Cúria, a maioria jovem, os quais não mencionaram, nomeadamente o uso de telemóveis e a pornografia em telemóveis. E um deles terá comentado: “Dá para perceber que passou horas no confessionário.”

Quando era noviço, ouvia falar da santa castidade e pedir para não olharem fotos ousadas. Eram tempos em que os problemas não eram tão graves e eram escondidos. Hoje, a porta está aberta e não há razão para os problemas ficarem ocultos. Se alguém esconde os problemas, a culpa não é da Companhia, nem da comunidade religiosa, mas dele próprio. A sociedade de hoje não deixa os problemas de lado, fala deles, pelo que têm de ser encarados. Hoje, o grave problema é o dos refúgios ocultos da autobusca, que dizem respeito à sexualidade e a outras coisas. E a ajuda está no exame de consciência. Porém, há pessoas consagradas que têm o coração exposto aos quatro ventos, com janelas e portas abertas, mas sem consistência interna.

O Papa não tem medo da sociedade sexualizada, mas dos padrões mundanos, em que se inclui, por exemplo, o desejo de se promover, a vontade de se destacar ou de subir. E menciona o caso da sua sábia avó, que um dia avisou: “É preciso progredir na vida”, comprar um terreno, um tijolo, uma casa... […] Mas não confundas progresso com escalada. Na verdade, quem sobe, sobe, sobe, sobe e, em vez de ter uma casa, montar um negócio, trabalhar ou ganhar uma posição, quando está no topo, a única coisa que mostra é o rabo.”

Lorenzo, que trabalha com crianças e adolescentes num bairro pobre, perguntou o que podem os Jesuítas fazer, pessoalmente e nas suas comunidades, para que o seu estilo de vida e o seu testemunho sejam cada vez mais sinal profético, com impacto na vida dos mais pobres. Francisco, por seu turno, lembrou que o trabalho com os pobres, implícito na fórmula inaciana, percorreu vários caminhos na Companhia, com desvios, mas tem sido uma busca muito intensa. Recordou que, na Argentina – no tempo de estudante – um dos pais foi morar numa vila pobre e olharam-no de soslaio, como sucedeu ao Padre Llanos, em Madrid, tido por louco. Hoje, a espiritualidade jesuíta leva-os ao compromisso com os que estão à margem: da religião, da vida. E, com o Padre Janssens, nasceram os centros de investigação e ação social, que abriram grande caminho de reflexão. Por fim, chegou a integração direta, a escolha de conviver com os pobres. A inserção entre os pobres ajuda, evangeliza. Santo Inácio leva fazer o voto de não mudar a pobreza na Companhia, mas torná-la mais estreita. É o espírito de pobreza que devemos ter.

Em suma, na espiritualidade inaciana, há a opção pelos pobres e pelo acompanhamento dos pobres. Porém, há  mil maneiras de abordar os problemas sociais. A inserção tem autenticidade esplêndida, por significar partilha e permitir conhecer e seguir a sabedoria popular.

O Papa, quando era arcebispo, gostava de ir às vilas misérias. Um dia, ao chegar lá, disseram-lhe que o Papa João Paulo II estava morto. Celebrou a missa com o povo e pararam a conversar. Uma idosa perguntou-lhe como se elege o Papa. Ele explicou e ela perguntou se o podiam fazer Papa. E, como o arcebispo disse que “podem fazer qualquer um Papa”, ela ditou: “Se te fizerem Papa, compra um cachorrinho. […] Alimenta o cachorrinho, primeiro.” E Bergoglio comentou: “A velha era pobre, de uma vila pobre , mas conhecia os factos da Igreja.”

De facto, os pobres têm uma sabedoria especial, a sabedoria de assumir o trabalho e a sua condição com dignidade, mas Francisco avisa: Quando os pobres se tornam perversos, por não conseguirem suportar a sua situação, podem abrir caminho o ressentimento e o ódio.  Devemos, pois, evitar que os pobres sejam esmagados pela situação, ajudando-os a caminhar, a progredir e a reconhecer a sua dignidade. Há problemas graves, nos bairros de lata, que não são mais graves do que os das zonas residenciais, só que, nestas, ficam ocultos. E há problemas graves, mas ao lado de sabedoria das pessoas que vivem do seu trabalho e suportam a doença e a morte. Daí que a pastoral popular seja uma riqueza.

Um irmão religioso, que passou um ano sabático nos Estados Unidos da América (EUA), apontou o facto de muitos, inclusive bispos, criticarem a forma de Francisco liderar a Igreja, acusando os jesuítas de já não serem, como era usual, “uma espécie de recurso crítico do Papa”. E perguntou se Francisco sentia falta da crítica do jesuíta ao Papa, ao Magistério, ao Vaticano. Aí, o Bispo de Roma, também jesuíta, assentiu que a situação nos EUA não é fácil, pois “uma atitude reacionária forte e organizada “estrutura um sentimento emocional de pertença”. Contudo, é de lembrar que “o atraso é inútil” e que “é preciso entender que há uma correta evolução na compreensão das questões de fé e de moral, desde que seguidos os três critérios indicados por Vicente de Lérins, no século V: a doutrina evolui ut annis consolidatetur, dilatetur tempore, sublimetur aetate. Ou seja, com o tempo, a doutrina avança, consolida-se expande-se e consolida-se e torna-se mais firme, mas sempre progredindo. A mudança desenvolve-se da raiz para cima, como a linfa que sobe, crescendo com estes três critérios. Por exemplo, hoje é pecado ter bombas atómicas (dantes, não existiam), como não se pode praticar a pena de morte (antes, era tolerada). E a escravatura, que Papas toleraram, hoje é rejeitada. Enfim, mudamos, mas com critérios. 

Vicente de Lérins compara o desenvolvimento biológico do homem e a transmissão de uma época a outra do depositum fidei, que cresce e se consolida com o tempo, poi, com o tempo, a compreensão do homem muda e a consciência do homem aprofunda-se. As outras ciências e a sua evolução também ajudam a Igreja neste crescimento de compreensão. Porém, alguns andam para trás. E, quando se retrocede, forma-se algo fechado e desconectado das raízes da Igreja e perde-se a linfa da revelação. Ora, os problemas que os moralistas devem examinar hoje são muito graves e, para enfrentá-los, devem correr o risco de mudar, mas na direção correta.

O Papa adverte que se pode vivenciar o clima de fechamento em algumas situações, como nos EUA. Mas perde-se a verdadeira tradição e recorre-se a ideologias em busca de apoio de todos os tipos. E a ideologia suplanta a fé; a pertença a um setor da Igreja substitui a pertença à Igreja.

O Padre Arrupe encontrou a Companhia atolada. O geral Ledóchowski elaborou o “Epítome”, de que nada sobrou. Era uma seleção de Constituições e Normas. Ledóchowski, muito ordeiro, disse estar a compilar para os jesuítas terem claro “tudo o que têm de fazer”. E enviou o primeiro exemplar a um abade beneditino amigo, que lhe respondeu: “Mataste a Companhia.”

Essa foi a espiritualidade que Arrupe recebeu e que teve a coragem de pôr em movimento. Algo saiu do controlo, como a questão da análise marxista da realidade. Teve de esclarecer algumas coisas, mas era um homem que sabia olhar para frente. E, em 1969, fundou o Centro Inaciano de Espiritualidade, cujo secretário, o Padre Luís Gonzalez Hernandez, foi encarregado de dar a volta ao Mundo para dar Exercícios e abrir este novo panorama.

Ora, os ditos grupos americanos, tão fechados, estão a isolar-se. Em vez de viverem da doutrina verdadeira, que se desenvolve e dá frutos, vivem de ideologias. E, quando, na vida, substituímos a doutrina por uma ideologia, perdemos como na guerra.

A quem lhe disse que é o Papa dos seus sonhos, depois do Concílio Vaticano II, e lhe perguntou o que sonha para a Igreja do futuro, respondeu que muitos questionam, sem o nomearem, os ensinamentos do Vaticano II. Ao olhar para o futuro, acha que devemos seguir o Espírito e ver o que Ele nos diz, com coragem. Ancorado no balanço da situação da Companhia de Jesus, De status Societatis, sustenta que o seu sonho para o futuro “é estar aberto ao que o Espírito nos diz, aberto ao discernimento e não ao funcionalismo”. E, evocando o Padre Arrupe, referiu que aos muito ocupados a trabalhar com os refugiados falou de oração. 

Ao recém-nomeado Mestre de Noviços, que perguntou que afetos desordenados são mais frequentes na Igreja e, sobretudo, na Companhia, respondeu com a carta ao clero de Roma sobre mundanismo e clericalismo. O clericalismo que se infiltra nos padres é pior, quando se infiltra nos leigos: leigos clericalizados são assustadores. Lembrou o seu grande mestre espiritual, Padre Fiorito, que lhe apresentou as obras do Padre Claude Judde, um diretor espiritual do século XVIII, do escolasticado de Chantilly, a quem se deve o ensaio sobre o discernimento das “palavras motoras”, que levam a uma decisão, sob a égide do Espírito. Um sério exame de consciência deve alertar contra os demónios que tocam a campainha, a pedir, sorrateiramente, licença para entrar e que tomam conta da casa. E Jesus avisa que a condição do homem é, então pior do que antes. 

O irmão mais novo da Província Portuguesa, de 56 anos de idade e 32 de casa, aponta a crise de vocações e pergunta o que o Papa acha que a Companhia pode fazer, no campo vocacional, para sair da crise. Francisco reconhece que houve um tempo em que havia, na Companhia, muitos irmãos. Quando foi inspetor, as melhores relações para a ordenação de um escolástico vinham dos irmãos ou das mulheres que trabalhavam na casa de formação. E diz que, para a vocação de irmão, não é necessário procurar candidatos: o Senhor cuidará disso; mas devemos abrir as portas para ver esta possibilidade em muitos jovens.

Um jesuíta que trabalha no centro universitário de Coimbra diz que alguns jovens universitários, bons e muito comprometidos com a Igreja, se identificam como homossexuais. Sentem-se parte ativa da Igreja, mas não veem, na doutrina, a forma de viver a sua afetividade e não veem o apelo à castidade como apelo pessoal ao celibato, mas como imposição. Assim, pergunta como agir, do ponto de vista pastoral para que essas pessoas se sintam, no seu modo de vida, chamadas por Deus a uma vida afetiva saudável e fecunda e como se pode ver, nas suas relações, a possibilidade de abrir e dar sementes do verdadeiro amor cristão, como o bem que podem fazer, a resposta que podem dar ao Senhor. O Papa, em resposta, disse crer que não há discussão sobre a convocatória dirigida a “todos”. Jesus é muito claro. Os convidados não quiseram ir à festa. E Ele disse para irem à encruzilhada a chamar toda a gente: “sãos e doentes”, “justos e pecadores”, todos. A porta está aberta a todos, cada um tem o seu lugar na Igreja. E devemos ajudar as pessoas a viver para poderem amadurecer naquele lugar, o que vale para todos os tipos de pessoas.

Hoje, o tema da homossexualidade é muito forte e a sensibilidade a este respeito muda de acordo com as circunstâncias históricas. Mas o que o Papa não gosta é que se olhe com uma lupa o “pecado da carne”. Se alguém explorava os trabalhadores, se mentia ou trapaceava, isso não contava, mas eram relevantes os pecados abaixo da cintura.

Então, todos estão convidados.  E é necessário aplicar a atitude pastoral mais adequada a cada um. Não devemos ser superficiais e ingénuos, forçando as pessoas a coisas e comportamentos para os quais não estão maduras ou de que não são capazes. Acompanhar as pessoas, espiritual e pastoralmente, exige sensibilidade e criatividade. Mas todos são chamados a viver na Igreja. E o Papa deu um exemplo. Uma freira de Charles de Foucauld, que tem 80 anos e é capelã do Circo de Roma com outras duas, participa nas audiências gerais de quarta-feira. Moram numa casa itinerante ao lado do Circo. O Papa foi vê-los. Têm a capela, cozinha, área onde dormem, tudo bem organizado. E a freira também trabalha muito com meninas transexuais. Um dia, perguntou se as podia levar à audiência. Obviamente, a resposta foi afirmativa. A primeira vez que vieram, choraram: não pensavam que o Papa as recebesse. E habituaram-se.

A quem lhe perguntava o que lhe pesa no coração e que alegrias está a vivenciar, garantiu que a alegria que mais tem presente é a preparação para o Sínodo, embora perceba que há deficiências na forma de o conduzir. Alegram-no as reflexões de pequenos grupos paroquiais, de pequenos grupos de igrejas e a grande emoção. Precisou que o Sínodo não é invenção sua. Foi Paulo VI, no final do Concílio, que percebeu que a Igreja Católica havia perdido a sinodalidade. E criou o Secretariado do Sínodo dos Bispos. Houve um progresso lento e imperfeito. Chegaram a querer um Sínodo com censura. Porém, nos últimos 10 anos, estamos a progredir, até alcançarmos “uma expressão madura do que é a sinodalidade”. A sinodalidade não é a procura de votos, como faria um partido político, mas deixar o Espírito guiar as coisas. 

Já o que muito preocupa o Papa são as guerras. Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, as guerras têm sido incessantes em todo o Mundo. E vemos o que está a acontecer. 

A quem o questionou sobre a missão dos jesuítas como Igreja, como Sociedade universal e como Província Portuguesa e sobre o seu papel na colheita dos frutos desta JMJ, para não se perder esta oportunidade, Francisco atirou que a JMJ estava a envolver muitos jovens portugueses, sendo necessário acolher a sua inquietação e ajudá-los a desenvolvê-la, para que a inquietação não se torne coisa do passado. A JMJ é uma plantação no coração de cada um e de cada uma, portanto não pode acabar como lembrança do passado. É preciso chegar a um fruto, o que não é fácil. E o Pontífice exorta os jesuítas a continuarem com os jovens que lá estavam e com os que não participaram. A água foi agitada e o Espírito Santo aproveita o ensejo para tocar os corações. E, agora, é a vez dos agentes da pastoral: acompanhá-los para que se mantenham e cresçam. “É hora de lançar as redes, no sentido evangélico da palavra”.

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A doutrina é mesma, porém, evolui como a vida, amadurece e cria novos contornos!

2023.08.29 – Louro de Carvalho

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