segunda-feira, 7 de agosto de 2023

O golpe de Estado no Níger sem metas clarificadas e situação definida

 

A 26 de julho, o denominado Conselho Nacional para a Salvaguarda da Pátria (CNSP) tomou o poder no Níger, através de golpe de Estado, que implicou a deposição do presidente Mohamed Bazoum, mas os objetivos não estão clarificados, pois a questão da insegurança, invocada no comunicado do líder golpista, Abdorahamane Tciani, é o cliché dos golpes no Sahel.

O Sahel ou Sael é uma faixa de 500 a 700 quilómetros de largura, em média, e 5 400 quilómetros de extensão, entre o deserto do Saara, ao Norte, e a savana do Sudão, ao Sul; e entre o Oceano Atlântico, a Oeste, e ao mar Vermelho, a Leste.

Apesar de o Níger ter tido o seu quinhão de insegurança na região e de ter sofrido cinco atentados desde que se tornou independente da França, em 1960, tem vivido em melhores condições do que os vizinhos governados por juntas, e as reformas políticas vigentes desde 2013 asseguraram alguma inclusão. Com efeito, nos vizinhos Mali, Burkina Faso e até no Chade, os militares atribuíram à insegurança a sua presença nos palácios presidenciais. Apesar disso, a tomada do poder pelos militares não melhorou a segurança em nenhuma circunstância.

A situação escalou no país que tem o maior território da região, onde afiliados da Al-Qaeda e do autodenominado Estado Islâmico provocam cerca de 50% das vítimas globais de terrorismo, em particular no Mali e no Burkina Faso.

Nos dias 2 e 3 de agosto, o conselho dos 15 membros da Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO/ECOWAS), após haver imposto sanções económicas ao Níger, reuniu-se na Nigéria, para deliberar medidas futuras e porfiar a sua intolerância ao golpe, exigindo que os autores devolvam o poder a Bazoum, no prazo de uma semana, sob ameaça de intervenção militar pelas forças daquela organização regional. Todavia, os governos burquinabês e maliano prometeram reagir à pretensão da ECOWAS, defendendo os golpistas do Níger.

O regresso aos golpes não é novidade: uns toleram-nos; outros não. A ebulição no Sahel não é de hoje. As condições climáticas, políticas, económicas e demográficas na região são suficientes para serem utilizadas por quem queira manter o pode. A situação pode levar à guerra, pois Burkina Faso e o Mali farão tudo o que for necessário para impedir que a ECOWAS reverta a atual liderança do Níger e a Nigéria pressionará a reposição do poder anterior legítimo. E os próprios Nigerinos estão divididos.

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golpe de Estado no Níger em 2023 – o quinto golpe militar, desde a independência em 1960, e o primeiro desde 2010 – ocorreu a 26 de julho, quando a guarda presidencial deteve Bazoum e o comandante da guarda presidencial, general Abdourahamane Tciani, se proclamou líder de uma junta militar. A guarda presidencial fechou as fronteiras, suspendeu as instituições estatais e declarou o toque de recolher.

O país sofrera, como se disse, quatro golpes militares desde a independência, mas, nesse intervalo, houve várias tentativas golpistas, como a de 2021, quando dissidentes militares tentaram tomar o palácio presidencial, dois dias antes da posse do presidente eleito Mohamed Bazoum, o primeiro presidente democraticamente eleito do país a assumir o cargo de um antecessor eleito de forma semelhante. O golpe de 2023 ocorreu, também, na sequência de golpes recentes em países próximos, como a Guiné-Conacri, o Mali e o Sudão, em 2021, e dois em Burkina Faso, em janeiro e em setembro de 2022, o que levou a ter a região como “cinturão golpista”. Terão impulsionado a revolta o aumento do custo de vida e as perceções de incompetência e de corrupção do governo. O país ocupa, não raro, o último lugar no índice de desenvolvimento humano (IDH) da Organização das Nações Unidas (ONU) e sofre ingerências islamistas  da Al-Qaeda, do Estado Islâmico e do Boko Haram, apesar de os seus militares receberem treino e apoio logístico dos Estados Unidos da América (EUA) e da França, que detêm bases no país.

Em 2022, o país tornou-se o centro das operações antijihadistas da França na região do Sahel após a sua expulsão do Mali e de Burkina Faso, sendo Bazoum descrito como um dos poucos líderes pró-ocidentais da região. O Níger tornou-se aliado fundamental para as forças ocidentais, especialmente francesas e dos EUA. Vários golpes e crescentes sentimentos antifranceses na região tornaram-no o parceiro de última instância da França. E diz-se que oficiais treinados pelos EUA treinaram muitos membros da guarda presidencial.

Na manhã do dia 26, o palácio e os ministérios adjacentes foram bloqueados por veículos militares e os funcionários do palácio impedidos de aceder aos seus locais de trabalho. Até 400 apoiantes civis de Bazoum se aproximaram do palácio, mas foram dispersados pela guarda presidencial com tiros. Em resposta, as forças armadas do Níger cercaram o palácio presidencial, em apoio a Bazoum. O exército emitiu um comunicado a dizer que garantiu os principais pontos estratégicos no país. Todavia, à noite, o coronel-major da Força Aérea Amadou Abdramane foi ao canal de televisão estatal Télé Sahel afirmar que o presidente Bazoum havia sido destituído do poder e anunciou a formação do CNSP. Disse que as forças de defesa e segurança decidiram derrubar o governo, “devido à deterioração da situação de segurança e má governança”. E anunciou a dissolução da Constituição, a suspensão das instituições estatais, o fechamento das fronteiras e o toque de recolher nacional das 22h00 às 05h00, até novo aviso, alertando contra qualquer intervenção estrangeira.

Na manhã do dia 27, Bazoum twittou que os Nigerinos que amam a democracia salvaguardariam os ganhos duramente conquistados , indicando a recusa em renunciar. O seu ministro das Relações Exteriores, Hassoumi Massaoudou, disse ao France 24 que o “poder legal e legítimo” do país permanecia com o presidente e reiterou que Bazoum estava em boas condições e que o exército não estava todo envolvido. Declarando-se chefe de Estado interino, convocou todos os democratas a fazerem esta aventura fracassar. Entretanto, no mesmo dia, a liderança das forças armadas emitiu uma declaração, assinada pelo chefe do Estado-Maior do Exército, general Abdou Sidikou Issa, de apoio ao golpe, para “preservar a integridade física” do presidente e da família e para evitar um confronto mortal que leve um banho de sangue e afete a segurança da população.

Também no dia 27, cerca de mil apoiantes da junta fizeram uma manifestação hasteando bandeiras russas, expressaram apoio ao Grupo Wagner e apedrejaram o veículo de um político que passava. Denunciaram a presença francesa e de outras bases estrangeiras. Outros manifestantes reuniram-se no exterior da sede do PNDS-Tarayya, partido de Bazoum, com imagens mostrando-os a apedrejar e a incendiar veículos. Em seguida, saquearam e queimaram o local, forçando a polícia a dispersá-los com gás lacrimogéneo. E ocorreram manifestações em frente à Assembleia Nacional, o que levou o Ministério do Interior, à noite, a proibir todas as manifestações com efeito imediato. E os funcionários públicos foram aconselhados a ficar em casa.

No dia 28, o general Abdorahamane Tciani autoproclamou-se presidente do CNSP, num discurso na Télé Sahel. Criticou a estratégia de segurança do governo pela suposta ineficácia e pela falta de colaboração com o Mali e com Burkina Faso, mas não deu prazo para o retorno ao governo de civis. A sua posição como chefe de Estado de facto foi, posteriormente, confirmada pelo coronel Abdramane, que acusou funcionários do governo de conspirarem contra o novo regime, abrigados em embaixadas estrangeiras.

No dia 29, o CNSP acusou a ECOWAS de um plano de agressão contra o Níger por meio de uma iminente intervenção militar em Niamey apoiada por certos países ocidentais. E o Conselho de Paz e Segurança da União Africana (UA) emitiu um ultimato, afirmando que, se os militares não “retornassem imediata e incondicionalmente, aos quartéis e não restaurassem a democracia constitucional, dentro de um prazo máximo de quinze dias”, o bloco seria obrigado a tomar “medidas necessárias, incluindo medidas punitivas contra os perpetradores”. No dia 30, a ECOWAS  deu à junta um ultimato para que Bazoum fosse reinstalado como presidente em uma semana. E, a 31, a presidência do Chade divulgou fotos do presidente Mahamat Déby Itno com o presidente Bazoum, na sua primeira aparição desde o golpe. E a junta ordenou a suspensão das exportações de urânio e ouro para a França, acusando o líder interino, substituto de Bazoum, de autorizar um ataque francês ao palácio presidencial, para libertar Bazoum.

A 1 de agosto, a junta anunciou a reabertura das fronteiras. Porém, houve apagões em cidades do Níger, com a empresa de eletricidade Nigelec a culpar a Nigéria de cortar o fornecimento.

A ECOWAS enviou nova delegação ao Níger, para negociar. Abdel-Fatau Musah, comissário da ECOWAS para Assuntos Políticos, Paz e Segurança, afirmou: “A opção militar é a última opção na mesa, o último recurso, mas temos de nos preparar para a eventualidade.” Entretanto, chefes militares dos Estados-membros da ECOWAS reuniram-se em Abuja, na Nigéria, para discutir a situação no Níger. E uma delegação da junta nigerina, liderada pelo general Salifou Mody, viajou para Bamaco, capital do Mali, e para Uagadugu, capital de Burquina Faso, o que originou especulações sobre se buscava o apoio do Grupo Wagner, presente no Mali.

A 4 de agosto, a junta anunciou ter retirado o acordo militar do Níger com a França e ordenou a retirada dos embaixadores do Níger na França, na Nigéria, no Togo e nos EUA.

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Enfim, há acusações mútuas: o Ocidente africano e europeu – com uns apontam grupos jihadistas e outros frisam a pretensão russa, através do Grupo Wagner, com presença em África, sem diminuir a presença à beira da Rússia e à beira de alguns países limítrofes.

Ana Carina Franco, investigadora no Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI-NOVA), não vê a ECOWAS a intervir no Níger. A especialista em conflitos e em pós-conflitos reconhece que já antes havia conflito na região, travados por grupos jihadistas.

Logo após o golpe, o centro da capital, Niamey, foi tomado por manifestações populares pela libertação do presidente deposto, mas havia apoiantes da nova situação e bandeiras da Rússia eram penduradas ou agitadas bem à vista das câmaras dos fotógrafos internacionais.

Na origem do golpe estará o alinhamento de Bazoum com os parceiros ocidentais. O governo acolheu o contingente francês que saiu do Mali, e era a partir da base de Niamey que operava a presença militar estrangeira para toda a região central e ocidental do continente.

Tratar-se-á do ressurgir de um movimento anticolonial de afirmação regional na área mais francófona de África, contra a política, a presença e os interesses franceses na região, que vão da presença económica, pela via da exploração e da importação de urânio, essenciais para as centrais nucleares em França, e de ouro, passando pela afirmação político-diplomática e pela presença militar na região? Ora, a revolta social e identitária contra a presença francesa afeta, por tabela, a aceitação e o apoio das missões da União Europeia (UE) por estes países, entendidas como extensão da política francesa no Sahel.

Nestes termos, surge, estrategicamente, a Rússia. Com empresas de segurança privada (por exemplo, o Grupo Wagner), tem ocupado este vazio político-estratégico. Usa-as, para proteger e para reforçar os seus interesses e os das emergentes lideranças africanas.

A cimeira África-Rússia, de 27 e 28 de julho, em São Petersburgo, firmou a influência russa na África. Porém, fracassou em alguns aspetos, desde logo pela presença de apenas 17 chefes de Estado dos 54 países africanos, pois a presença da China (mais subtil) é mais facilitada na África.

Assim, não se sabe qual o desfecho do golpe no Níger e dos acontecimentos no Sahel.

2023.08.06 – Louro de Carvalho

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