quarta-feira, 2 de agosto de 2023

Discurso do Papa Francisco no Centro Cultural de Belém, em Lisboa a 2 de agosto de 2023

 

Pela riqueza, completude, pertinência e abrangência da sua mensagem, transcrevo o discurso do Papa Francisco ao Corpo Diplomático, às Autoridades e à Sociedade Civil, no CCB em Lisboa, por ocasião da sua visita apostólica a Portugal, para acompanhar a Jornada Mundial da Juventude 2023 (JMJ 2023), que traduzi do Italiano, língua em que foi proferido.

É uma bela, interpelante e urgente mensagem a Portugal, à Europa, mormente à União Europeia, ao Ocidente e ao Mundo. E toca em todos os aspetos que hoje interessam à Humanidade, nomeadamente no âmbito da paz, da educação, da vida, da segurança, da juventude, das crianças, dos idosos, da política, da religião, do ecumenismo, do diálogo inter-religioso, da boa vontade, do ambiente, do futuro, da fraternidade, da amizade social, da reconciliação, do diálogo intergeracional. É óbvio que, para o Pastor da Igreja Católica, a referência é Jesus Cristo, não outra. Aliás, caminha-se para Cristo, quando se caminha ao encontro do outro, como já dizia o Cardeal Patriarca de Lisboa.      


"Senhor Presidente da República,

Senhor Presidente da Assembleia da República,

Senhor Primeiro Ministro,

Membros do Governo e do Corpo Diplomático,

Autoridades, representantes da sociedade civil e do mundo da cultura,

Senhoras e senhores!

Saúdo-vos cordialmente e agradeço ao Senhor Presidente as boas-vindas e as palavras gentis que me dirigiu – o Presidente é muito acolhedor, obrigado! Estou feliz por estar em Lisboa, cidade de encontro que abraça vários povos e culturas e que hoje se torna cada vez mais universal; em certo sentido, torna-se a capital do mundo, a capital do futuro, porque os jovens são o futuro. Está bem adaptada ao seu caráter multiétnico e multicultural – estou a pensar no bairro da Mouraria, onde convivem pessoas de mais de sessenta países – e revela o caráter cosmopolita de Portugal, que tem as suas raízes na vontade de se abrir ao Mundo e de o explorar, navegando rumo a novos e mais amplos horizontes.

Não muito longe daqui, no Cabo da Roca, está gravada a frase de um grande poeta desta cidade: «Aqui… onde a terra se acaba e o mar começa» (L. Vaz de Camões, Os Lusíadas, VIII). Durante séculos, acreditava-se que era o confim do Mundo, e em certo sentido é verdade: estamos no confim do mundo, porque este país faz fronteira com o oceano, que faz fronteira com os continentes. Lisboa traz o seu abraço e o seu perfume. Gosto de me associar ao quanto os portugueses gostam de cantar: «Lisboa tem cheiro de flores e de mar» (A. Rodrigues, Cheira bem, cheira a Lisboa, 1972). Um mar que é muito mais do que um elemento paisagístico, é um chamamento impresso na alma de todos os portugueses: «mar sonoro, mar sem fundo, mar sem fim» como lhe chamou uma poetisa local (S. de Mello Breyner Andresen, som do Mar). Diante do oceano, os portugueses refletem sobre os imensos espaços da alma e sobre o sentido da vida no Mundo. E eu também, deixando-me levar pela imagem do oceano, gostaria de partilhar algumas reflexões.

Segundo a mitologia clássica, Oceanus é o filho do céu (Úrano): a sua vastidão leva os mortais a olharem para cima e elevarem-se rumo ao infinito. Mas, ao mesmo tempo, Oceanus é o filho da terra (Gea) que ele abraça, convidando-nos assim a envolver em ternura todo o mundo habitado. Com efeito, o oceano liga, não só povos e países, mas também terras e continentes; por isso Lisboa, cidade do oceano, lembra a importância do todo, de pensar as fronteiras como zonas de contacto, não como fronteiras que separam. Sabemos que hoje as grandes questões são globais, mas, muitas vezes, experimentamos a ineficácia em responder-lhes adequadamente, porque diante de problemas comuns o Mundo está dividido, ou pelo menos não suficientemente coeso, incapaz de enfrentar unidos, o que põe todos em crise. Parece que as injustiças planetárias, as guerras, as crises climáticas e migratórias correm mais rápido do que a capacidade e, muitas vezes, do que a vontade de enfrentar esses desafios, juntos.

 

Lisboa pode sugerir uma mudança de ritmo. Aqui, em 2007, foi assinado o tratado homónimo de reforma da União Europeia. Afirma que «a União tem por fim promover a paz, os seus valores e o bem-estar dos seus povos» (Tratado de Lisboa que altera o Tratado da União Europeia e o Tratado que institui a Comunidade Europeia, art. 1,4/2.1); mas vai mais longe, afirmando que “nas relações com o resto do mundo [...] contribui para a paz, para a segurança, para o desenvolvimento sustentável da Terra, para a solidariedade e para o respeito mútuo entre os povos, para o comércio livre e justo, para a eliminação da pobreza e para a proteção dos direitos humanos” (art. 1,4/2.5). Não são apenas palavras, mas marcos miliares do percurso da comunidade europeia, gravados na memória desta cidade. Aqui está o espírito do todo, animado pelo sonho europeu de um multilateralismo mais amplo do que só o contexto ocidental.

De acordo com uma etimologia controversa, o nome Europa deriva de uma palavra que indica a direção do oeste. No entanto, é certo que Lisboa é a capital mais ocidental da Europa continental. Recorda, por isso, a necessidade de abrir formas mais alargadas de encontro, como já faz Portugal, sobretudo com países de outros continentes que partilham a mesma língua. Espero que a Jornada Mundial da Juventude seja, para o “velho continente” – podemos dizer o “ancião” continente – um impulso de abertura universal, isto é, um impulso de abertura que o rejuvenesce. Porque o mundo precisa da Europa, da verdadeira Europa: precisa do seu papel de construtor de pontes e de pacificador na sua parte oriental, no Mediterrâneo, em África e no Médio Oriente. Desta forma, a Europa poderá trazer à cena internacional a sua originalidade específica, surgida no século passado, quando, do cadinho dos conflitos mundiais, deixou ressoar a centelha da reconciliação, concretizando o sonho de construir o amanhã com o inimigo de ontem, para iniciar caminhos de diálogo, caminhos de inclusão, desenvolvendo uma diplomacia de paz que extingue conflitos e para aliviar tensões, capaz de perceber os mais leves sinais de relaxamento e de ler nas entrelinhas mais tortas.

No oceano da História, navegamos numa conjuntura tempestuosa e faltam caminhos corajosos para a paz. Olhando com grande afeto para a Europa, no espírito de diálogo que a carateriza, pode-se perguntar: Para onde navegas, se não ofereces caminhos de paz, caminhos criativos para pôr fim à guerra na Ucrânia e aos tantos conflitos que estão a sangrar o mundo? E, novamente, alargando o campo: Que rota segues, Ocidente? A tua tecnologia, que marcou o progresso e globalizou o mundo, por si só não basta; muito menos bastam as armas mais sofisticadas, que não representam investimentos para o futuro, mas empobrecimentos do verdadeiro capital humano, o da educação, da saúde, do estado social. É preocupante quando se lê que em muitos lugares os recursos são continuamente investidos em armas e não no futuro dos filhos. E isso é verdade. O ecónomo dizia-me, há alguns dias, que o melhor retorno de investimento esta no fabrico de armas. Investimos mais em armas do que no futuro dos filhos. Sonho com uma Europa, coração do Ocidente, que use bem o seu engenho para extinguir os focos de guerra e para acender as luzes da esperança; uma Europa que sabe reencontrar a sua alma juvenil, sonhando com a grandeza do todo e indo além das necessidades do imediato; uma Europa que inclua povos e povos com cultura própria, sem recorrer a teorias e a colonizações ideológicas. E isto ajuda-nos a pensar nos sonhos dos pais fundadores da União Europeia: sonhavam à grande!

O oceano, uma imensa extensão de água, recorda as origens da vida. No mundo desenvolvido de hoje tornou-se paradoxalmente prioritário defender a vida humana, posta em risco pelas derivas utilitárias, que a usam e a descartam: a cultura do desperdício da vida. Penso em tantas crianças não nascidas e em idosos abandonados si próprios, na dificuldade de acolher, proteger, promover e integrar quem vem de longe e bate às portas, na solidão de tantas famílias com dificuldade para pôr no mundo e fazer crescer os filhos. Também aqui seria preciso dizer: Para onde navegais, Europa e Ocidente, com o descarte dos idosos, os muros de arame farpado, os massacres no mar e os berços vazios? Para onde navegais? Para onde ides se, diante dos males da vida, ofereceis remédios precipitados e errados, como o acesso fácil à morte, uma solução conveniente que parece doce, mas que, na verdade, é mais amarga do que as águas do mar? E penso em muitas leis sofisticadas sobre a eutanásia.

Mas Lisboa, abraçada pelo oceano, dá-nos motivos de esperança, é cidade de esperança. Um oceano de jovens está chegando a esta cidade acolhedora; e quero agradecer a Portugal o grande trabalho e o generoso empenho assumido para acolher um evento tão complexo de gerir, mas cheio de esperança. Como dizem por aqui: “Ao lado dos jovens, não se envelhece.” Jovens de todo o Mundo que cultivam o desejo de unidade, de paz e de fraternidade, jovens que sonham e nos desafiam a realizar os seus sonhos de bem. Eles não estão nas ruas a gritar raiva, mas a compartilhar a esperança do Evangelho, a esperança da vida. E, se hoje existe um clima de protesto e de insatisfação em muitos lugares, terreno fértil para populismos e para teorias da conspiração, a Jornada Mundial da Juventude é uma oportunidade para construirmos juntos. Reaviva a vontade de criar novidades, de fazer-se ao mar e navegar juntos rumo ao futuro. Algumas palavras ousadas de Pessoa me vêm à mente: «Navegar é preciso, viver não é preciso [...]; o que é preciso é criar» (Navegar é preciso). Então vamos ocupar-nos da criatividade para construirmos juntos! Imagino três lugares de esperança nos quais todos podemos trabalhar juntos: o meio ambiente, o futuro, a fraternidade.

O ambiente. Portugal partilha com a Europa muitos esforços exemplares na defesa da criação. Mas o problema global continua gravíssimo: os oceanos estão a sobreaquecer e as suas profundezas trazem à tona a bruteza com que poluímos a nossa casa comum. Estamos a transformar vastas reservas de vida em aterros de plástico. O oceano lembra-nos que a vida humana é chamada a harmonizar-se com um ambiente maior do que nós, que deve ser guardado, que deve ser guardado com cuidado, a pensar nas gerações mais novas. Como podemos dizer que acreditamos nos jovens, se não lhes damos um espaço saudável para construírem o seu futuro?

O futuro é o segundo canteiro de obras. E o futuro são os jovens. Porém, desanimam-nos muitos fatores, como a falta de trabalho, o ritmo frenético em que estão imersos, o aumento do custo de vida, a dificuldade de encontrar um lar e, ainda mais preocupante, o medo de constituir família e dar à luz asccrianças. Na Europa e, de forma mais geral, no Ocidente, assistimos a uma fase descendente da curva demográfica: o progresso parece ser uma questão de evolução da tecnologia e do conforto dos indivíduos, enquanto o futuro pede que se contrarie a diminuição da natalidade e a diminuição da vontade de viver. A boa política pode fazer muito nisso, pode gerar esperança. Com efeito, não é chamada para deter o poder, mas para dar às pessoas a força da esperança. É chamada, hoje mais do que nunca, a corrigir os desequilíbrios económicos de um mercado que produz riquezas, mas não as distribui, empobrecendo as almas de recursos e de certezas. É chamada a redescobrir-se como geradora de vida e de cuidado, a investir com clarividência no futuro, nas famílias e nas crianças, a promover alianças intergeracionais, onde o passado não se apaga com uma passada de esponja, mas os laços entre jovens pessoas e idosos. Devemos retomar isto: o diálogo entre jovens e velhos. O sentimento da saudade portuguesa recorda-o, que exprime uma nostalgia, um desejo de um bem ausente, que só renasce no contacto com as próprias raízes. Os jovens devem encontrar as suas raízes nos idosos. Neste sentido, é importante a educação, que, não só pode transmitir noções técnicas para o progresso económico, mas se destina a introduzir uma história, a transmitir uma tradição, a valorizar a necessidade religiosa do homem e a fomentar a amizade social.

O último canteiro de obras da esperança é o da fraternidade, que nós, cristãos, aprendemos do Senhor Jesus Cristo. Em muitos lugares de Portugal, o sentido de vizinhança e da solidariedade está muito vivo. Porém, no contexto geral de uma globalização que nos aproxima, mas não nos dá proximidade fraterna, todos somos chamados a cultivar o sentido de comunidade, a partir da procura de quem vive ao nosso lado. Porque, como notou Saramago, “o que dá verdadeiro sentido ao encontro é a pesquisa, e é preciso percorrer um longo caminho para chegar ao que está próximo” (Todos os nomes, 1997). Como é bom redescobrirmo-nos como irmãos e irmãs, trabalhar pelo bem comum, deixando para trás contrastes e diferenças de opinião! Também aqui encontramos o exemplo dos jovens que, com o seu grito de paz e o seu desejo de vida, nos levam a derrubar as rígidas cercas de pertença erguidas em nome de diferentes opiniões e de crenças. Conheço muitos jovens que aqui cultivam o desejo de serem vizinhos; penso na iniciativa Missão País, que leva milhares de jovens a viverem experiências de solidariedade missionária no espírito do Evangelho nas periferias, sobretudo nas aldeias do interior, indo visitar muitos idosos solitários, e esta é uma “unção” para a juventude. Gostaria de agradecer e encorajar, ao lado de tantos que se preocupam com os outros na sociedade portuguesa, a Igreja local, que tanto bem faz, longe dos holofotes.

Irmãos e irmãs, sintamo-nos todos chamados, fraternalmente, a dar esperança ao mundo em que vivemos e a este magnífico país. Deus abençoe Portugal!"

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