quinta-feira, 31 de agosto de 2023

Concurso para escola de ciberdefesa exige experiência em ciberguerra

 

 

O concurso público internacional em curso, no valor de 10,5 milhões de euros, para a criação da escola de ciberdefesa no Estado-Maior-General das Forças Armadas (EMGFA) exige aos candidatos experiência comprovada em operações de ciberguerra e a revelação de duas entidades governamentais a quem prestaram serviços, sendo este o principal motivo a justificar que só duas empresas – nenhuma delas conhecida no setor por possuir tal qualificação – tenham apresentado propostas de candidatura a este projeto, a executar em sete anos.

O caderno de encargos a que acederam, pelo menos 11 empresas, que, por ser classificado com grau de “confidencial”, tiveram de o levantar no Gabinete Nacional de Segurança (GNS), estabelece como um dos requisitos, para serem candidatos a prestarem “Serviços de Formação e Consultoria em Ciberdefesa”, a demonstração de que foram consultores, nos últimos cinco anos, no “suporte, apoio e orientação para a condução de operações militares no ciberespaço a, pelo menos, duas entidades governamentais”. Além disso, impõe-se que tal demonstração contenha, no mínimo, informação das caraterísticas principais dos serviços prestados, das suas componentes, dos objetivos principais, da data do início e do tempo do projeto.

Foi, pois, com grande estupefação que as empresas, entre as quais alguns gigantes mundiais, leram o caderno de encargos e não se apresentaram a concurso. E, face a esta originalidade, só duas empresas apresentaram propostas e uma terceira concorreu fora do prazo.

Um perito em ciberdefesa, envolvido, inicialmente, na criação da escola – prioritária pelo Ministério da Defesa Nacional (MDN), está há quatro anos a ser preparada, mas, com a mudança do CEMGFA, tudo voltou à estaca zero – considera aberrante “exigir que as empresas revelem o que fizeram para os seus clientes”, o que é “uma quebra total do sigilo a que estão obrigadas”. E, se o objetivo era descredibilizar o concurso ou deixá-lo deserto, foi atingido. As desistentes ficaram apreensivas com a possibilidade de o governo ter permitido isto e perguntam se empresas portuguesas ou o EMGFFA divulgariam operações em que participem em contexto idêntico.

Instado a clarificar este requisito específico, o porta-voz do EMGFA escudou-se com a classificação do concurso (“concurso público limitado por prévia qualificação”). Assim, a existência deste requisito no procedimento concursal deve ser apenas do conhecimento das empresas envolvidas. E, sobre o facto de só haver propostas de duas firmas, sustenta que, por estar em curso a análise das candidaturas, que terminará com a elaboração do relatório preliminar da fase de qualificação, “não é possível responder, na plenitude e com assertividade”.

Entretanto, sabe-se que uma das empresas que apresentou proposta é uma das maiores operadoras nacionais de telecomunicações, em relação à qual se desconhece experiência em ciberguerra. A outra, uma corporação, apresenta-se no seu site como líder do mercado tecnológico, em Portugal, na área da cibersegurança e refere ter estado envolvida como patrocinadora, pelo menos, num exercício de ciberguerra organizado pelo Exército, em 2021, sendo chefe de Estado-Maior do Exército (CEME) o general José Nunes da Fonsecaagora chefe de Estado-Maior-General das Forças Armadas (CEMGFA).

Após a tomada de posse do novo cargo (a 1 de março), o CEMGFA decidiu abrir concurso público internacional, obrigando a voltar à estaca zero o trabalho para a construção desta capacidade que vinha sendo desenvolvido pelo seu antecessor Almirante Silva Ribeiro. Esta medida surpreendeu as quatro empresas que foram chamadas pela equipa do anterior CEMGFA e que aguardavam, desde fevereiro último, o convite para apresentarem propostas, depois de algumas terem passado os últimos três anos envolvidas no projeto. Tal envolvimento terá sido levado ao mínimo detalhe de confiança entre o EMGFA e as empresas (uma americana, duas israelitas e uma de Singapura, todas com credenciação para tratar informação classificada) ao ponto de terem sido preparados programas para os cursos. Nenhuma apresentou propostas, agora.

Interpelado sobre se o patrocínio ao Exército da corporação candidata não suscitará dúvidas de favorecimento ou conflito de interesses, se for a escolhida, o porta-voz do EMGFA assegurou que tais patrocínios não envolvem quantias monetárias, sendo consubstanciados, geralmente, pela disponibilização de prémios físicos aos participantes, no contexto do exercício, ou pela disponibilização de infraestruturas para apoio. E adiantou que o exercício anual do Exército conexo com a ciberdefesa tem a designação de Ciber Perseu, procurando-se, com ele, contribuir para a promoção do desenvolvimento das capacidades nacionais de ciberdefesa. O exercício tem contado com a participação das estruturas de Ciberdefesa do EMGFA, dos ramos das Forças Armadas, de delegações militares de países amigos e aliados, do Centro de Nacional de Cibersegurança e, por vezes, com o patrocínio de empresas da área.

A dita empresa (a corporação), segundo o portal dos contratos públicos, tem 849 contratos com o Estado, no valor de 57,3 milhões de euros. Com o EMGFA assinou oito, desde 2016, no valor de cerca de 400 mil euros, dois deles, de cerca de 170 mil, por concurso público, já depois da tomada de posse de Nunes da Fonseca, e um deles, no valor de 151 mil euros (o mais elevado de todos), para fazer, em 30 dias, um “licenciamento checkpoint”, que tinha custado, em 2022, pouco mais de 90 mil euros. Também o Estado-Maior do Exército (EME) fez 17 contratos com esta empresa. Destes, 13 foram no mandato de Nunes da Fonseca enquanto CEME (19 de outubro de 2018 a 29 de fevereiro de 2023). Ainda, a 29 de agosto, foi registado, no portal, um contrato entre esta entidade e o Exército, no valor de 15 mil euros – incluído o imposto sobre o valor acrescentado (IVA) –, para a expansão da rede de dados do ramo. E, a 18 de agosto, o Exército tinha registado outro contrato, de cerca de 10 mil euros, para a instalação do “Sistema Integrado de Controlo de Acessos e Videovigilância do Exército”. A empresa tem, ainda, diversos contratos com o MDN, com a Marinha e com a Força Aérea.

Além do requisito específico já referido, houve outros fatores que podem ter contribuído para afastar concorrentes, sobretudo estrangeiros, apesar de se tratar de concurso público internacional. Por exemplo, a exigência de certificado de qualidade de saúde e segurança no trabalho emitido pelo Instituto Português de Acreditação e a prova de capacidade financeira através de um banco português, garantindo ao candidato uma linha de crédito de 4,5 milhões de euros que o habilite a sacar, para efeitos contratuais, os referidos meios financeiros.

Estes quesitos tinham de ser conseguidos em cerca de seis semanas (o concurso foi aberto em 30 de junho e o prazo de entrega de propostas foi, primeiro, a 6 de agosto, em plena Jornada Mundial da Juventude e visita do Papa a Portugal, com o país a meio gás) e, depois, prorrogado para 22, tornando impossível o cumprimento. Por isso, não surpreende que das 11, nove tenham desistido.

Em despacho de agosto de 2022, a ministra da Defesa Nacional, Helena Carreiras, autorizou a despesa de 11,5 milhões de euros (+IVA) até 2030, para este plano, valor a que veio a acrescentar mais um milhão, para a construção/adaptação das infraestruturas onde será construída a escola de ciberdefesa, pois considera imperativoqualificação dos recursos humanos afetos à ciberdefesa nacional, “garantindo a capacidade de realizar todo o espetro de operações militares no, e através do, ciberespaço de interesse nacional, assegurando a sua defesa e a salvaguarda da soberania nacional”.

Poucas situações poderiam impulsionar mais a criação de uma capacidade de ciberdefesa que ser alvo de um ataque cibernético com repercussões internacionais. Mas, apesar dos sinais de alerta de há um ano, quando o MDN e o EMGFA foram alvo de graves ciberataques (pouco antes do despacho da ministra), o processo ensarilhou-se e não se prevê data para a sua concretização.

O gabinete da ministra, em relação às dúvidas sobre o caderno de encargos para a aquisição de serviços de consultoria, remete para o EMGFA todas as questões conexas com o concurso. Porém, salienta, que “o governo reforçou significativamente o investimento na capacidade de Ciberdefesa, tendo aumentado em 39%, num total de mais de 70 milhões de euros, as verbas para esse efeito na Lei de Programação Militar (LPM) recentemente publicada”. E, quanto ao treino, além da “formação de base, contratualizada com o Instituto Politécnico de Beja”, confirma que a “formação avançada”, a que se destina o concurso, visa “capacitar os recursos humanos com as perícias técnicas necessárias ao desenvolvimento sustentado e consolidado da capacidade para conduzir operações militares no ciberespaço”. Nada refere sobre os requisitos exigidos, nem sobre o facto de só duas empresas terem apresentado propostas, nem se pronuncia sobre o facto de uma delas ter patrocinado anteriormente o Exército.

Os atrasos são consideráveis e, em meu entender, condicionados às ambições de protagonismo quer do Exército, quer do MDN, a que se alia o EMGFA (como verifiquei em tempos), bem como às óticas das diversas personalidades que lideram o projeto. Não obstante, é de referir que a edificação da capacidade de Ciberdefesa vem sendo realizada através de várias medidas complementares, nomeadamente através da aprovação da Estratégia Nacional de Ciberdefesa (outubro de 2022), da criação da Cyber Academia and Innovation Hub (maio de 2023), da aquisição, da manutenção e da atualização de plataformas e equipamentos, da implementação de doutrina militar conjunta para as operações no ciberespaço, do treino, ou da ligação ao sistema científico e tecnológico nacional.

A formação é dos principais vetores e, nesse campo, está em curso desde 2022 formação de base, contratualizado com o Instituto Politécnico de Beja, abrangendo mais de meia centena de militares, entre os módulos realizados e os planeados para este ano. E a formação avançada é outra componente, visando capacitar os recursos humanos com as perícias técnicas necessárias ao desenvolvimento sustentado e consolidado da capacidade para conduzir operações militares no ciberespaço. Nesse sentido, a tutela autorizou a realização da despesa necessária à contratação de serviços de formação e consultoria especializados para 2022-2030.

E, além do previsto na LPM, a edificação da capacidade de Ciberdefesa nas Forças Armadas traduz-se, ainda, segundo o MDN, na implementação do Plano de Reforço do Comando de Operações no Ciberespaço e do Plano de Reforço dos Ramos; na edificação de capacidades do Centro de Ciberdefesa e dos Computer Incident Response Capability dos Ramos, com a aquisição, manutenção e atualização de plataformas e equipamentos; na harmonização dos sistemas de proteção periféricas das redes das Forças Armadas e da Defesa e a harmonização das soluções tecnológicas das redes da Defesa Nacional; no treino permanente das equipas, com participação em exercícios internacionais, garantindo a atualização e os esforços cooperativos necessários e incluindo a componente ciber em todos os exercícios das Forças Armadas; e na ligação ao sistema científico nacional, pela celebração de parcerias para estágios e para exercícios e investigação.

O processo de criação da escola de ciberdefesa, cujo local de funcionamento estava previsto para a Academia Militar, já com salas equipadas, sofreu vários atrasos. Ainda está em aberto a questão do local onde vai funcionar; e o novo concurso, com os requisitos de candidatura, de duvidosa eficácia, veio complicar ainda mais as coisas. Aliás corre-se o risco de nenhuma das candidaturas cumprir os requisitos estabelecidos nas peças do procedimento concursal, o que o tornará deserto, nos termos do Decreto-lei n.º 18/2008, de 29 de janeiro, na sua redação atual. E, apesar de o MDN classificar esta área como prioridade, as últimas decisões terão efeitos na instalação das capacidades de ciberdefesa do país, “já comprometidas pela fraca taxa de execução do orçamento para este setor, que foi de, apenas, 30%, em 2022.

2023.08.31 – Louro de Carvalho

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