sábado, 12 de agosto de 2023

Passada que foi a JMJ 2023, é de questionar o que fica

 

A Jornada Mundial da Juventude de 2023 (JMJ 2023) chegou ao fim, o que exige um balanço e a avaliação das expectativas para o futuro, sendo prematuro avaliar já o retorno económico.

A organização encarou as críticas, quer a nível da validade da iniciativa, quer a nível das despesas excessivas, no quadro do direito à diferença de opinião, até porque, no segundo aspeto, reduziu despesas, embora com diminuição da volumetria de algumas estruturas importantes.

Ter havido despesas elevadas deve-se, em parte, à multiplicidade de lugares de concentração de peregrinos (o que implicou logísticas diversas) e ao ganho utilitário de novos espaços e estruturas para algumas autarquias. O montante de dinheiros públicos investido justifica-se, em parte, pelo que fica dos espaços e das estruturas para futuro. Por outro lado, em Portugal, a Igreja não tem a capacidade de arcar com os encargos referentes a infraestruturas de peso, em Lisboa e arredores, ao invés do que sucede, por exemplo no Santuário de Fátima. E, no atinente a objeções conexas com o caráter aconfessional do Estado, é de reter a opinião de Bacelar Gouveia, constitucionalista e investigador de Direito e Religião da Universidade Nova e da Universidade Autónoma de Lisboa, expressa em artigo de 3 de agosto, no Diário de Notícias (DN).

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Diz Bacelar Gouveia que, em vez de discorrer sobre a ligação (com luzes e sombras) de Portugal à Igreja Católica – desde a fundação da nacionalidade, passando pela reconquista cristã e pela gesta dos Descobrimentos – deve equacionar-se a questão à luz da liberdade religiosa, que tardou em ser reconhecida, como direito fundamental, que permite ao homem mergulhar nas profundezas do ser, para desenvolver a fé, sem coação, e prestar culto a Deus, segundo os critérios da laicidade.

Segundo o constitucionalista, é neste “quadro que devem ser observadas as relações do Estado com a pluralidade das religiões, na ótica do modelo que se tem designado por ‘laicidade’, implicando que o Estado não adote qualquer religião”, nem se pronuncie “sobre questões do foro interno das organizações religiosas”. Porém, esta laicidade da Idade Contemporânea, em contraste com o hierocratismo medieval e com o jurisdicionalismo moderno, não é construída sem sobressaltos. Num passado não muito longínquo, assinalaram-se duras manifestações laicistas dos regimes liberais, das repúblicas positivistas e dos Estados marxistas-leninistas, que tentaram aniquilar a expressão religiosa. No presente, registam-se episódios de “laicidade negativa”, que cortam a possibilidade de cooperação com as atividades religiosas, pretendendo remetê-las ao seu espaço privado. São visões algo contrárias à afirmação da liberdade religiosa, que os textos nacionais e internacionais de direitos fundamentais ou de direitos humanos proclamam, o que supõe “uma laicidade cooperativa”.

Ora, nisso, vai bem o Estado português com a Lei da Liberdade Religiosa (LBR), bom exemplo para muitos países, com o princípio da cooperação como corolário de uma laicidade positiva. Porém, o futuro confirmará outro tipo de laicismo subtil, numa diferente modelação da relação entre o Estado e a Religião, a teofobia, que diaboliza a religião baseada na generalização, exercício que acusa erros e crimes, sempre lamentáveis, que justificam toda a punição e reparação possíveis, levando ao vilipêndio do fenómeno religioso, ridicularizando-o, caricaturando-o ou apoucando-o na sua função moral e social.

Assim, faltando a coragem de proibir a religião, pretende-se moldá-la ao sabor de uma ideologia de Estado, sob a capa de neutralidade. No entanto, enfatizam-se os abusos que acontecem na Igreja Católica, eclipsando os ocorrentes noutros meios, como o educacional, o desportivo, o militar e o policial; critica-se o segredo inquebrantável do confessionário, quando também o são o de Estado e o profissional; e gera escândalo o financiamento público que “só nas atividades religiosas sucede” – quando também o há, e não pouco, aliás superior, no desporto ou na arte, em cujo domínio abundam os ajustes diretos.

A neutralidade do Estado, com a separação em relação às Igrejas (um dado bom) tem respaldo no Concílio Vaticano II, do lado da autonomia das realidades terrestres. Contudo, a separação é comparável a pontes paralelas sobre o rio: separadas, não se encontram; mas, a céu aberto, passam nelas pessoas que se avistam, se saúdam e se entendem. Mas, atravessadas as pontes, têm hipótese de se encontrar. Por isso, o Estado neutro não tem de ignorar a sociedade como ela é ou de deixar de cooperar com ela. Aliás, a Constituição, que impõe a aconfessionalidade do ensino público e proíbe o Estado de programar a educação e a cultura segundo qualquer diretriz ideológica (O que não vem sendo observado!), estabelece o princípio da não discriminação e de igual tratamento dos cidadãos. É a LBR que preconiza o tratamento igual por princípio, mas concretizado segundo a representatividade.               

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No respeitante à validade da JMJ, é óbvio que já bastaria que tivesse funcionado com ponto de encontro ecuménico e se posicionasse como oportunidade mobilizadora dos jovens para o futuro, pondo a nu os problemas que encaram e tornando-os cônscios dos verdadeiros desafios. Porém, como não se espera que tenha havido um terramoto eclesial ou social, aguarda-se, na esperança ativa, que o evento haja impulsionado a mudança paulatina, nas sem recuos.

Talvez seja interessante atentar no modo como o Papa, em torno de quem se juntou a juventude mundial, aprecia a JMJ.

No passeio marítimo de Algés, a 6 de agosto, Francisco mostrou-se grato pela quantidade e pela qualidade de trabalho desenvolvido, nestes “dias inesquecíveis”, pelos voluntários, em grupo, “de forma escondida, sem alarde, nem protagonismo”, para que todos se encontrassem a cantar juntos: “Jesus vive e não nos deixa sós: não mais deixaremos de amar”. E “mais do que trabalho”, este “foi um serviço”, serviço semelhante ao prestado pela Virgem Maria, que “Se levantou e partiu apressadamente”, para servir Isabel, sentindo urgência de “partilhar a alegria no serviço”.

Também Zaqueu, para ver Jesus, subiu a uma árvore e desceu apressadamente. Algo o tocara dentro: queria encontrar Jesus e acolhê-Lo em casa. As mulheres e os discípulos, na Páscoa, correram do túmulo para o Cenáculo, a fim de anunciarem que Cristo ressuscitou. “Quem ama não fica de braços cruzados”, mas serve, corre para servir, “corre empenhado no serviço aos outros. E o Papa, que só esteve nos “nos momentos finais”, viu como os voluntários davam “resposta a inúmeras necessidades, às vezes, com o cansaço impresso no rosto e, outras, um pouco esmagados com a urgência do momento, mas sempre de olhos luminosos pela alegria do serviço.

Tornaram possível esta JMJ, fizeram grandes coisas, sem se negarem a gestos pequeninos. “E isto cria amizade”. Correram tanto, mas não com a corrida frenética e sem meta que, às vezes, nos carateriza. Antes, fizeram “uma corrida que leva a encontrar os outros, para os servir em nome de Jesus. Vieram para servir, não para serem servidos.”

Depois, o Papa serviu de amplificador aos testemunhos de três jovens voluntários que falaram dum “encontro especial com Jesus”, o “motor de todos os outros, aquele que faz mesmo caminhar, que faz a vida avançar”. A renovação diária do encontro pessoal com Jesus “é o coração da vida cristã”. Todos experimentámos que “um pequeno ‘sim’ a Jesus pode mudar a vida”, mas “o ‘sim’ dito aos outros faz-nos bem”, quando se visa “o serviço”. Ora, “no momento do cansaço, os voluntários retomaram a coragem, “dizendo ‘sim’, prontos a servir os outros”.

Caminhando, trabalhando e rezando com os outros, compreendemos que não nos podemos “deixar agrilhoar pela desordem, pelo ‘leito desarrumado’ do passado, nem viver com o coração atormentado por sensações de pessoa inacabada”. E “esta Jornada é útil, ajuda muito a pôr ordem na vida”, “graças a Jesus, que está aqui no meio de nós e Se nos revela”. Para colocar a vida em ordem, “é preciso é dilatar o coração”, sem medo. Na JMJ, houve “um encontro com Jesus e um encontro com os outros”. O encontro com Jesus é momento pessoal, único, que só até certo ponto se pode descrever e contar, “mas sempre tem lugar, graças a um caminho feito com os outros, feito por meio da intercessão de outros, no serviço aos outros”.

E, a terminar, Francisco deixou a imagem de Nazaré, “onde se podem admirar ondas que chegam aos 30 metros de altura tornando-se uma atração mundial, especialmente para os surfistas que as cavalgam”. E verificou: “Também vós enfrentastes uma verdadeira onda, não de água, mas de jovens, jovens como vós, que afluíram a esta cidade”. Porém, “com a ajuda de Deus, com tanta generosidade e apoiando-vos mutuamente, conseguistes cavalgar esta grande onda”. E exortou: “Continuai a cavalgar as ondas do amor, as ondas da caridade, sede surfistas do amor!” E fez votos, por que o serviço prestado nesta JMJ “seja a primeira de tantas ondas de bem”, pois “cada vez sereis levados mais alto, mais perto de Deus”, o que vos permitirá “ver duma perspetiva melhor o vosso caminho”.

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No Vaticano, no dia 9, na Audiência Geral, o Papa considerou que a JMJ de Lisboa, vinda depois da pandemia, “foi sentida por todos como dom de Deus”, que repôs em movimento os corações e os passos de “muitos jovens de todas as partes do mundo – muitos! – para se encontrarem e encontrar Jesus”. Frisou que a pandemia “incidiu gravemente nos comportamentos sociais: muitas vezes o isolamento degenerou em fechamento, e os jovens foram particularmente atingidos”. Com a JMJ, “Deus deu um ‘empurrão’ na direção oposta”, marcando “novo início da grande peregrinação dos jovens pelos continentes, em nome de Jesus Cristo”, e não tendo sido, casualmente, que se fez na cidade do oceano, cidade-símbolo das grandes explorações marítimas.

Assim, o Evangelho propôs aos jovens o modelo de Maria, que, no momento mais crítico para Si, visita Isabel: “Levantou-se e partiu apressadamente” (Lc 1,39). É a Senhora Apressada, que nunca nos faz esperar, pois Ela é a mãe de todos. Assim, no terceiro milénio, “guia a peregrinação dos jovens no seguimento de Jesus”, “como fez há um século, em Portugal, em Fátima, quando se dirigiu a três crianças, confiando-lhes uma mensagem de fé e de esperança para a Igreja e para o Mundo”. Por isso, Francisco voltou a Fátima e, com alguns doentes, rezou para que Deus cure o mundo das doenças da alma: soberba, mentira, inimizade, violência. E renovou a consagração, da Europa, do Mundo ao Imaculado Coração de Maria. Rezou pela paz, pois há demasiadas guerras em todas as partes do Mundo.

Os jovens de todo o mundo foram a Lisboa, muito numerosos e com grande entusiasmo. O Papa encontrou-se com eles, inclusive em pequenos grupos, e alguns com muitos problemas. Os jovens ucranianos traziam histórias dolorosas. Não eram férias, nem turismo, e muito menos um evento espiritual por si só. A JMJ é “um encontro com Cristo vivo através da Igreja”. Os jovens “vão encontrar Cristo”. É verdade, onde há jovens há alegria e um pouco de todas as coisas.

Referiu que a visita a Portugal, por ocasião da JMJ, beneficiou do clima festivo daquela onda de jovens. E pensa que a Igreja de Lisboa, em troca do grande esforço que fez para a organizar e acolher, “receberá novas energias para prosseguir o novo caminho, para lançar de novo as redes com paixão apostólica”. Os jovens, em Portugal, “são uma presença vital” e, após esta transfusão recebida das Igrejas de todo o Mundo, tornar-se-ão ainda mais. E jovens, no regresso, passaram por Roma.

Frisou que, enquanto, na Ucrânia e noutros lugares do Mundo, há combates e enquanto, em certos salões escondidos, se planeia a guerra, a JMJ mostrou a todos que outro Mundo é possível: “um Mundo de irmãos e irmãs, onde as bandeiras de todos os povos flutuam juntas, lado a lado, sem ódio, sem medo, sem fechamentos, sem armas”. Será ouvida pelos “grandes da terra” esta mensagem clara? É a interrogação do Pontífice.

E referiu que se encontrou com os voluntários, que foram 25 mil.

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No voo de regresso ao Vaticano, tinha respondido à pergunta do porta-voz da Santa Sé, Matteo Bruni, sobre como vivera a JMJ, dizendo que esta, a quarta a que presidiu, foi a mais numerosa e a mais bem preparada. Os dados concretos, reais apontavam para mais de um milhão e meio. E os jovens são uma surpresa, “procuram olhar para a frente... são o futuro”. A questão é “saber acompanhá-los e fazer com que não se separem das raízes”. Por isso, o Papa insiste no diálogo entre idosos e jovens, avós e netos.

Depois, “os jovens são religiosos; procuram uma fé não invasiva, uma fé não artificial, nem legalista, mas um encontro com Jesus Cristo”. Objeta-se que “os jovens nem sempre vivem segundo a moral”. E Francisco pergunta quem “não praticou um erro moral na própria vida”, mas vincou a grandeza da misericórdia de Deus. Para ele, a JMJ foi belíssima. Disse-o, enaltecendo a mística e o compromisso dos voluntários com quem se encontrou.

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É claro que não sai da JMJ uma espetacular revolução na Igreja e no Mundo. Porém, a semente está lançada para frutificar no futuro. Importa que todos e cada um a saibam e queiram proteger, para que germine e alastre. Porém, muitos preferem ater-se a pormenores, por exemplo onde e como foram guardadas as partículas sagradas para a comunhão, não reparando como as tendas da guarda da reserva eucarística eram veladas por adoradores.

É certo que a Igreja do bem-fazer, da humildade, dos pobres, das pontes terá a tentação do poder e do mando, corre o risco de se enfeudar à riqueza e de ser instrumentalizada pelos oportunistas e muitos dos seus membros continuarão tentados ao pecado. É a realidade da parábola do trigo e do joio, que devem crescer juntos, não cabendo à Igreja de todos excluir ninguém. E só Deus avaliará os frutos espirituais que resultarão do evento, a curto ou a médio prazo.

A JMJ é uma das pérolas que não deve ser subestimada, muito menos jogada fora!

2023.08.11 – Louro de Carvalho

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