quinta-feira, 24 de agosto de 2023

Os contrastes estendem-se aos campos da inflação e dos juros

 

Uma perspetiva liberal permitiria a livre concorrência dos agentes económicos, de acordo com as capacidades de cada um, atirando os que não têm sucesso para o redil dos incapazes, a quem resta viver das migalhas pendentes da mesa do rico, a troco da exploração laboral, baseada na sobrecarga de trabalho e no salário de miséria. O Estado, remetido às funções de soberania, apenas atuaria como árbitro na dirimição de conflitos criados ou surgidos entre os agentes económicos. Esta perspetiva evoluiu para a mitigação por dois motivos fundamentais: o receio dos Estados intervencionistas cuja autoridade os levava a condicionar a concorrência económica, podendo limitar ou mesmo anular a propriedade privada, sobretudo a dos meios de produção, e planificar a economia de forma centralizada, em nome da consecução da suposta igualdade forçada de todos; e a aplicação da teoria de que, pelo bem-estar dos trabalhadores e das suas famílias, as empresas, possibilitando salário que permita o consumo nesse universo laboral, tem por perto um panorama favorável à testagem da empresa e do lucro.    

Por outro lado, a crítica de diversos setores sociais, nomeadamente a Igreja Católica, com a sua doutrina social, ao liberalismo estreme e ao intervencionismo totalitário do Estado, a começar pelos regimes marxistas-leninistas indo até, embora tardiamente, algumas ditaduras de extrema-direita, levou a alguma moderação, com os regimes corporativos (a maior parte como pretexto para esconder a sua índole ditatorial) com as democracias cristãs, com as social-democracias e, ultimamente, com a chamada terceira via.

Não obstante, o nosso Mundo apresenta o fosso cada vez maior entre os mais ricos (os poucos que se tornam mais ricos) e os mais pobres (os muitos que se tornam cada vez mais pobres), fruto de um sistema económico que não sabe criar riqueza e que, sobretudo, não a sabe distribuir.

Pior ainda: o neoliberalismo (eufemismo para designar um famigerado ultraliberalismo moderno) sujeita o fluxo económico à ditadura do capitalismo financeiro, sem rosto, sem limites, sem olhar a meios, tornando o poder político incapaz de tomar decisões reais (mas, dada a porta giratória entre os departamentos dos Estados e a malha empresarial, muitos acabam por gostar de ter sido governantes ou de virem a sê-lo), os cidadãos vítimas dos dinheiros de plástico, os lucros das empresas cativos em contas offshore de alguns empresários.

Neste contexto, uns continuam ricos, outros deixam de o ser, outros passam ricos e outros passam pobres. E o panorama é o de, em muitos países (alguns bem ricos de recursos naturais), uma fatia significativa da população sobrevive abaixo do limiar da pobreza. E os simpatizantes da teoria da regulação feita pelos mercados (que não podem ser enervados) dizem que os pobres o são, porque não querem ou não sabem governar-se, não querem trabalhar.   

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Todavia, hoje, o contraste já não é apenas entre ricos e pobres. Chega ao campo dos extremos da inflação, a hiperinflação (preços excessivamente elevados) ou a deflação (quebra de preços); e ao âmbito dos juros diretores decretados pelos bancos centrais, negativos ou astronómicos.

O G20, composto por 19 países – Argentina, Austrália, Brasil, Canadá, China, França, Alemanha, Índia, Indonésia, Itália, Japão, República da Coreia, México, Rússia, Arábia Saudita, África do Sul, Türkiye, Reino Unido e Estados Unidos da América (EUA) e a União Europeia (UE) – nunca teve como agora diferenças tão vincadas.

Da deflação, na China, à hiperinflação, na Argentina, dos juros negativos do Banco central em Tóquio, há sete anos, aos mais de 100% impostos de emergência, em Buenos Aires, as maiores economias são um caos em números e em políticas monetárias.

O Banco Central de Pequim decidiu fazer mais um corte na taxa diretora principal, baixando-a para 3,45%, para incrementar a economia e para combater um mergulho na deflação. E as autoridades monetárias da Argentina decidiram, de emergência, uma subida dos juros para 118% a fim de fazerem, face à inflação de 113,4% e ao horizonte de derrocada política.

Nas economias do G7 (Alemanha, Canadá, EUA, França, Itália, Japão e Reino Unido), as mais desenvolvidas do planeta, cresce a expectativa sobre as decisões a tomar, em setembro, pela Reserva Federal nos Estados Unidos (FED) e pelo Banco Central Europeu (BCE) na Zona Euro: subir mais uma vez os juros ou fazer uma pausa no ciclo de aumentos.

Argentina e Turquia são as duas economias com as taxas de inflação mais elevadas e com os juros mais altos no grupo das 20 maiores economias do Mundo. Distando mais de 12 mil quilómetros entre si, estão irmanadas por serem consideradas economias emergentes em hiperinflação.

Na Argentina, a variação de preços no consumidor desceu, em julho, para 113,4%, mas continua acima dos três dígitos, um grupo que conta com mais três membros: Venezuela, Líbano e Zimbabué. O Banco Central da Republica Argentina tomou, como se disse, a 14 de agosto, uma decisão de emergência, subindo a taxa diretora em 2100 pontos-base (21 pontos percentuais), agravando-a de 97% para 118%, taxa que já está acima da inflação, pelo que a taxa real de juro (descontando a inflação) entrou em terreno restritivo efetivo. No mesmo dia, o Fundo Monetário Internacional (FMI) dava conta que, a 23 de agosto, a direção executiva analisaria o acordo com o governo argentino sobre a quinta e sexta revisões do andamento do empréstimo até 2024, aprovado em 2022. E, nesse dia, os resultados das primárias para as eleições presidenciais em outubro davam a vitória de Javier Milei, um ultraliberal que quer “dolarizar” a economia e fechar o banco central. O candidato do atual governo ficou em terceiro lugar.

Ao invés, na Turquia, a inflação subiu para 48% em julho, já depois de o Banco Central ter aumentado, em junho, a taxa diretora, numa inversão da política monetária até então expansionista no anterior mandato presidencial de Recep Tayyip Erdogan.

Ainda no dia 21 de agosto, o FMI publicou a sua avaliação anual da economia do país, vincando a nocividade do anterior “novo modelo económico” prosseguido por Erdogan até maio deste ano, que implicou o corte dos juros de 19% para 8,5%, entre setembro de 2021 e maio de 2023. O FMI recomendava “subidas rápidas e consideráveis” na taxa diretora. E a nova governadora Hafize Gaye Erkan, nomeada por Erdogan depois de vencer as eleições para um segundo mandato em maio deste ano, revirou a política monetária e subiu os juros para 15%, em junho, e 17,5%, em julho. O banco voltou a reunir a 24 de agosto e os analistas, que esperavam a taxa subida, pelo menos, para 20%, viram-na subida para 25%.

Os BRICS (Brasil. Rússia, Índia, China e África do Sul) reúnem-se em cimeira, nesta semana, em Joanesburgo, na África do Sul, sem a presença física do presidente russo, Vladimir Putin. Os níveis de inflação e de juros dos bancos centrais são diferentes. A inflação varia entre 7,4%, na Índia, e a deflação, na China. Os níveis de inflação para o Brasil, China e África do Sul são mais baixos do que a média na Zona Euro. As taxas diretoras dos bancos centrais vão de 3,45%, na China, a 13,25%, no Brasil. E as políticas monetárias, também, não seguem o mesmo padrão.

Enquanto, no Brasil e na China, os juros descem, para aliviar a economia, na Rússia, sobem, para contrariar a inflação e, na Índia, estão em pausa pela terceira reunião consecutiva. Na África do Sul, a inflação de julho ainda não está disponível e o banco central só reúne a 21 de setembro.

A China, a maior economia dos BRICS e a segunda maior do G20, prosseguindo uma política monetária de alívio, desce os juros, para contrariar os maus desempenhos em vários indicadores económicos. A 21 de agosto, o banco central desceu, pela segunda vez neste ano, os juros de referência, que caíram para 3,45%, os mais baixos no G20, depois da taxa negativa que o Banco do Japão mantém desde 2016. São, também, os mais baixos no grupo dos BRICS.

No Brasil, o banco central inverteu, a 2 de agosto, a política monetária, descendo os juros para 13,25%, após um ciclo de subidas, desde abril de 2021. A inflação caiu a pique, de 12,13%, em abril do ano passado, para 3,16%, em junho deste ano, tendo subido ligeiramente para 3,99% em julho. Em termos reais, os juros estão acima de 9%, os mais elevados do G20.

Na Índia, o Banco da Reserva optou por não mexer nos juros, há três reuniões consecutivas, apesar de a inflação ter disparado de 4,3%, em maio, para 7,4%, em julho, situando-se claramente acima do limite superior do objetivo de estabilidade de preços em 6%. E o Banco da Reserva da África do Sul decidiu, em julho, não mexer na taxa que está em 8,25%, um máximo de 14 anos, após um ciclo de dez subidas consecutivas.

Em direção contrária, o Banco da Rússia imprimiu uma reviravolta na política monetária, a 15 de agosto, reiniciando uma subida de juros, face ao aumento da inflação e ao colapso do rublo.

Os investidores estão de olhos postos nas reuniões, em setembro, dos bancos centrais do G7: Banco do Canadá (dia 6), BCE (dia 14), FED (dia 20), Banco de Inglaterra (BoE, dia 21) e Banco do Japão (BoJ, dia 22). Após uma pausa, em março e em abril, do Banco do Canadá e de uma paragem, em junho, da FED, estes dois bancos centrais voltaram às subidas dos juros. O BoE e o BCE não param de aumentar os juros, desde dezembro de 2021, e julho de 2022, respetivamente.

A questão crítica para os mercados financeiros é saber se haverá uma pausa no ciclo de subidas de juros no G7, com exceção do Japão, o único a manter a taxa negativa há sete anos. A inflação, em julho, já estava abaixo dos juros no Canadá e nos EUA, mas continua acima das taxas diretoras no Reino Unido e na Zona Euro.

Em relação aos quatro principais bancos do G7, as expetativas apontam para uma pausa do BCE e a FED, em setembro, a continuação da subida, por parte do BoE, e a manutenção dos juros em terreno negativo pelo BoJ. Os futuros da taxa de juros da FED registam a probabilidade de mais de 85% para uma pausa, na reunião de 20 de setembro, que se poderá prolongar até maio de 2024, quando os mercados esperam um primeiro corte.

Christine Lagarde, presidente do BCE, admitiu, na reunião de julho, que a hipótese de pausa estava em cima da mesa, mas que a decisão a tomar, a 14 de setembro, dependerá da avaliação da conjuntura e das expetativas na reunião. E, no caso do BoE, os mercados apontam para uma probabilidade de 84% de nova subida de 25 pontos-base nos juros, na reunião de 21 de setembro, e têm expetativa de que o ciclo só pare quando a taxa atingir 6%.

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As cinco taxas de inflação mais altas no Mundo são as da Venezuela (398%); do Líbano (254%); da Argentina (113,4%); do Zimbábue (101%); e do Sudão (63,3%).

As cinco taxas de inflação mais baixas no Mundo são as da Costa Rica (-2,3%); das Seychelles (-2%); do Burkina Faso (-0,7%); da China (-0,3%); e da Arménia (-0,1%).

As cinco taxas de juro mais altas ocorrem no Zimbábue (150%); na Argentina (118%); no Gana (30%); no Malawi (24%); e na Ucrânia (22%).

As cinco taxas de juro mais baixas ocorrem no Japão (-0,1%); nas Fiji (0,3%); na Suíça (1,8%); em Taiwan (1,9%); e nas Seychelles (2%).

Na Zona Euro, a taxa de inflação era, em julho, de 5,3%; e a taxa diretora de juros é, em agosto, de 4,25%. Já em Portugal, nos mesmos meses, a inflação é de 4,3% e os juros de 4,25%.

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Com tais disparidades, no Mundo, nas políticas monetárias, que aumentam ou diminuem os juros, geram ou verificam taxas díspares de inflação e, segundo alguns bancos centrais, deveriam condicionar os salários e as ajudas sociais, é de questionar se, efetivamente, são os mercados a ditar as regras, se são tão inteligentes que percebam as necessidades dos diversos países ou se estão tão desregulados que reagem aleatoriamente. Porém, alguma informação aponta para decisões do poder político. Aliás é de questionar para que elegemos governantes, se não para acautelar os legítimos interesses dos cidadãos e para promover o bem comum. Atuem, pronto!

2023.08.24 – Louro de Carvalho

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