sábado, 30 de setembro de 2017

“Sempre conseguiste levar-me a Fátima”

Dom António Augusto dos Santos Marto, Bispo de Leiria-Fátima foi recebido, na manhã de hoje, dia 30 de setembro, pelo Papa Francisco, no Vaticano, num ambiente “muito afetuoso e bem-disposto”. Tratou-se de uma visita de cortesia em que o responsável pela diocese que acolhe o Santuário de Nossa Senhora do Rosário de Fátima pretendeu agradecer ao Sumo Pontífice a sua peregrinação a Fátima a 12 e 13 de maio, na primeira da série de peregrinações internacionais aniversárias do Centenário das Aparições, em que procedeu à canonização dos pastorinhos Francisco e Jacinta.
O encontro ocorreu durante o período de audiências que o Papa realizou. Após ter recebido um cardeal, quatro bispos, entre os quais o de Leiria-Fátima, e o embaixador do Uruguai, Francisco concedeu uma audiência à Associação Nacional de Municípios Italiana, na Sala Clementina.
De acordo com a Sala de Imprensa do Santuário de Fátima, a audiência teve a duração de 15 minutos e, além do bispo de Leiria-Fátima, estavam presentes o reitor do Santuário de Fátima, Padre Carlos Cabecinhas, o vice-reitor, Padre Vítor Coutinho, e a ex-postuladora da Causa de Canonização de Francisco e Jacinta Marto, Irmã Ângela Coelho.
Em declarações à Ecclesia, o prelado do Lis disse que encontrou o Papa muito “alegre, satisfeito e afetuoso”, felicitando-o por ter conseguido com que presidisse à primeira peregrinação internacional do Centenário das Aparições, em Fátima. Terá o Pontífice dito a Dom António Marto “Sempre conseguiste levar-me a Fátima”, quando o recebeu com um “grande abraço”.
Esta visita era exclusivamente para, antes que terminasse o centenário, “agradecer ao Papa a peregrinação dele a Fátima”, disse o Bispo, frisando que a audiência fora uma oportunidade para conversar sobre a vida no Santuário e sobre o “aumento de peregrinos”, concretamente de grupos da Ásia. Mas aproveitou o ensejo para informar o Papa de que a peregrinação internacional de 12 e 13 de maio de 2018 será presidida pelo cardeal Jonh Tong, de Hong Kong, e a de outubro do mesmo ano por Dom Alexis Mitsuru Shirahama, bispo de Hiroshima.
Por seu turno, o Papa congratulou-se com isso e disse que era preciso prestar atenção à Ásia, pelo que falou da sua próxima visita a Mianmar, a antiga Birmânia, e ao Bangladesh, entre os dias 27 de novembro e 2 de dezembro. Nesses dias, em Mianmar, passará pelas cidades de Rangum e Nepiedó, seguindo depois para o Bangladesh para visitar a cidade de Daca.
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Na audiência, o Bispo falou ao Papa sobre a canonização dos pastorinhos, presidida por Francisco no dia 13 de maio, em Fátima, e sobre o aumento da devoção aos videntes de Fátima, visível no “triplicar” das visitas aos seus túmulos. Sobre o tema, o prelado contou:
Num diálogo muito fecundo, de quem lê a alma humana e deixa a gente surpreendida, o Papa falou da busca da inocência num mundo perturbado e da atenção e cuidado que é necessário dar às crianças”.
Por outro lado, colóquio com o Papa foi uma oportunidade para falar da misericórdia, concretamente sobre a celebração do sacramento da Reconciliação no Santuário de Fátima, com Bergoglio a “querer saber como se realiza” e a sublinhar que “é preciso ser misericordioso”, acentuando que “Deus é muito misericordioso com as misérias humanas”.
Na celebração do encerramento oficial da série de peregrinações aniversárias internacionais do Centenário das Aparições de Fátima, que vai decorrer a 12 e 13 de outubro, sob a presidência do Bispo de Leiria-Fátima, o mesmo vai transmitir os agradecimentos do Papa, pois, como refere:
O Papa pediu-me para transmitir aos peregrinos o agradecimento pelo acolhimento caloroso dispensado em Portugal, a memória grata da sua peregrinação, que constitui uma bênção para a Igreja, envia uma bênção especial para todos os peregrinos do Santuário e pediu-me para dizer aos peregrinos que não se esquecessem de rezar por ele”.
Segundo o que Dom António Marto declarou à Sala de Imprensa do Santuário de Fátima, no final da audiência, a frase “Sempre conseguiste levar-me a Fátima” agora foi já a repetição da exclamação que tivera o Papa quando chegou, a 12 de maio, à Base Aérea de Monte Real.
Por outro lado, se o responsável episcopal pelo Santuário, ao agradecer a visita papal, se fez porta-voz dos “ecos nacionais e internacionais que a peregrinação teve”, também o Santo Padre lhe replicou que ficara “muito contente e que a peregrinação tinha superado as suas próprias expectativas deixando-o surpreendido” e que “a peregrinação foi uma bênção para a Igreja”.
No contexto do tema da misericórdia abordado por Francisco e Dom António, o Papa quis obsequiar todos os elementos do grupo com a oferta do seu livro “O nome de Deus é Misericórdia”, autografado.
Não pode, acerca da misericórdia, ser ignorado o facto de ontem, dia 29 de setembro, o Papa ter recebido, ao meio dia, na Sala Clementina uns 60 participantes na Plenária do Pontifício Conselho para a Promoção da Nova Evangelização (por ocasião da sua assembleia plenária), entidade que organizou, a nível central, o Jubileu da Misericórdia nos termos da Bula “Misericordiae Vultus”. Nesse encontro, Francisco exprimiu satisfação por poder refletir com eles sobre “a urgência que a Igreja sente, neste momento histórico, de renovar os esforços e o entusiasmo na sua perene missão de evangelização”. E agradeceu a Dom Rino Fisichella, Presidente daquele Conselho, o empenho com que promete continuar a levar adiante essa missão para fazer viver à comunidade eclesial os frutos do Ano Jubilar da Misericórdia. Foi ano de graça para a Igreja e não podemos permitir que esse grande entusiasmo seja diluído ou esquecido. O Povo de Deus sentiu fortemente o dom da misericórdia e redescobriu o Sacramento  da Reconciliação como eloquente expressão da bondade e ternura ilimitada de Deus. Por isso, A Igreja tem a grande responsabilidade de continuar, sem parar, a ser instrumento de misericórdia”.  
O anúncio da misericórdia que se concretiza e se torna visível no estilo de vida dos crentes é parte intrínseca do empenho de cada evangelizador. Assim, o Pontífice recomendou o não esquecimento das palavras de São Paulo: louvar a Deus que nos tornou fortes em Jesus Cristo e usou da misericórdia para connosco. E fê-lo para que quem é chamado a evangelizar seja também misericordioso para com os outros.
Detendo-se depois, propriamente sobre o tema da evangelização, o Papa argentino afirmou a necessidade de ter sempre presente que a evangelização, pela sua natureza, “pertence ao povo de Deus”, sublinhando, a este respeito, dois aspetos:
“O primeiro é o contributo que cada povo e as respetivas culturas dão ao caminho do Povo de Deus”.  Na verdade, de cada povo emerge uma riqueza que a Igreja é chamada a reconhecer e a valorizar com vista na unidade de “todo o género humano”.  E diz o Papa que as boas tradições que, em cada povo, constituem essa riqueza
São autênticos dons que exprimem a variedade infinita da ação criadora do Pai e que convergem na unidade da Igreja para fazer crescer a necessária comunhão a fim de ser semente de salvação, prelúdio de paz universal e lugar concreto de diálogo”.
Um segundo aspeto é que este ser “Povo evangelizador” induz a tomada de consciência de uma chamada que transcende a mera disponibilidade pessoal, inserindo-se numa “trama complexa de relações interpessoais”. Isto leva a viver “a profunda unidade e humanidade da Comunidade dos crentes” – algo que assume peculiar importância nesta época em que surge com força uma cultura nova, fruto de tecnologias, que fascina, mas que, ao mesmo tempo, carece de verdadeira relação interpessoal e  interesse pelo outro.
O Papa frisou ainda o grande conhecimento que a Igreja tem dos povos e que a tornam capaz de valorizar o património cultural, moral e religioso que perfila a identidade de gerações inteiras, assegurando que é, por isso,
Importante saber penetrar no coração da nossa gente, para descobrir aquele sentido de Deus e de amor que dá confiança e esperança para olhar para a frente com serenidade, não obstante as graves dificuldades e pobreza que somos obrigados a viver devido à avidez de poucos”.
Ora, se formos capazes de olhar em profundidade, poderemos encontrar o genuíno desejo de Deus que torna inquieto os corações de tantas pessoas  caídas, sem quererem, no abismo da indiferença que não deixa saborear a vida e construir serenamente o próprio futuro. E “a alegria da evangelização pode chegar a elas e dar-lhes de novo a força para a conversão”.
O Papa concluiu desejando aos membros do Pontifício Conselho para a Nova Evangelização um bom trabalho, sobretudo o da preparação do próximo Dia Mundial dos Pobres, que ocorrerá a 19 de novembro, mas não sem advertir que a “nova etapa da evangelização que somos chamados a percorrer é certamente obra de toda a Igreja, povo de Deus a caminho”. Há, pois, que redescobrir este horizonte de sentido e de concreta praxe pastoral a fim de favorecer o impulso para a própria evangelização, sem esquecer o valor social que pertence à genuína promoção humana integral”.
Provavelmente, segundo a sua missão dos Santuários e, em especial o de Fátima, têm especial responsabilidade neste quadro da nova evangelização, no testemunho doutrinal e atitudinal da misericórdia e na atenção ao desenvolvimento humano e integral – vertentes que levam a que do Dia Mundial dos Pobres não se reduza a mais uma efeméride, mas constitua uma oportunidade para a reflexão e o relançamento da estratégia de combate à pobreza e à luta pela dignidade da pessoa humana.
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Sempre conseguiste levar-me a Fátima” pode ser a frase a dizer à Senhora, ao Bispo ou ao organizador por cada um dos 20 sacerdotes que participaram na Peregrinação Jubilar dos Sacerdotes idosos e/ou doentes, que hoje terminou e que teve início no passado dia 28 de setembro, na Casa de Retiros de Nossa Senhora das Dores.
De facto, esta manhã na Basílica da Santíssima Trindade, os vinte padres concelebraram a Eucaristia presidida pelo Padre José Nuno silva, um dos capelães do santuário, que lembrou que a presença destes sacerdotes no Santuário de Fátima é “muito significativa porque simboliza os milhares de sacerdotes que aqui em Fátima confessaram milhões de peregrinos do mundo inteiro, que vieram à Cova da Iria ouvir uma palavra de misericórdia e conversão”.
“O Santuário de Fátima dá-vos graças”, reiterou o presidente da celebração, que afirmou, na homilia, que Deus “não nos livra de morrer, mas liberta-nos da morte”, de modo que “a morte deixa de ser a última palavra sobre o nosso destino”. Com efeito, “Deus oferece uma vitória sobre a morte, e essa é a verdade mais importante da nossa fé”. O capelão interrogou os presentes na celebração: “O que queremos de Deus? Que venha acelerado e nos arranque da morte sabendo que vamos morrer?”. E falando dos pastorinhos, disse:
Francisco e Jacinta não tiveram medo, mas viveram uma vida assumida e entregue a Deus, com paixão nos corações que salvava os outros”.
No final da celebração, um dos sacerdotes, o Padre António da Luz, proveniente dos Açores, com mais de 59 anos de sacerdócio, afirmou que “foram dias fantásticos”, especificando:
Foi uma iniciativa muito bem pensada, com momentos apropriados às nossas circunstâncias e necessidades, mesmo no que toca à temática considero que foi oportuna mesmo não sendo nova, porque a Verdade é sempre a mesma, mas de uma maneira adaptada à nossa condição”.
O sacerdote salientou a “forma diferente e nova como as coisas foram pensadas e transmitidas”, atribuindo-lhe um “grande valor”. E concluiu:
Mesmo em conversa com os outros colegas, estes mostraram-se edificados, e é uma opinião unânime, valeu muito a pena, e devemos muitas graças a Deus por isto ter acontecido”.
O responsável pela iniciativa, o Padre José Nuno Silva, deu as boas-vindas e lembrou:
Esta iniciativa é exatamente fazer justiça à história, a estes sacerdotes que anonimamente aqui ao longo de 100 anos acolheram quem aqui ouviu o apelo à conversão, e estes 20 que vêm participar representam milhares”.
O capelão, na abertura, disse que “Fátima tornou-se um confessionário de Portugal e mais tarde um confessionário global”. Na verdade, no ano Jubilar do Centenário das Aparições, o Santuário de Fátima reconhece que, ao longo de cem anos, muitos foram os corações tocados pela mensagem de Nossa Senhora, e esta atividade é “fazer um ato de justiça e gratidão”.
Para o Santuário de Fátima, há uma categoria de testemunhas privilegiadas deste toque da misericórdia e dos seus frutos: os sacerdotes. Muitos milhares, ano após ano, década após década, aqui exerceram o ministério da Reconciliação como confessores das multidões que ouviram e quiseram corresponder ao apelo à penitência que a Virgem Mãe aqui fez soar.
Como o programa previa, houve uma visita à exposição temática ‘As cores do Sol’, englobada na comemoração do centenário, e uma intervenção de Sónia Vazão sobre ‘A luz de Fátima no mundo contemporâneo’, bem como duas visitas/encontros sobre a ‘Irmã Lúcia, anciã da sabedoria de Deus’ e ‘Orar com São Francisco e Santa Jacinta Marto’.
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Sempre conseguiste levar-me a Fátima” pôde ser a frase que o recém-falecido (a 27 de setembro pp) Padre Joaquim Pereira da Cunha ao então Bispo do Porto, Dom António Francisco dos Santos, falecido a 11 de setembro, que diligenciou no sentido de o sacerdote então com 104 anos de idade (fez 105 a 8 de julho) poder cumprimentar o Papa na Basílica de Nossa Senhora do Rosário na manhã do dia 13 de maio. E é a frase que todos e cada um dos mais de 32 mil peregrinos da diocese do Porto, presentes na 2.ª Peregrinação diocesana ao Santuário de Fátima podem hoje rezar ao seu Bispo, que ali gizou um programa (agora testamento) pastoral e humanista para esta esperançosa e invicta Igreja da diocese portuense – bela na sua riqueza e diversidade, firme na sua unidade e forte na sua caridade pessoal e comunitária, estruturada e estruturante.
Sempre conseguiste levar-me a Fátima” é aquilo que muitos poderão dizer a familiares, amigos e orientadores ao verem-se tocados pelo amor carinhoso da Mãe de Misericórdia.

2017.09.30 – Louro de Carvalho 

Impressões duma campanha eleitoral de proximidade

Amanhã, dia 1 de outubro, são as eleições para os órgãos das autarquias locais. Os cidadãos eleitores vão eleger, a partir das propostas disponíveis em cada município e freguesia (de partidos e coligações ou de grupos de cidadãos formados para o efeito), a assembleia municipal, a câmara municipal e a assembleia de freguesia. Da assembleia de freguesia emanará a junta de freguesia, sabendo-se que o presidente será o candidato que encabeça a lista do partido ou grupo de cidadãos mais votado, sendo eleitos o secretário e o tesoureiro e, nos casos onde houver lugar a eles, os vogais. Depois, para colmatar a saída dos eleitos para a junta, a lista ou listas que eles integravam fornecerá(ão) os substitutos respeitando o respetivo ordenamento de lista.
Depois da operação de supressão e agregação de freguesias (a mor parte em uniões), determinada pela Lei n.º 11-A/2013, de 28 de janeiro, no âmbito da Lei n.º 22/2012, de 30 de maio (a lei-quadro),  que aprova o regime jurídico da reorganização administrativa territorial autárquica, são muito poucas as freguesias (aquelas em que o número de eleitores é inferior a 150) em que a junta de freguesia não emana duma assembleia de freguesia eleita, mas é eleita diretamente pelo plenário dos cidadãos eleitores.
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Foi para esta magna operação a realizar amanhã que se mobilizaram os partidos políticos, nalguns casos, em regime de coligação, e se constituíram grupos de cidadãos eleitores que se candidataram aos órgãos das autarquias locais. E estas são os municípios (não as câmaras, que são órgãos executivos dos municípios) e as freguesias (não as juntas, que são órgãos executivos das freguesias).
Houve bastantes casos de freguesias em que só uma lista concorreu à assembleia de freguesia. Este facto, aliado a outro, o da permanência como que alapada da mesma personalidade ou do mesmo partido à frente dos destinos de uma autarquia, deveria fazer repensar a política local e provavelmente levar a importantes alterações legislativas sobre a matéria.
Em alguns casos, aqueles em que efetivamente não há pessoas suficientes para formar listas, deveriam multiplicar-se as freguesias em que a junta é eleita diretamente em plenário, mas, segundo as regras de funcionamento de assembleia geral, em que os candidatos se apresentam em plenário e a votação é feita com o plenário reunido; e não como sucede nalguns casos em que a sala abre a determinada hora da manhã (cedinho) e fecha tardiamente a hora vespertina. Este comportamento configura, em meu entender, uma batota, pois, aqueles eleitores têm, sem necessidade, um bónus ou um massacre de mais 8 ou 15 dias de campanha eleitoral e já conhecem os resultados globais do município.
Entretanto, a maior parte dos casos em que é difícil conseguir (ou não se consegue) mais que uma lista de candidatos à assembleia de freguesia, considerando-se à partida eleita a lista única não resulta da exiguidade de eleitores disponíveis, mas do caciquismo local. Com efeito, em muitos municípios o bastião do poder autárquico torna-se inexpugnável pela criação de dependências, pela troca de contrapartidas sobre o voto ou pela oferta do voto à espera de benefícios de emprego, subsídios, licenças para desenvolvimento de projetos de habitação, empresariais ou socioculturais e, sobretudo (o que é mais grave ainda), pelo receio de retaliação ou de negação de benesses para as coletividades e freguesias. Recordo que é difícil os presidentes de junta da oposição, que integram por inerência a assembleia municipal, votarem contra a proposta de orçamento apresentado pelo executivo. Porquê? Para não serem acusados de bloqueio ao desenvolvimento da sua freguesia.
Depois, a lei eleitoral facilita um outro fenómeno que engrossa a rede dependencial. Dantes, não era admissível a candidatura às autarquias locais a funcionários do respetivo município, o que gerou algumas situações consideradas inconstitucionais. A partir de um determinado momento, a lei eleitoral proíbe a candidatura às autarquias locais a funcionários que detenham cargos de direção no município respetivo ou nas sociedades em que este detenha posição maioritária no capital social. É uma situação que facilmente se contorna: funcionários dirigentes demitem-se dos cargos; outros dispensam-se de aceder a eles; e os municípios descartam-se da posição maioritária das sociedades, ficando-se pela participação a 49,9%. 
Ora, torna-se mais perigoso para a democracia ter aberto a candidatura aos funcionários, pois, em geral, como autarcas em assembleias, câmaras e juntas, tornam-se mais servis do presidente da câmara do que os funcionários dirigentes (estes ainda são decisores que podem enfrentar o poder se quiserem). E os casos não são poucos em que os discursos e atitudes resultam de estrita recomendação do presidente ou de quem as suas vezes faz. E o cumprimento de obrigações funcionais é muitas vezes visto como resolução de problemas do foro político e administrativo.
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Porque incluo este arrazoado nas impressões de campanha? Exatamente, porque os partidos não explicaram aos eleitores ao que iam. Muitos pensam – e o material de campanha o faz supor – que se elege a câmara e a junta e também o presidente da assembleia municipal. Na verdade, o cidadão que encabeça a lista ganhadora de candidatura à câmara será o presidente da câmara, mas o que encabeça a lista de candidatura à assembleia pode não vir a ser o seu presidente. Basta que a lista que ele integra, embora tenha o maior número de votos, não disponha de maioria absoluta ou que alguns dos seus correligionários modifiquem o seu sentido de voto, pois a eleição da mesa é feita na primeira reunião da assembleia por escrutínio secreto.
Depois, as candidaturas não desmontaram nem denunciaram os defeitos dependenciais, “fraudulentos” ou lacunares acima expostos. É difícil fazer passar a mensagem e os jornalistas sabem tudo menos muito do que interessa. Até deram importância ao facto de os cabeças de lista única fazerem campanha eleitoral, esquecendo que os eleitores são como os jogadores de futebol: precisam de ser respeitados e acarinhados. Candidato praticamente eleito que ousasse desprezar os seus eleitores e a solidariedade para com o seu município arriscava-se a não ter lugar na próxima oportunidade por a sua atitude poder ser entendida como desprezo, arrogância ou falta de solidariedade.
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Mas a campanha foi muito movimentada: arruadas de carrinhas com instalação sonora e disseminação de panfletos, caravanas de automóvel, marchas a pé, contacto porta a porta, invasão de caixas de correio, comícios, distribuição de brindes, exibição de programas, colocação de outdoors publicitários, redes sociais, blogues, programas radiofónicos, comezainas, espetáculos, alguns debates televisivos… Tudo certo. Mas dois reparos: ninguém falou da distribuição de géneros alimentícios como se fosse Natal antecipado, pagamento de viagens do estrangeiro para cidadãos virem votar nesta ou naquela formação partidária, manipulação discreta ou descarada através de crianças em idade escolar e mesmo em pré-escolar, atribuição de bolsas para cursos de línguas... É de arrepiar, não? Não é este o poder ou serviço de proximidade!
Notou-se que os candidatos com maior arreganho em pompa e gastos são os que estão no poder autárquico. Mas o partido do poder central também sabe gastar e estar nos municípios que lhe interessam. É difícil separar um exercício de poder e um ato de campanha, como separar material administrativo de material de candidatura, não é?
Aos partidos e grupos de cidadãos que se candidataram só em algumas freguesias ou só em alguns municípios e àqueles que fizeram campanha só para eleger vereador ou vereadores ou para tirar maiorias absolutas devo dizer que isto não é sério. Se a lei de financiamento dos partidos está mal, corrijam-na. Os partidos legalmente constituídos têm de possuir meios para as operações eleitorais, venham eles dos militantes, do Estado ou das empresas. Essa de querermos os partidos independentes do poder económico é mera hipocrisia. Tão independentes que estão metidos na maior parte das questões económicas e financeiras do BES/GES, BCP, BPI, BPN, Montepio, Santander, Compta, Galilei, PPP, swap, etc.! Lembram-me os bispos de Portugal, que não deixaram Salazar atribuir um salário aos padres, como em Espanha ou na Alemanha, para não se acusar o clero de ficar de pendente do poder político. Valeu-lhes muito!...
Não fazer campanha, comícios, festa, etc. pode significar não atenção ao eleitor. Se não vêm nem visitá-lo para a eleição, que garantias dão de o atenderem se forem poder. Depois, quando se vai à luta, embora se corra o risco de perder, o objetivo é ganhar. E começa-se logo pelo discurso e pelo ímpeto de festa. Concorrer para cumprir calendário ou para ter um vereador ou um deputado ou para tirar maioria sabe a pouco e não é uma atitude política nem de serviço à democracia. E isto aconteceu.
Neste período eleitoral, houve duas coisas que já não deviam acontecer: a quantidade de reclamações junto da CNE (Comissão Nacional de Eleições) por atitudes e situações irregulares, como destruição de material de propaganda, má confeção de material eleitoral, confusão de documentação de ação autárquica e publicidade eleitoral, entre outros aspetos; e a disparidade de decisões do TC (Tribunal Constitucional) na apreciação de recursos sobre decisões dos tribunais de comarca sobre alegadas irregularidades de candidaturas, o que não aconteceria se o TC tivesse uma secção especializada que apreciasse estes processos.  
Também quero deixar uma palavra sobre a intervenção dos líderes nacionais nas campanhas às eleições autárquicas. É certo que eles têm o dever da solidariedade para com aqueles e aquelas que dão a cara no terreno pelos partidos e são uma mais-valia para os partidos. Porém, estas eleições não podem confundir-se com as eleições nacionais, que infelizmente movimentam muitíssimo pouco os autarcas e as populações, o que se reflete na elevadíssima percentagem de abstencionistas. E fazer delas a inauguração de novo ciclo político como alguns comentadores dizem que Marcelo quis fazer (Ele o deu a tender em certa medida quando disse não haver crise política até às autárquicas!) é de efeito perverso. Primeiro, porque, a nível local, as pessoas a eleger estão acima dos partidos; segundo, há situações de simpatia partidária a nível local, quando o mesmo partido gera antipatias a nível nacional (Vi isso em 2005, quando na apresentação de candidatura autárquica do PS, uma deputada veio dizer maravilhas do governo de Sócrates!) e vice-versa; e, ainda, porque incumbe aos dirigentes nacionais a solidariedade, mas não o apadrinhamento. Tanto assim é que uma candidatura quis aproveitar como apoio presidencial a simpatia do Presidente e grupos de professores e de enfermeiros manifestaram-se contra o Primeiro-Ministro a pretexto de ações partidárias de campanha. Fez bem António Costa ao separar as águas e fazem mal os dirigentes nacionais que aproveitam as autárquicas para vender a banha de cobra governativa ou os candidatos locais (dirigentes nacionais) que aproveitam o papel de candidatos a autarquia para debate de questões nacionais.   
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Por uma questão de simpatia, mas também de dever cívico e para com o insigne, não resisto à citação da parte final da última entrevista (sobre eleições autárquicas) do falecido Bispo do Porto à agência Ecclesia (AE), a 9 de setembro, em Fátima, na antevéspera da sua morte.
Fez um comentário ao repto da AE sobre a proximidade das eleições autárquicas, a abundância do discurso em torno do local e do poder local e a importância de se falar “muito no valor das pessoas”, mas sem que isso “não se esqueça após a contagem dos votos”:
Creio que todos nós somos devedores, após o 25 de Abril de 1974, a um grande caminho feito no poder autárquico. O serviço dos autarcas, a quem eu presto homenagem e admiração, quando realizado como tónica de dimensão de serviço. Aqueles que servem, tanto nas juntas de freguesia como nas câmaras municipais, são os que estão mais próximos de nós e conhecem melhor a realidade. Todavia há realidades que demoram muito tempo. A burocracia e a administração são muitas vezes lentas. Estas atrasam soluções que prejudicam e tornam injusta a vida das populações. Este é um caminho grande a percorrer… E depois a transparência. Acho que a verdade, a autenticidade e entrega são essenciais. Todavia, considero que o rosto das cidades, vilas e aldeias transformou-se e, graças a Deus, para bem de todos.”.
Da necessidade de reforçar este poder para aumentar a proximidade às populações, disse:
Devemos fazer uma grande reforma da administração central, administração regional e local. Quanto mais aproximarmos os servidores, seja a nível do Estado, das autarquias e instituições daqueles a quem servem para que seja olhos nos olhos, coração a coração, rosto a rosto… Nós estamos a construir um Portugal melhor, mas nesta área temos muito a aprender com outros povos para reforçar o poder autárquico. Aqueles que nos conhecem podem servir-nos melhor.”.
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Porém, estas partes da entrevista têm umas reticências, que representam omissões da versão oral que saiu de forma algo confusa, pelo que se compreende esta atitude prudencial da AE. Mas é pena, porque, apesar da gratidão e simpatia plasmada na entrevista, aliás como na vida do prelado, fica patente a marca das exceções apontada ao espírito de serviço de autarcas, tendo ele dito que são exceções que confirmam a regra. Por outro lado, há a exigência que devemos fazer aos autarcas que elegemos na linha do acompanhamento e da ação inspetiva.
Sabendo que se trata dum bispo que lidou de perto com o poder autárquico já enquanto sacerdote, devo dizer que ele sabia o que bem queria dizer na sua lucidez, bondade, exigência e apoio a todos os que desejam bem servir.
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Penso que as autarquias, em vez do jogo de interesses que às vezes são, devem passar a ser sempre escolas e campos do bem-fazer, passando pelo bem pensar, bem-querer e bem participar: escolas e campos da cidadania, do exercício da política ativa – almejando a realização de pessoas e famílias, o bem-estar das populações e o desenvolvimento económico e social.

2017.09.30 – Louro de Carvalho

sexta-feira, 29 de setembro de 2017

“Para continuar a renovação da vida litúrgica”

É efetivamente com o escopo de prosseguir a renovação da vida litúrgica que o Papa Francisco fez publicar, a 9 de setembro pp, a carta apostólica “Magnum principium” na forma de Motu Proprio, datado de 3 do mesmo mês, com que modificou o cânon 838 do CIC (Código de Direito Canónico, Codex Iuris Canonici) para entrar em vigor no próximo dia 1 de outubro.
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A justificação
No texto preambular, fica plasmada a justificação que se sintetiza nos termos seguintes:
O documento retoma o magno princípio, confirmado pelo Concílio Ecuménico Vaticano que induz a assimilação da oração litúrgica, convenientemente adaptada à compreensão do povo, e à luz do qual se exige aos Bispos a tarefa de introduzir a língua vulgar na liturgia e de preparar e aprovar as versões dos livros litúrgicos. Apesar de ciente do grande sacrifício da perda parcial da língua, usada em todo o mundo ao longo dos séculos, a Igreja latina abriu de boa mente a porta a que as versões, como partes dos próprios ritos, se tornassem voz da Igreja que celebra os mistérios divinos. Entretanto, colocavam-se-lhe dois problemas: dum lado, a necessidade de “unir o bem dos fiéis de qualquer idade e cultura e o seu direito a uma participação consciente e ativa nas celebrações litúrgicas com a unidade substancial do Rito Romano”; do outro, a dificuldade das línguas vulgares em tornar-se línguas litúrgicas (só muito progressivamente), esplendorosas à semelhança do latim litúrgico “por elegância de estilo e pela gravidade dos conceitos a fim de alimentar a fé”. E era este o escopo das leis litúrgicas, instruções, circulares, indicações e confirmações dos livros em língua vernácula emanadas pela Santa Sé já durante o Concílio, no pós-Concílio e mesmo depois das normas estabelecidas no CIC, de 1983.
Os critérios indicados foram e permanecem úteis, pelo que, dentro do possível, devem ser seguidos pelas Comissões litúrgicas como instrumentos adequados para que, na variedade das línguas, a comunidade litúrgica alcance um estilo expressivo adequado e congruente com cada uma das partes, mantendo a integridade e a fidelidade cuidadosa, sobretudo na tradução de textos de maior relevância em cada livro litúrgico.
Na verdade, texto litúrgico, como sinal ritual, é meio de comunicação oral. Mas para os crentes também a palavra é um mistério: pois, quando são proferidas as palavras, sobretudo quando se lê a Sagrada Escritura, Deus fala aos homens, Cristo no Evangelho fala ao seu povo que, por si ou mediante o celebrante, responde, com a oração, ao Senhor no Espírito Santo. Assim, a tradução dos textos legislativos e bíblicos para a liturgia da Palavra visa “anunciar aos fiéis a palavra de salvação em obediência à fé e exprimir a oração da Igreja ao Senhor”. Por isso, é preciso comunicar fielmente a um povo em concreto, pela sua língua, o que a Igreja pretende comunicar por meio da língua latina. Mesmo se nem sempre a fidelidade pode ser julgada por simples palavras, mas no contexto de toda a ação comunicacional e segundo o género literário, alguns termos peculiares devem ser considerados também no contexto da íntegra fé católica, pois cada tradução dos textos litúrgicos deve ser congruente com a doutrina.
É normal que, ao longo do tempo, tenham surgido dificuldades entre as Conferências Episcopais e a Sé Apostólica. Mas para a validade, também no futuro, das decisões do Concílio sobre o uso das línguas vulgares na Liturgia, torna-se necessária a constante colaboração, cheia de “confiança recíproca, vigilante e criativa”, entre as Conferências Episcopais e a Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos. Assim, para que a renovação de toda a vida litúrgica continue, “pareceu oportuno que alguns princípios transmitidos desde o tempo do Concílio sejam reafirmados e postos em prática de maneira mais clara”.
Nesse sentido, deve-se prestar atenção à utilidade e ao bem dos fiéis, mas sem esquecer o direito e o encargo das Conferências Episcopais que, juntamente com as Conferências Episcopais de regiões que usam a mesma língua e com a Sé Apostólica, têm em garantir e estabelecer que, salvaguardada a índole de cada língua, seja dado plena e fielmente o sentido do texto original e que os livros traduzidos, até depois das adaptações, resplandeçam pela unidade ao Rito Romano. É justamente para tornar mais fácil e frutuosa a colaboração entre a Sé Apostólica e as Conferências Episcopais que deve ser prestado aos fiéis que o Papa dispõe que a disciplina canónica vigente no cân. 838 do CIC seja tornada mais clara, para que, segundo o expresso na Constituição Sacrosanctum Concilium (em especial nos artigos 36 §§ 3.4, 40 e 63), de 1963, e na Carta Apostólica Motu Proprio Sacram Liturgiam (n. IX), seja mais clara a competência da Sé Apostólica quanto a traduções dos livros litúrgicos e adaptações mais profundas, entre as quais se incluem eventuais novos textos a serem inseridos neles, estabelecidos e aprovados pelas Conferências Episcopais.
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As normas modificadas
Assim, no futuro, o cân. 838 será lido como segue (a negrito vão as alterações introduzidas em relação ao texto em vigor até 1 de outubro):
“Cân. 838 – §1.  O ordenamento da sagrada liturgia depende unicamente da autoridade da Igreja: compete, de modo próprio, à Sé Apostólica, e, segundo as normas do direito, ao Bispo diocesano.
§ 2 – Pertence à Sé Apostólica ordenar a liturgia sagrada da Igreja Universal, publicar os livros litúrgicos, rever as adaptações aprovadas, segundo as normas do direito, pela Conferência Episcopal, e vigiar para que em toda a parte se observem fielmente as normas liturgias. 
§ 3 – Compete às Conferências Episcopais preparar fielmente as versões dos livros litúrgicos nas línguas vernáculas, convenientemente adaptadas dentro dos limites fixados, aprová-las e publicar os livros litúrgicos, para as regiões da sua competência, após a confirmação da Sé Apostólica.
§ 4 – Ao Bispo diocesano, na Igreja que lhe foi confiada, pertence, dentro dos limites da sua competência, dar normas em matéria litúrgica, que todos estão obrigados a observar.”.
Por consequência, devem ser interpretados em consonância quer o art. 64 § 3 da Constituição Apostólica Pastor bonus quer as outras leis, em particular as que estão contidas nos livros litúrgicos, acerca das suas versões. De igual modo, se dispõe que a Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos modifique o próprio “Regulamento” com base na nova disciplina, ajude as Conferências Episcopais a desempenhar a sua tarefa e se comprometa a promover cada vez mais a vida litúrgica da Igreja Latina.
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Algumas reações
O Secretariado Nacional de Liturgia da Conferência Episcopal Portuguesa, comentou: 
“O propósito da mudança é definir melhor o papel da Sé Apostólica e as Conferências Episcopais, que são chamadas a trabalhar em diálogo uns com os outros, respeitando as suas próprias competências, que são diferentes e complementares, tanto para a tradução de livros latinos (edição típica) quanto para possíveis adaptações de textos e ritos. Tudo isso, ao serviço da oração litúrgica do povo de Deus.
Mons. Arthur Roche, Secretário da Congregação do Culto Divino e da Disciplina dos Sacramentos, publicou uma Nota a ilustrar as fontes normativas que originaram a alteração ao cân. 838, de que, a seguir, se dá conta.
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Nota sobre o Cânone 838 à luz de fontes conciliares e pós-conciliares
Aquando da publicação do Magunm principium, com o qual Francisco estabelece variações nos §§ 2 e 3 do cân. 838 do CIC, o Secretário da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos comenta as fontes que fundamentam tais parágrafos, considerando a formulação até agora em vigor e a nova.
O texto hodierno:
§ 2. “Apostolicae Sedis est sacram liturgiam Ecclesiae universae ordinare, libros liturgicos edere eorumque versiones in linguas vernaculas recognoscere, necnon advigilare ut ordinationes liturgicae ubique fideliter observentur”.
§ 3. “Ad Episcoporum conferentias spectat versiones in linguas vernaculas, convenienter intra limites in ipsis libris liturgicis definitos aptatas, parare easque edere, praevia recognitione Sanctae Sedis.
Para o § 2, as referências são o n.º 21 da instrução Inter Oecumenici (26 de setembro de 1964) e o cân. 1257 do CIC, de 1917. Para o § 3, são a Sacrosanctum Concilium n. 22 § 2 e n. 36 §§ 3-4; S. Congr. pro Sacramentis et Cultu Divino, Epist. Decem iam anos (5 de junho de 1976); S. Congr. pro Doctrina Fidei, Ecclesiae pastorum (19 de março de 1975), art. 3.
Apesar de as fontes terem mero valor indicativo e não serem completas, podem-se fazer algumas anotações a seu respeito e a propósito daquilo em que têm implicações.
Assim, antes de mais, acerca do § 2 do cân. 838, é de referir:
O n. 21 da Instrução Inter Oecumenici pertence ao cap. I, VI. De competenti auctoritate in re litúrgica (na Const. art. 22) e reza:
“Apostolicae Sedis est tum libros liturgicos generales instaurare atque approbare, tum sacram Liturgiam in iis quae universam Ecclesiam respiciunt ordinare, tum Acta et deliberationes auctoritatis territorialis probare seu confirmare, tum eiusdem auctoritatis territorialis propositiones et petitiones accipere”.
Parece clara a pressuposta igualdade entre o verbo “recognoscere”, do § 2 do cân. 838, e a expressão “probare seu confirmare”, da Inter Oecumenici. Esta última expressão foi desejada pela Comissão litúrgica do Concílio Vaticano II para substituir a terminologia derivante do verbo “recognoscere” (“actis recognitis”), com referência ao cân. 250 § 4 (cf cân. 304 § 2) do CIC, de 1917, como foi explicado aos Padres conciliares na Relatio e por eles votado no n. 36 § 3 da Sacrosanctum Concilium na forma “actis ab Apostolica Sede probatis seu confirmatis”. Pode-se notar também que o n. 21 da Inter Oecumenici respeita a todos os atos das autoridades territoriais, enquanto neste ponto o CIC o aplica especificamente às “interpretationes textuum liturgicorum”, matéria que a Inter Oecumenici trata explicitamente no n. 40.
Em relação ao do § 3 do cân. 838, a referência à Sacrosanctum Concilium n. 22 § 2 é pertinente. E quanto à referência ao n. 36 §§ 3-4 desta (o § 3 trata “de usu et modo linguae vernaculae statuere, actis ab Apostolica Sede probatis seu confirmatis” e o § 4 da “conversio textus latini in linguam vernaculam in Liturgia adhibenda, a competenti auctoritate ecclesiastica territoriali, de qua supra, approbari debet”) é evidente que para a tradução não se pede uma probatio seu confirmatio nem uma recognitio em estreito sentido jurídico, como exige o cân. 455 § 2. A vicissitude em relação a um trecho do Motu Proprio Sacram Liturgiam n. IX (25 de janeiro de 1964), que pela reação dos Padres Conciliares foi emendado na Acta Apostolicae Sedis, não terá sido considerada adequadamente. No Sacram Liturgiam, publicado em L’Osservatore Romano, de 29 de janeiro de 1964, lia-se:
... populares interpretationes, a competente auctoritate ecclesiastica territoriali propositas, ab Apostolica Sede esse rite recognoscendas  atque probandas”.
 Mas na Acta Apostolicae Sedis foi adotada a terminologia conciliar:

...populares interpretationes, a competente auctoritate ecclesiastica territoriali conficiendas et approbandas esse, ad normam art. 36, §§ 3 et 4; acta vero huius auctoritatis, ad normam eiusdem art. 36, § 3, ab Apostolica Sede esse rite probanda seu confirmanda”. 
Portanto, o Sacram Liturgiam distinguia a aprovação das traduções como tais por parte das autoridades territoriais por decreto que as tornava obrigatórias e o facto que tal ato devia ser “probatus seu confirmatus” pela Sé Apostólica. Ademais, o Sacram Liturgiam acrescenta:
Quod ut semper servetur praescribimus, quoties liturgicus quidam textus latinus a legitima, quam diximus, auctoritate in linguam vernaculam convertetur”. 
A prescrição refere-se aos dois momentos distintos: o conficere et approbare uma tradução; e o ato de a tornar obrigatória com a publicação do livro que a contém.
A referência cruzada com a Epist. Decem iam annos da S. Congregatio pro Sacramentis et Cultu Divino é pertinente, mas nunca usa o termo “recognoscere”, mas sim os termos “probare, confirmare, confirmatio”. Quanto ao Ecclesiae pastorum da S. Congregatio pro Doctrina Fidei, art. 3 (composto de três números), só o n. 1 se refere à questão, rezando:
Libri liturgici itemque eorum versiones in linguam vernaculam eorumve partes ne edantur nisi de mandato Episcoporum Conferentiae atque sub eiusdem vigilantia, praevia confirmatione Apostolicae Sedis”.
O n. 2 concerne às reedições; e o n. 3, aos livros de oração. Porém, é de notar que às Conferências Episcopais se atribuem a vigilância e o mandato, enquanto à Sé Apostólica a “praevia confirmatio” acerca do livro que se edita, e não precisamente uma “recognitio” da versão, como ao contrário refere o cân. 838.
O texto novo:
A modificação dos §§ 2 e 3 do cân. 838 pelo Magnum principium requer a seguinte formulação:
§ 2. “Apostolicae Sedis est sacram liturgiam Ecclesiae universae ordinare, libros liturgicos edere, aptationes, ad normam iuris a Conferentia Episcoporum approbatas, recognoscere, necnon advigilare ut ordinationes liturgicae ubique fideliter observentur”.
§ 3. “Ad Episcoporum Conferentias spectat versiones librorum liturgicorum in linguas vernaculas fideliter et convenienter intra limites definitos accommodatas parare et approbare atque libros liturgicos, pro regionibus ad quas pertinent, post confirmationem Apostolicae Sedis edere”.
Assim, o § 2 atinge as “aptationes” (já não as “versiones”, matéria do § 3), isto é, textos e elementos que aparecem na editio typica latina, assim como as “profundiores aptationes” contempladas na Sacrosanctum Concilium (n. 40) e reguladas pela Instrução Varietates legitimae sobre a liturgia romana e a inculturação (25 de janeiro de 1994); aprovadas pela Conferência Episcopal, as “aptationes” devem ter a “recognitio” da Sé Apostólica. A referência é à Sacrosanctum Concilium n. 36 § 3. O § 2 modificado conserva, entre as suas fontes, o cân. 1257 do CIC de 1917 e acrescenta a referência à Instrução Varietates legitimae que trata da aplicação dos nn. 39 e 40 da Constituição Sacrosanctum Concilium, para o que se exige uma verdadeira “recognitio”.
O § 3 refere-se às “versiones” dos textos que, especificado melhor, devem ser feitas “fideliter” e aprovadas pelas Conferências Episcopais.
A referência é à Sacrosanctum Concilium n. 36 § 4 e também à analogia com o cân. 825 § 1 sobre a versão da Sagrada Escritura. Tais versões são editadas nos livros litúrgicos, depois de ter recebido a “confirmatio” da Sé Apostólica, como disposto pelo Sacram Liturgiam, n. IX.
A formulação anterior no § 3 do cân. 838: “intra limites in ipsis libris liturgicis definitos aptatas”, devedora da Sacrosanctum Concilium n. 39 (“Intra limites in edititionibus typicis librorum liturgicorum statutos... aptationes definire”), concernente às “aptationes” e não às “versiones” das quais agora trata este parágrafo, é apresentada agora com a expressão “intra limites definitos accommodatas”, segundo a terminologia do n. 392 do Institutio Generalis Missalis Romani, o que permite oportuna distinção em relação às “aptationes” nomeadas no § 2.
E o § 3 aperfeiçoado continua a fundar-se na Sacrosanctum Concilium  n. 22 § 2; n. 36 §§ 3 – 4; S. Congr. pro Sacramentis et Cultu Divino, Epist. Decem iam anos (5 de junho de 1976); S. Congr. pro Doctrina Fidei, Ecclesiae pastorum (19 de março de 1975), art. 3, com o acréscimo da referência aos nn. 391 e 392 do Institutio Generalis Missalis Romani (ed. typica tertia), mas evitando os termos “recognoscere, recognitis”, de modo que o ato da Sé Apostólica relativo às versões, preparadas pelas Conferências Episcopais com particular fidelidade ao sentido do texto latino (ver o acréscimo do “fideliter”), não possa ser equiparado à disciplina do cân. 455, mas incluído na ação de uma “confirmatio” (como expressa tanto a Decem iam annos como a Ecclesiae pastorum, art. 3).
A “confirmatio” é um ato de autoridade com o qual a Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos ratifica a aprovação dos Bispos, deixando a responsabilidade da tradução, presumidamente fiel, ao munus doutrinal e pastoral da Conferência dos Bispos.
Em suma, realizada na base da confiança recíproca, a “confirmatio” supõe a positiva avaliação da fidelidade e da congruência dos textos produzidos em relação ao texto típico latino, tendo em conta sobretudo os textos de maior importância (por exemplo as fórmulas sacramentais, que exigem a aprovação do Santo Padre, o Rito da Missa, as orações eucarísticas e de ordenação, que requerem uma revisão esmerada). E, como recordado no presente Motu Proprio, as mudanças do cân. 838, §§ 2 e 3 têm consequências no art. 64 § 3 da Constituição Apostólica Pastor bonus, no Institutio Generalis Missalis Romani e nos Praenotanda dos livros litúrgicos, nos lugares que se ocupam da matéria das traduções e das adaptações.
Uma chave de leitura
Comentário do Secretário da Congregação para o Culto Divino e Disciplina dos Sacramentos
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O presente Motu Proprio muda a formulação de normas do CIC atinentes à edição dos livros litúrgicos nas línguas vernáculas, designadamente o texto do cân. 838. A exposição dos motivos é oferecida pelo próprio documento, que recorda e expõe os princípios que estão na base da tradução dos textos litúrgicos típicos em língua latina e as instâncias implicadas nesse delicado trabalho. Sendo oração da Igreja, a liturgia é de facto regulada pela autoridade eclesial.
Considerando a importância dos desafios, já os padres Vaticano II tinham interpelado quer a Sé apostólica quer as conferências episcopais. De facto, o compromisso de providenciar traduções litúrgicas foi guiado por normas e instruções específicas do dicastério competente, em particular Comme le prévoit (25 de janeiro de 1969) e, depois do CIC de 1983, Liturgiam authenticam (28 de março de 2001), ambos publicados, em fases diferentes, para responder a problemas concretos evidenciados ao longo do tempo e suscitados pelo trabalho complexo que a tradução dos textos litúrgicos comporta. Ao contrário, relativamente ao âmbito da inculturação, a matéria foi regulada pela instrução Varietates legitimae (25 de janeiro de 1994).
Considerada a experiência, agora, segundo o Papa,
Pareceu oportuno que alguns princípios transmitidos desde o período do Concílio sejam reafirmados de forma mais clara e postos em prática”.
Portanto, foi considerando o caminho percorrido e olhando o futuro, com base na constituição Vaticano II Sacrosanctum Concilium, que o Pontífice especificou a disciplina vigente introduzindo variações ao cânone 838 do CIC, com a finalidade de definir melhor os papéis da Sé apostólica e das conferências episcopais, chamadas a trabalhar em diálogo entre elas, no respeito da própria competência, diferente e complementar, relativamente à tradução dos livros típicos latinos, bem como das eventuais adaptações, que podem dizer respeito aos textos e aos ritos – isto “ao serviço da oração litúrgica do povo de Deus”. Em particular, na nova formulação do cânone 838, faz-se distinção mais adequada em relação ao papel da Sé apostólica, entre o âmbito próprio da recognitio e o da confirmatio, no respeito de quanto compete às conferências episcopais, tendo em conta a sua responsabilidade pastoral e doutrinal e os seus limites de ação.
A “recognitio, referida no § 2, implica o processo de reconhecimento da parte da Sé apostólica das legítimas adaptações litúrgicas, inclusive as “mais profundas”, que as conferências podem estabelecer e aprovar para os seus territórios, nos limites consentidos. Portanto, no terreno de encontro entre liturgia e cultura, a Sé apostólica é chamada a recognoscere, ou rever e avaliar estas adaptações, em virtude da salvaguarda da unidade substancial do rito romano. A referência nesta matéria são os números 39-40 da Sacrosanctum Concilium; e a sua aplicação, nos modos indicados ou não nos livros litúrgicos, é regulamentada pela instrução Varietates legitimae.
Ao invés, a “confirmatio” – termo adotado no Motu Proprio Sacram Liturgiam n. IX (25 de janeiro 1964) – incide nas traduções dos textos litúrgicos que, de acordo com a Sacrosanctum Concilium (n. 36 § 4), compete às conferências episcopais preparar e aprovar; o § 3 do cânone 838 especifica que as versões devem ser realizadas fideliter conforme os textos originais, tendo em conta a preocupação principal da instrução Liturgiam authenticam. Com efeito, evocando o direito e responsabilidade da tradução confiada às conferências episcopais, o Motu Proprio recorda que as conferências
Devem fazer com que e, ao mesmo tempo, estabelecer que, ao salvaguardar a natureza de cada língua, seja dado plena e fielmente o sentido do texto original”.
Portanto, a confirmatio da Sé apostólica não se apresenta como uma intervenção alternativa de tradução, mas como um ato autoritativo com o qual o competente dicastério ratifica a aprovação dos bispos, supondo uma avaliação positiva da fidelidade e congruência dos textos produzidos em relação à edição típica sobre a qual se funda a unidade do rito e tendo em conta sobretudo os textos de maior importância, especialmente as fórmulas sacramentais, as orações eucarísticas, as orações de ordenação, o rito da missa, e assim por diante.
A modificação do CIC comporta ajustamento do artigo 64 § 3 da Pastor bonus (de 28 de junho de 1988), bem como da normativa em matéria de traduções – o que postula a correção de alguns números do Institutio generalis missalis Romani e dos Praenotanda dos livros litúrgicos. A própria instrução Liturgiam authenticam, que deve ser apreciada pelas válidas atenções que reserva a este trabalho e a suas implicações, quando pede a recognitio, deve ser interpretada à luz da nova formulação do cânone 838. Por fim, o Motu Proprio dispõe que a Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos “modifique o próprio Regulamento com base na nova disciplina e ajude as Conferências Episcopais a levar a cabo a própria tarefa”.
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Concluindo
Trata-se de uma norma sobre trabalho orientado e regulado pelos critérios sugeridos de tempos a tempos por alguns documentos normativos fundamentais, em particular pelas instruções Comme le prévoit de 1969 e Liturgiam authenticam de 2001.
O Ponto-chave do Motu Proprio é a relação entre Sé Apostólica e conferências episcopais na preparação e na tradução dos textos litúrgicos, precisamente para “tornar mais fácil e frutuosa” a sua colaboração, através dum clima de “confiança recíproca, vigilante e criativa”. Assim, o Papa reformula o cânone 838, definindo em particular a distinção entre “revisão” (recognitio) e “confirmação” (confirmatio), ambas as tarefas de competência da Sé Apostólica. A primeira, tendo por critério a verificação da fidelidade ao rito romano e à sua substancial unidade, consiste na obra de “revisão” e avaliação das adaptações que a conferência episcopal faz aos textos litúrgicos para valorizar as legítimas diversidades de povos e etnias no culto divino; a segunda, relativa às traduções preparadas e aprovadas pelos bispos para as regiões de sua competência, configura o ato da Sé Apostólica, que sobre aquelas matérias é de “confirmação”, ratificando em substância o trabalho dos episcopados e obviamente pressupondo a sua fidelidade e a correspondência das versões ao texto litúrgico original.
Porém, “não basta reformar os livros para renovar a mentalidade”, como dizia Francisco, a 24 de agosto pp, aos participantes da Semana Litúrgica Nacional italiana, a quem, garantindo a irreversibilidade da reforma litúrgica, recordou os eventos substanciais (e não superficiais) do arco dos últimos 70 anos na história Igreja e em particular, na história da liturgia. Com efeito, a educação litúrgica de Pastores e fiéis é desafio a enfrentar sempre de novo. O Concílio Vaticano II e a reforma litúrgica são eventos conexos, “que não floresceram repentinamente, mas foram longamente preparados”, como testemunha o movimento litúrgico e as respostas dadas pelos Sumos Pontífices às dificuldades percebidas na oração eclesial. Mencionou São Pio X, com reordenação da música sacra, restauração celebrativa do domingo e criação da comissão para a reforma geral da liturgia; o projeto reformador de Pio XII com a Encíclica Mediator Dei, a instituição duma comissão de estudo e as decisões de atenuação do jejum eucarístico, de uso da língua viva no Ritual, da reforma da Vigília Pascal e da Semana Santa; e a direção traçada pelo Concílio que encontrou forma segundo o princípio do respeito da sã tradição e do progresso nos livros litúrgicos promulgados pelo Beato Paulo VI”, já há quase 50 anos universalmente em uso no Ritual Romano. E Paulo VI, um ano antes da morte, disse ao consistório dos cardeais:
Chegou o momento, agora, de deixar cair definitivamente os fermentos desagregadores, igualmente perniciosos em um sentido e em outro, e de aplicar integralmente, nos seus justos critérios inspiradores, a reforma por nós aprovada em aplicação aos votos do Concílio”.
Francisco disse que “a liturgia é “viva” e que “sem a presença real do mistério de Cristo, não existe nenhuma vitalidade litúrgica. “Como sem o batimento cardíaco não existe vida humana, da mesma forma, sem o coração pulsante de Cristo não existe ação litúrgica”. E salientou:
Entre os sinais visíveis do invisível Mistério está o altar, sinal de Cristo pedra viva, descartada pelos homens mas que se tornou a pedra angular do edifício espiritual em que é oferecido a Deus vivo o culto em espírito e verdade”.
A liturgia é vida para e com todo o povo, convocado. Por natureza, a liturgia é, de facto, popular e não clerical, não seletiva, mas inclusiva, criadora de comunhão e transformação. E comentou:
A Igreja em oração acolhe todos aqueles que têm o coração na escuta do Evangelho, sem descartar ninguém: são convocados pequenos e grandes, ricos e pobres, crianças e idosos, saudáveis e doentes, justos e pecadores. À imagem da ‘multidão imensa’ que celebra a liturgia no santuário do céu, a assembleia litúrgica supera, em Cristo, todo limite de idade, raça, língua e nação.”.
Não podendo esquecer que Igreja em oração enquanto “católica” vai além do Rito Romano que, mesmo sendo o mais difundido, não é o único, disse das tradições do Oriente e do Ocidente:
“O Espírito dá voz à única Igreja orante por Cristo, com Cristo e em Cristo, para glória do Pai e para a salvação do mundo”.

2017-09.29 – Louro de Carvalho