Celebrou-se,
a 15 de setembro, a memória litúrgica de Nossa Senhora das Dores, que o corre
no dia imediatamente a seguir à festa da Exaltação da Santa Cruz. Com efeito,
como diz São Paulo
Na
1.ª carta aos Coríntios, “nós
pregamos Cristo crucificado, escândalo para os judeus e loucura para os
gentios; mas, para os que são chamados, tanto judeus como gregos, Cristo é
poder e sabedoria de Deus” (1Cor 1,23-24).
Assim, o estandarte da cruz proclama ao mundo a morte de Jesus e a sua glória,
porque o Autor de todo o universo contemplamos suspenso no madeiro (do
hino de Laudes). E nós adoramos a cruz do
Senhor e, por ela, louvamos e glorificamos a ressurreição de Cristo, o
Redentor; da árvore da cruz o Messias passou ao sepulcro donde se levantou vivo
e glorioso trazendo a alegria ao mundo inteiro.
Ora, presente junto à cruz, Maria, a Mãe de Jesus, viveu e
sentiu os sofrimentos de Seu filho. É por isso que a liturgia lhe dedica
especial atenção, depois de ter celebrado a Exaltação da Santa Cruz. As dores
da Virgem, unidas aos sofrimentos de Cristo foram redentoras (em certo modo, Ela é corredentora), indicando-nos
o caminho da nossa dor.
Como se vê, no Calvário, a Virgem, mais do que portadora da
soledade, mostra-se solidária. De facto, cumpre-se a profecia de Simeão a
Maria: o menino, Luz das nações e
Glória de Israel, está para queda e
ressurgimento de muitos em Israel e para ser sinal de contradição; uma espada
trespassará a tua alma, havendo, assim de revelar-se os pensamentos de muitos
corações (cf Lc
2,32.34-35). Com razão se reza na oração coleta da Missa e da Liturgia
das Horas:
“Senhor, que, na vossa admirável providência, quisestes
que, junto do vosso Filho, elevado sobre a cruz, estivesse sua Mãe,
participando nos seus sofrimentos, concedei à vossa Igreja que,
associada com Maria à paixão de Cristo, mereça ter parte na sua
ressurreição”.
Esta solidariedade da Mãe é estabelecida com Cristo e implica
o arquétipo da solidariedade da Igreja com o Cristo do Calvário e com o Cristo
presente nos irmãos e irmãs que sofrem, qualquer que seja a modalidade de
sofrimento.
Ao escrever estas considerações, recordo que, no passado dia
2 de setembro, participei na celebração eucarística na capela de Nossa Senhora da Soledade no sítio do Calvário
da vila de Castro Daire (um lugar belo, bem
arranjado e sobranceiro à vila) com um conjunto de amigas e amigos que frequentaram outrora
o Colégio. A capela foi objeto de
cuidada reparação e restauro, dentro do que foi possível. E via-se a imponente
imagem da Senhora das Dores ou da Soledade, marcada pela cor roxa das vestes e,
como insígnia, pelas espadas de dor. A seus pés, sob a mesa do altar da
celebrações, jaz o Cristo morto como que em túmulo de repouso; e, numa das
paredes laterais, a tradicionalmente dita do Lado do Evangelho, figura o Cristo
dos Passos carregando a cruz. Neste cenário, nas palavras que dirigiu aos
participantes, o reverendo pároco comentava o Evangelho de Mateus (Mt 16,21-27), exortando a que não assumíssemos o papel de diabo que
Pedro estava a desempenhar ao querer retirar Jesus do projeto de cruz, segundo
dos interesses, não de Deus, mas dos homens (ao
invés do afoito ato de fé no Messias de Deus, em Cesareia de Filipe) e aconselhando
a que todos e cada um, segundo a sua condição de vida, aprendesse a ser
discípulo de Jesus, renunciando a si mesmo, tomando a cruz da vida e seguindo o
Mestre. E fui pensando como, ante a Senhora da Dores, se enunciam devota e
orantemente as suas sete dores: escuta da profecia de Simeão; fuga para o Egito
por quererem matar o Menino; perda do Menino no Templo; encontro de Jesus rumo
ao Calvário; postura de Mãe junto à cruz; receção do Cristo morto no seu regaço
de Mãe; e sepultura do Filho morto. E, como tantos e tantas, em Senhora da
Soledade, pensei na perda do esposo José para o seio do Pai; na separação do
Filho para a vida pública de pregação do Reino; no sobressalto quando disseram
à Mãe que o Filho pregador desvairava; na perda do Filho no horizonte deste
mundo, pela morte e sepultura.
Mas também me interroguei: Só dor, solidão, soledade? E a solicitude de Caná? E entrega
testamentária, por Jesus, da Mãe ao discípulo amado e do discípulo à Mãe à Mãe
como filho?
***
A pessoa solidária tem que se configurar como sólida e,
somente fazendo a experiência da “solitariedade”, terá capacidade para se
aguentar sólida e ser solidária. Talvez não seja mau proceder a um “excursus”
sobre alguns termos latinos para melhor entendermos esta doutrina.
Comecemos por “solus” (adjetivo), que
significa: só, único, sem companhia, isolado, solitário, isolado, abandonado,
particular, principal. E, parónimo daquele, temos “sollus” (adjetivo, palavra osca equivalente a omnis ou a totus), que significa
“inteiro”. Maria não se fez principal nem esteve totalmente sozinha, mas sentiu
a falta do Filho e dos amigos dele, sobretudo depois que o viu morto e após a
sepultura. Mas foi toda, inteiramente, dedicada ao Filho e às suas causas.
Depois, temos “solitas, atis” (nome), que significa
“unidade, solidão, isolamento, retiro”; e “solitudo, inis” (nome), a significar “solidão, soledade, retiro, abandono,
desamparo, falta, privação, ermo, lugar deserto ou solitário ou inabitado”. Por
seu turno, o adjetivo “solitarius” significa “único, isolado, retirado, só, sem
companhia, separado, solitário, que vive só, que gosta da solidão”. “Solum, i”
(nome neutro) significa “base, fundamento, alicerce, sustentáculo, solo,
terra firme”. Cognata desta palavra é “solidum, i” (nome neutro) e quer dizer: “terra firme, chão, soldo, salário, paga,
totalidade, soma total”. Daqui derivam: “solidamen, inis” (nome neutro), que significa “tudo o que faz endurecer” ou “tudo o que
consolida”; “solidatio, onis” (nome feminino), a significar
“fundação”, “ação de fazer sólido”, “consolidação”, (Pl.) “alicerces”; “soliditas, atis” (nome feminino), a significar “solidez, inteireza, firmeza, dureza,
totalidade”, “qualidade dum corpo sólido ou maciço” e “telhados construídos em
eirado, argamassados e lajeados de mármore”; os adjetivos “solidatus” (endurecido, fortalecido, solidado, firmado, corroborado,
sólido, tornado sólido, congelado), “solidipes, edis” (solípede,
que tem os pés sólidos, de unha maciça e não fendida em duas partes) e “solidus” (sólido, maciço, consistente, todo do seu género, sem ser
composto de outro, feito duma só peça, duro, forte, firme, inabalável, estável,
inteiro, todo, coeso, verdadeiro, genuíno, seguro, duradouro, constante…); os advérbios
“solide” e “solidum” (solidamente,
firmemente, inteiramente, totalmente, verdadeiramente, certamente); e os verbos
“solidescere” (tornar-se sólido, condensar-se,
endurecer-se, consolidar-se) e “solidare” (solidificar,
tornar sólido, soldar, cicatrizar, unir, grudar, conglutinar, fortalecer,
firmar, fazer maciço, fazer firme, fazer sólido).
Em termos da solidariedade, podemos dizer que os registos
disponíveis não garantem que o latim clássico registe palavras que tenham
evoluído historicamente para este vocábulo ou cognatos. No entanto, o “PARVVM VERBORVM NOVATORVM LEXICVM” da LATINITAS, Opus Fundatum in Civitate Vaticana, traduz para latim (língua
oficial no Vaticano)
o termo italiano “solidarietà” (solidariedade) por “consociāta
voluntas” (disposição, a feição ou vontade associada, combinada cúmplice). E os dicionários de Língua Portuguesa
registam: o adjetivo “solidário” (diz-se da
parte ou elemento de um todo que o integra em regime de interdependência; que
liga coisas ou pessoas; que partilha com outrem direitos, deveres, afetos,
vida; que se encontra com outros numa interdependência de interesses; que
aderiu a uma causa, a um movimento ou a um princípio; que partilha o sofrimento
de alguém; que presta auxílio a alguém); o advérbio “solidariamente” (de modo
solidário, com responsabilidade recíproca); os nomes “solidariedade” (qualidade
de solidário; responsabilidade recíproca entre elementos dum grupo social,
profissional, político, etc.; sentimento de partilha de do sofrimento alheio;
sentimento que leva a prestar auxílio a alguém; adesão ou apoio a uma causa, a
um movimento ou a um princípio), “solidarismo” (sistema moral baseado na
solidariedade) e “solidarização” (ato ou efeito de
solidarizar ou de solidarizar-se; solidariedade); e o verbo “solidarizar” (tornar solidário; tornar-se solidário; manifestar apoio). Porém, alguns fazem
entroncar o adjetivo “solidário” no latino “solidus” que se estendeu em
“solidarius” (no latim vulgar) e entrou na língua portuguesa através do
francês “solidaire”.
***
Posto isto, a Senhora da Soledade, na sua solidão sofredora,
quer e merece a solidariedade dos crentes, seus filhos, para o que se exige a
firmeza e solidez da fé, a robustez da esperança, a força congregadora e
unitiva da caridade. Ela, que se consorciou intimamente com a vontade de Deus,
graças à firmeza inabalável da sua fé, à luminosidade da Graça, à força do Alto
e à singeleza da sua humildade de serva, sem ser servil, seguiu os passos de
Seu Filho Jesus nos momentos em que mais foi preciso, quase sempre no silêncio,
mas com a eloquência do coração. E, por adesão cúmplice ao mandato do Senhor do
alto da cruz, inaugurou em regime de continuidade persistente o dinamismo da
solidariedade com os discípulos, com os sofredores, com os pobres – do lado de
quem Deus está preferencialmente – dos pastores, dos missionários, dos
catequistas, dos consagrados, dos membros do povo de Deus. Ela, que se habituou
à solidão terrífico-salvífica do Calvário, como se habituara à solidez quase
solitária de Nazaré – na gestação do Verbo encarnado, na separação por causa da
pregação pública – habituou-se a receber como filho o discípulo amado e, nele,
todos os outros discípulos de presente e de futuro e, afinal, todos os homens e
mulheres que são filhos e filhas de Deus, embarcados na fraternidade universal.
Com efeito:
“Naquele tempo, estavam junto à cruz de Jesus sua
Mãe, a irmã de sua Mãe, Maria, mulher de Cléofas, e Maria
Madalena. Ao ver sua Mãe e o discípulo predileto, Jesus disse a sua
Mãe: ‘Mulher, eis o teu filho’. Depois disse ao discípulo: ‘Eis
a tua Mãe’. E a partir daquela hora, o discípulo recebeu-a em sua
casa.” (Jo 19,25-27).
Esta
perícopa do Evangelho de João, além de enunciar o papel da Mãe, sugere o papel
do discípulo tornado filho: recebê-la. E, como refere o livro
dos Atos (At 1,14), Maria,
dispensando-se da soledade, estava com os discípulos em oração no Cenáculo à
espera do Pentecostes – “todos unidos pelo mesmo sentimento, entregavam-se
assiduamente à oração, com algumas mulheres, entre as quais Maria, mãe de
Jesus, e com os irmãos de Jesus” –, o que mostra que os discípulos a aceitaram por Mãe como
João e que outras mulheres também se solidarizaram com os apóstolos e com a Mãe
de Jesus, nesta fraternidade da esperança.
***
Mas a
solidariedade contém em si um dinamismo de movimento, de cumplicidade, de
adesão. E a este respeito, retomo parenteticamente o excursus supra para acrescentar o tema da solicitude. No latim,
encontra-se o adjetivo “sollicitus” (derivado
de “sollus”, a significar “inteiro” + “citus”, particípio passado do verbo
“ciere”, a significar “mover, pôr em movimento, atrair, chamar, excitar,
provocar”). Assim, “solícito”
há de significar “todo movido ou chamado, ou totalmente posto em movimento,
cuidadoso, diligente, desvelado, atencioso, prestável, agitado”. E o nome
“sollicitudo, inis” significa “carinho, solicitude, inquietação, cuidado,
diligência, desvelo”. O verbo “sollicitare” quer dizer “solicitar, pedir,
rogar, chamar à atenção, mover, agitar, provocar, incomodar”; e o advérbio “sollicite”
(solicitamente) significa “com grande atenção, com solicitude, com inquietação, com
insistência”. Alguns dicionários admitem estes termos sem a duplicação da consoante
“l”.
Ora, Maria
continua a estar atenta ou solícita ante as necessidades e dramas humanos, como
em Caná, “Não têm vinho” (Jo 2,3) e a recomendar que se faça a vontade de Deus em Cristo, “Fazei tudo o que Ele disser” (Jo 2,5). Desprendida da sua soledade, não satisfeita com a sua solidariedade,
mostra-se solícita e pressurosa. A História da Igreja regista inúmeros e
incontáveis testemunhos da sua solicitude e intercessão pelos homens junto de
Deus por causa dos dramas humanos e junto dos homens como testemunha profética
da vontade de Deus e das infidelidades dos homens, tantas vezes no contexto das
instaladas estruturas de pecado.
O ofício
de Leitura da Liturgia das Horas sintetiza com a lição dum sermão de São
Bernardo de Claraval (Dos Sermões de São Bernardo, abade (Sermo in dom.
infra oct. Assumptionis, 14-15: Opera omnia, ed. Cisterc. 5 [1968],
273-274) (Sec. XII) em torno
do tema “A Mãe de Cristo estava junto à cruz”, de
que se respigam alguns aspetos em sistema de condensação textual:
O martírio da Virgem é recordado na
profecia de Simeão e na história da paixão do Senhor. […]. Ó santa Mãe, uma
espada trespassou tua alma, porque não podia atingir a carne do Filho sem
atravessar a alma da Mãe. Depois que Jesus – que é de todos, mas especialmente
teu – expirou, a lança que Lhe abriu o lado, sem respeitar o morto a quem já
não podia causar dor, não feriu a sua alma, mas atravessou a tua. […]. A
violência da dor trespassou tua alma e, assim, Te proclamamos mais que mártir,
porque os teus sentimentos de compaixão superaram os sofrimentos corporais do
martírio. Não foi, porventura, para Ti mais que uma espada a palavra que
verdadeiramente trespassa a alma e penetra até à divisão da alma e do espírito:
Mulher, eis o teu Filho? Entregam-Te
João em vez de Jesus, o servo em vez do Senhor, o discípulo em vez do Mestre, o
filho de Zebedeu em vez do Filho de Deus, um mero homem em vez do verdadeiro
Deus.
Não vos admireis, irmãos, de que
Maria seja mártir na sua alma. Admire-se quem não se recorda de ter ouvido
Paulo mencionar entre as maiores culpas dos pagãos o facto de não terem afeto. Como
isso estava longe do coração de Maria! Longe esteja também dos seus
servos.
Mas talvez alguém possa dizer: ‘Porventura
não sabia Ela que Jesus havia de morrer?’. Sem dúvida. ‘Não esperava Ela que
Jesus havia de ressuscitar?’. Com toda a certeza. ‘E apesar disso sofreu tanto
ao vê l’O crucificado?’. Sim, com terrível veemência. Afinal, que espécie de
homem és tu, irmão, e que estranha sabedoria é a tua, se te surpreende mais a
compaixão de Maria do que a paixão do Filho de Maria? Ele pôde morrer corporalmente
e Ela não pôde morrer com Ele em seu coração? A morte de Jesus foi por amor,
aquele amor que nenhum homem pode superar; o martírio de Maria teve a sua
origem também no amor, ao qual, depois do de Cristo, nenhum outro amor se pode
comparar.”.
***
Maria, a Mãe, é solícita porque, na fé e no amor aceitou
confiante a soledade e a dor na soledade e aceitou a solidariedade dos filhos,
tal como se dispôs a ser solidária com Deus e com o seu Filho. Por fé sólida e
amor incansável, dispõe-se à solicitude com a Igreja nascente e com a Igreja
dos leigos, religiosos, diáconos, padres e bispos de hoje, como por toda esta época
mais que bimilenar. Que falem os povos, as almas simples – pela sua presença
física ou espiritual, pela figura humana de Senhora ou por simples ícone, pintura
ou escultura. Que o digam Lourdes, Fátima, Jugoslávia, Lapa ou Aparecida! É sempre
a mãe solícita com tantos rostos como os de que os filhos necessitam para se encaminharem
para Deus e uns para com os outros.
Estava em Caná e junto à cruz; agora está tão junto de
nós como de Jesus!
2017.09.16 – Louro de Carvalho
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