sábado, 16 de setembro de 2017

Da soledade de Maria à sua solidariedade e solicitude

Celebrou-se, a 15 de setembro, a memória litúrgica de Nossa Senhora das Dores, que o corre no dia imediatamente a seguir à festa da Exaltação da Santa Cruz. Com efeito, como diz São Paulo
Na 1.ª carta aos Coríntios, “nós pregamos Cristo crucificado, escândalo para os judeus e loucura para os gentios; mas, para os que são chamados, tanto judeus como gregos, Cristo é poder e sabedoria de Deus” (1Cor 1,23-24). Assim, o estandarte da cruz proclama ao mundo a morte de Jesus e a sua glória, porque o Autor de todo o universo contemplamos suspenso no madeiro (do hino de Laudes). E nós adoramos a cruz do Senhor e, por ela, louvamos e glorificamos a ressurreição de Cristo, o Redentor; da árvore da cruz o Messias passou ao sepulcro donde se levantou vivo e glorioso trazendo a alegria ao mundo inteiro.
Ora, presente junto à cruz, Maria, a Mãe de Jesus, viveu e sentiu os sofrimentos de Seu filho. É por isso que a liturgia lhe dedica especial atenção, depois de ter celebrado a Exaltação da Santa Cruz. As dores da Virgem, unidas aos sofrimentos de Cristo foram redentoras (em certo modo, Ela é corredentora), indicando-nos o caminho da nossa dor.
Como se vê, no Calvário, a Virgem, mais do que portadora da soledade, mostra-se solidária. De facto, cumpre-se a profecia de Simeão a Maria: o menino, Luz das nações e Glória de Israel, está para queda e ressurgimento de muitos em Israel e para ser sinal de contradição; uma espada trespassará a tua alma, havendo, assim de revelar-se os pensamentos de muitos corações (cf Lc 2,32.34-35). Com razão se reza na oração coleta da Missa e da Liturgia das Horas:
“Senhor, que, na vossa admirável providência, quisestes que, junto do vosso Filho, elevado sobre a cruz, estivesse sua Mãe, participando nos seus sofrimentos, concedei à vossa Igreja que, associada com Maria à paixão de Cristo, mereça ter parte na sua ressurreição”.
Esta solidariedade da Mãe é estabelecida com Cristo e implica o arquétipo da solidariedade da Igreja com o Cristo do Calvário e com o Cristo presente nos irmãos e irmãs que sofrem, qualquer que seja a modalidade de sofrimento.
Ao escrever estas considerações, recordo que, no passado dia 2 de setembro, participei na celebração eucarística na capela de Nossa Senhora da Soledade no sítio do Calvário da vila de Castro Daire (um lugar belo, bem arranjado e sobranceiro à vila) com um conjunto de amigas e amigos que frequentaram outrora o Colégio. A capela foi objeto de cuidada reparação e restauro, dentro do que foi possível. E via-se a imponente imagem da Senhora das Dores ou da Soledade, marcada pela cor roxa das vestes e, como insígnia, pelas espadas de dor. A seus pés, sob a mesa do altar da celebrações, jaz o Cristo morto como que em túmulo de repouso; e, numa das paredes laterais, a tradicionalmente dita do Lado do Evangelho, figura o Cristo dos Passos carregando a cruz. Neste cenário, nas palavras que dirigiu aos participantes, o reverendo pároco comentava o Evangelho de Mateus (Mt 16,21-27), exortando a que não assumíssemos o papel de diabo que Pedro estava a desempenhar ao querer retirar Jesus do projeto de cruz, segundo dos interesses, não de Deus, mas dos homens (ao invés do afoito ato de fé no Messias de Deus, em Cesareia de Filipe) e aconselhando a que todos e cada um, segundo a sua condição de vida, aprendesse a ser discípulo de Jesus, renunciando a si mesmo, tomando a cruz da vida e seguindo o Mestre. E fui pensando como, ante a Senhora da Dores, se enunciam devota e orantemente as suas sete dores: escuta da profecia de Simeão; fuga para o Egito por quererem matar o Menino; perda do Menino no Templo; encontro de Jesus rumo ao Calvário; postura de Mãe junto à cruz; receção do Cristo morto no seu regaço de Mãe; e sepultura do Filho morto. E, como tantos e tantas, em Senhora da Soledade, pensei na perda do esposo José para o seio do Pai; na separação do Filho para a vida pública de pregação do Reino; no sobressalto quando disseram à Mãe que o Filho pregador desvairava; na perda do Filho no horizonte deste mundo, pela morte e sepultura.
Mas também me interroguei: Só dor, solidão, soledade? E a solicitude de Caná? E entrega testamentária, por Jesus, da Mãe ao discípulo amado e do discípulo à Mãe à Mãe como filho?
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A pessoa solidária tem que se configurar como sólida e, somente fazendo a experiência da “solitariedade”, terá capacidade para se aguentar sólida e ser solidária. Talvez não seja mau proceder a um “excursus” sobre alguns termos latinos para melhor entendermos esta doutrina.
Comecemos por “solus” (adjetivo), que significa: só, único, sem companhia, isolado, solitário, isolado, abandonado, particular, principal. E, parónimo daquele, temos “sollus” (adjetivo, palavra osca equivalente a omnis ou a totus), que significa “inteiro”. Maria não se fez principal nem esteve totalmente sozinha, mas sentiu a falta do Filho e dos amigos dele, sobretudo depois que o viu morto e após a sepultura. Mas foi toda, inteiramente, dedicada ao Filho e às suas causas.
Depois, temos “solitas, atis” (nome), que significa “unidade, solidão, isolamento, retiro”; e “solitudo, inis” (nome), a significar “solidão, soledade, retiro, abandono, desamparo, falta, privação, ermo, lugar deserto ou solitário ou inabitado”. Por seu turno, o adjetivo “solitarius” significa “único, isolado, retirado, só, sem companhia, separado, solitário, que vive só, que gosta da solidão”. “Solum, i” (nome neutro) significa “base, fundamento, alicerce, sustentáculo, solo, terra firme”. Cognata desta palavra é “solidum, i” (nome neutro) e quer dizer: “terra firme, chão, soldo, salário, paga, totalidade, soma total”. Daqui derivam: “solidamen, inis” (nome neutro), que significa “tudo o que faz endurecer” ou “tudo o que consolida”; “solidatio, onis” (nome feminino), a significar “fundação”, “ação de fazer sólido”, “consolidação”, (Pl.) “alicerces”; “soliditas, atis” (nome feminino), a significar “solidez, inteireza, firmeza, dureza, totalidade”, “qualidade dum corpo sólido ou maciço” e “telhados construídos em eirado, argamassados e lajeados de mármore”; os adjetivos “solidatus” (endurecido, fortalecido, solidado, firmado, corroborado, sólido, tornado sólido, congelado), “solidipes, edis” (solípede, que tem os pés sólidos, de unha maciça e não fendida em duas partes) e “solidus” (sólido, maciço, consistente, todo do seu género, sem ser composto de outro, feito duma só peça, duro, forte, firme, inabalável, estável, inteiro, todo, coeso, verdadeiro, genuíno, seguro, duradouro, constante…); os advérbios “solide” e “solidum” (solidamente, firmemente, inteiramente, totalmente, verdadeiramente, certamente); e os verbos “solidescere” (tornar-se sólido, condensar-se, endurecer-se, consolidar-se) e “solidare” (solidificar, tornar sólido, soldar, cicatrizar, unir, grudar, conglutinar, fortalecer, firmar, fazer maciço, fazer firme, fazer sólido).
Em termos da solidariedade, podemos dizer que os registos disponíveis não garantem que o latim clássico registe palavras que tenham evoluído historicamente para este vocábulo ou cognatos. No entanto, o “PARVVM VERBORVM NOVATORVM LEXICVM” da LATINITAS, Opus Fundatum in Civitate Vaticana, traduz para latim (língua oficial no Vaticano) o termo italiano “solidarietà” (solidariedade) por consociāta voluntas” (disposição, a feição ou vontade associada, combinada cúmplice). E os dicionários de Língua Portuguesa registam: o adjetivo “solidário” (diz-se da parte ou elemento de um todo que o integra em regime de interdependência; que liga coisas ou pessoas; que partilha com outrem direitos, deveres, afetos, vida; que se encontra com outros numa interdependência de interesses; que aderiu a uma causa, a um movimento ou a um princípio; que partilha o sofrimento de alguém; que presta auxílio a alguém); o advérbio “solidariamente” (de modo solidário, com responsabilidade recíproca); os nomes “solidariedade” (qualidade de solidário; responsabilidade recíproca entre elementos dum grupo social, profissional, político, etc.; sentimento de partilha de do sofrimento alheio; sentimento que leva a prestar auxílio a alguém; adesão ou apoio a uma causa, a um movimento ou a um princípio), “solidarismo” (sistema moral baseado na solidariedade) e “solidarização” (ato ou efeito de solidarizar ou de solidarizar-se; solidariedade); e o verbo “solidarizar” (tornar solidário; tornar-se solidário; manifestar apoio). Porém, alguns fazem entroncar o adjetivo “solidário” no latino “solidus” que se estendeu em “solidarius” (no latim vulgar) e entrou na língua portuguesa através do francês “solidaire”.
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Posto isto, a Senhora da Soledade, na sua solidão sofredora, quer e merece a solidariedade dos crentes, seus filhos, para o que se exige a firmeza e solidez da fé, a robustez da esperança, a força congregadora e unitiva da caridade. Ela, que se consorciou intimamente com a vontade de Deus, graças à firmeza inabalável da sua fé, à luminosidade da Graça, à força do Alto e à singeleza da sua humildade de serva, sem ser servil, seguiu os passos de Seu Filho Jesus nos momentos em que mais foi preciso, quase sempre no silêncio, mas com a eloquência do coração. E, por adesão cúmplice ao mandato do Senhor do alto da cruz, inaugurou em regime de continuidade persistente o dinamismo da solidariedade com os discípulos, com os sofredores, com os pobres – do lado de quem Deus está preferencialmente – dos pastores, dos missionários, dos catequistas, dos consagrados, dos membros do povo de Deus. Ela, que se habituou à solidão terrífico-salvífica do Calvário, como se habituara à solidez quase solitária de Nazaré – na gestação do Verbo encarnado, na separação por causa da pregação pública – habituou-se a receber como filho o discípulo amado e, nele, todos os outros discípulos de presente e de futuro e, afinal, todos os homens e mulheres que são filhos e filhas de Deus, embarcados na fraternidade universal. Com efeito:
“Naquele tempo, estavam junto à cruz de Jesus sua Mãe, a irmã de sua Mãe, Maria, mulher de Cléofas, e Maria Madalena. Ao ver sua Mãe e o discípulo predileto, Jesus disse a sua Mãe: ‘Mulher, eis o teu filho’. Depois disse ao discípulo: ‘Eis a tua Mãe’. E a partir daquela hora, o discípulo recebeu-a em sua casa.” (Jo 19,25-27).
Esta perícopa do Evangelho de João, além de enunciar o papel da Mãe, sugere o papel do discípulo tornado filho: recebê-la. E, como refere o livro dos Atos (At 1,14), Maria, dispensando-se da soledade, estava com os discípulos em oração no Cenáculo à espera do Pentecostes – “todos unidos pelo mesmo sentimento, entregavam-se assiduamente à oração, com algumas mulheres, entre as quais Maria, mãe de Jesus, e com os irmãos de Jesus, o que mostra que os discípulos a aceitaram por Mãe como João e que outras mulheres também se solidarizaram com os apóstolos e com a Mãe de Jesus, nesta fraternidade da esperança. 
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Mas a solidariedade contém em si um dinamismo de movimento, de cumplicidade, de adesão. E a este respeito, retomo parenteticamente o excursus supra para acrescentar o tema da solicitude. No latim, encontra-se o adjetivo “sollicitus” (derivado de “sollus”, a significar “inteiro” + “citus”, particípio passado do verbo “ciere”, a significar “mover, pôr em movimento, atrair, chamar, excitar, provocar”). Assim, “solícito” há de significar “todo movido ou chamado, ou totalmente posto em movimento, cuidadoso, diligente, desvelado, atencioso, prestável, agitado”. E o nome “sollicitudo, inis” significa “carinho, solicitude, inquietação, cuidado, diligência, desvelo”. O verbo “sollicitare” quer dizer “solicitar, pedir, rogar, chamar à atenção, mover, agitar, provocar, incomodar”; e o advérbio “sollicite” (solicitamente) significa “com grande atenção, com solicitude, com inquietação, com insistência”. Alguns dicionários admitem estes termos sem a duplicação da consoante “l”.
Ora, Maria continua a estar atenta ou solícita ante as necessidades e dramas humanos, como em Caná, “Não têm vinho” (Jo 2,3) e a recomendar que se faça a vontade de Deus em Cristo, “Fazei tudo o que Ele disser” (Jo 2,5). Desprendida da sua soledade, não satisfeita com a sua solidariedade, mostra-se solícita e pressurosa. A História da Igreja regista inúmeros e incontáveis testemunhos da sua solicitude e intercessão pelos homens junto de Deus por causa dos dramas humanos e junto dos homens como testemunha profética da vontade de Deus e das infidelidades dos homens, tantas vezes no contexto das instaladas estruturas de pecado.
O ofício de Leitura da Liturgia das Horas sintetiza com a lição dum sermão de São Bernardo de Claraval (Dos Sermões de São Bernardo, abade (Sermo in dom. infra oct. Assumptionis, 14-15: Opera omnia, ed. Cisterc. 5 [1968], 273-274) (Sec. XII) em torno do tema  “A Mãe de Cristo estava junto à cruz”, de que se respigam alguns aspetos em sistema de condensação textual: 
O martírio da Virgem é recordado na profecia de Simeão e na história da paixão do Senhor. […]. Ó santa Mãe, uma espada trespassou tua alma, porque não podia atingir a carne do Filho sem atravessar a alma da Mãe. Depois que Jesus – que é de todos, mas especialmente teu – expirou, a lança que Lhe abriu o lado, sem respeitar o morto a quem já não podia causar dor, não feriu a sua alma, mas atravessou a tua. […]. A violência da dor trespassou tua alma e, assim, Te proclamamos mais que mártir, porque os teus sentimentos de compaixão superaram os sofrimentos corporais do martírio. Não foi, porventura, para Ti mais que uma espada a palavra que verdadeiramente trespassa a alma e penetra até à divisão da alma e do espírito: Mulher, eis o teu Filho? Entregam-Te João em vez de Jesus, o servo em vez do Senhor, o discípulo em vez do Mestre, o filho de Zebedeu em vez do Filho de Deus, um mero homem em vez do verdadeiro Deus.
Não vos admireis, irmãos, de que Maria seja mártir na sua alma. Admire-se quem não se recorda de ter ouvido Paulo mencionar entre as maiores culpas dos pagãos o facto de não terem afeto. Como isso estava longe do coração de Maria! Longe esteja também dos seus servos. 
Mas talvez alguém possa dizer: ‘Porventura não sabia Ela que Jesus havia de morrer?’. Sem dúvida. ‘Não esperava Ela que Jesus havia de ressuscitar?’. Com toda a certeza. ‘E apesar disso sofreu tanto ao vê l’O crucificado?’. Sim, com terrível veemência. Afinal, que espécie de homem és tu, irmão, e que estranha sabedoria é a tua, se te surpreende mais a compaixão de Maria do que a paixão do Filho de Maria? Ele pôde morrer corporalmente e Ela não pôde morrer com Ele em seu coração? A morte de Jesus foi por amor, aquele amor que nenhum homem pode superar; o martírio de Maria teve a sua origem também no amor, ao qual, depois do de Cristo, nenhum outro amor se pode comparar.”.
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Maria, a Mãe, é solícita porque, na fé e no amor aceitou confiante a soledade e a dor na soledade e aceitou a solidariedade dos filhos, tal como se dispôs a ser solidária com Deus e com o seu Filho. Por fé sólida e amor incansável, dispõe-se à solicitude com a Igreja nascente e com a Igreja dos leigos, religiosos, diáconos, padres e bispos de hoje, como por toda esta época mais que bimilenar. Que falem os povos, as almas simples – pela sua presença física ou espiritual, pela figura humana de Senhora ou por simples ícone, pintura ou escultura. Que o digam Lourdes, Fátima, Jugoslávia, Lapa ou Aparecida! É sempre a mãe solícita com tantos rostos como os de que os filhos necessitam para se encaminharem para Deus e uns para com os outros.
Estava em Caná e junto à cruz; agora está tão junto de nós como de Jesus!

2017.09.16 – Louro de Carvalho

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