terça-feira, 26 de setembro de 2017

O bispo que “perseguiu sem descanso o sonho de um mundo de justiça”

Cerca de 3 mil pessoas marcaram presença nas cerimónias fúnebres do 1.º Bispo emérito de Setúbal, que, segundo Dom José Ornelas, atualmente Bispo daquela diocese sadina, “teve um percurso de vida que marcou os últimos decénios da história recente do nosso povo e da Igreja” e que fica lembrado pela sua postura corajosa e de defesa dos mais desprotegidos. Chegou à ousadia de apelidar de “malditos aqueles que exploram ou se demitem de denunciar e reverter as situações de injustiça e exploração”.
As exéquias solenes, a que presidiu Dom José Ornelas, foram celebradas no Mosteiro de Leça do Balio, em Matosinhos, estando presente a vice-presidente da Assembleia da República, Teresa Caeiro, mas não qualquer membro do Governo ou qualquer líder partidário. Participaram na celebração os vários bispos portugueses e inúmeros sacerdotes e fiéis tanto da diocese de Setúbal como da do Porto, onde nasceu, formou-se e viveu os últimos anos da sua vida. Porque muitas pessoas presentes no Largo do Mosteiro não puderam entrar, presenciaram a celebração através de três ecrãs gigantes colocados no exterior.
Depois, o corpo de Dom Manuel Martins foi sepultado no cemitério, junto ao mosteiro do Balio, da paróquia donde era natural, e o local que escolheu para sua última morada – tendo sido transportado sob os aplausos de quantos ali permaneciam para lhe prestar homenagem. Ao longe, nos grandes monitores, via-se, a acenar ao seu povo, a imagem fixa do Bispo que foi.
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O Bispo de Setúbal lembrou o seu antecessor como uma voz corajosa e inconformada. Com efeito, Dom Manuel, segundo o presidente da concelebração, “ergueu a voz em denúncia das atitudes, políticas e economias que se esquecem dos mais fracos e indefesos”, e “perseguiu sem descanso o sonho de um mundo de justiça, fraternidade e de paz” por haver entendido que foi para isso que foi chamado para bispo. E esta missão levou-o a indignar-se sempre contra os que “exploram ou se demitem de denunciar e reverter as situações de injustiça e de exploração”.
Frisou, na sua homilia, a circunstância de Dom Manuel, “chamado e conduzido por Deus”, dele ter aprendido “a cuidar a dedicar-se aos outros como cuidador sensível e misericordioso para com o seu povo. Assim se encheu de gosto e preocupação de estar perto daqueles a quem foi enviado, de defendê-los de quantos os manipulam e exploram, de encher-se de “compaixão” pelas suas dores e feridas, perseguindo, sem descanso, o sonho de um mundo de justiça, de fraternidade e de paz”.
Agradecendo a herança que Dom Manuel Martins deixou na diocese, o prelado de Setúbal lembrou o seu estilo próximo e o seu empenho em congregar vontades e esforços. E disse aos fiéis presentes na missa:
Tornou-se solidariamente criativo, para apoiar e cuidar para os que eram deixados à margem das grandes manobras económicas, para congregar pessoas de boa vontade e promover obras que servissem os que mais precisavam”.
Considerou Dom Manuel Martins um
Homem de pontes e diálogo, buscando consensos e colaborações para que possamos, com todas as pessoas de boa vontade, criar todos um mundo mais humano e mais justo, onde sejamos mais cuidadores e menos predadores”.
Por tudo isto, deixou “um estilo matricial na diocese de Setúbal”, onde todos o recordam como um “pastor próximo e cuidadoso”, preocupado com os seus sacerdotes e diáconos. E o Bispo de Setúbal deixou ainda uma palavra de gratidão aos familiares do falecido e também à diocese do Porto, lembrando que foi ali que aprendeu com “outras vozes proféticas”, como a de Dom António Ferreira Gomes, a erguer-se para “denunciar injustiças e apontar caminhos”.
Dom Januário Torgal Ferreira, no final da celebração, disse à Rádio Renascença que “falamos de um homem que amou o mundo e que sofreu os riscos do mundo”, lamentando que a “Igreja em Portugal ainda não o tenha conseguido seguir como estilo” e “ocupar-se dos problemas do mundo sem recear de ser confundida com os poderes do mundo”.
Já para Dom Jorge Ortiga, arcebispo-primaz de Braga, Dom Manuel foi “lutador” e “realizador da doutrina social da Igreja. Um exemplo que também nós devemos seguir, de dar voz a quem não tem voz”. São palavras partilhadas pelo bispo auxiliar do Porto, Dom Pio Alves, que lembrou que Dom Manuel Martins passou os últimos anos na diocese, onde “soube viver de modo discreto a sua condição de sacerdote e de bispo”.
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Segundo Valdemar Cruz, do Expresso, foi ao som do “Requiem”, de Fauré, que se iniciaram hoje, dia 26, no Mosteiro de Leça do Balio, em Matosinhos, as cerimónias fúnebres de Dom Manuel Martins (1927-2017), bispo emérito de Setúbal, falecido no passado domingo, dia 24.
Tornou-se pequeno o mosteiro para acolher tantos devotos e tantos fiéis amigos, a ponto de ter sido necessário colocar grandes monitores e dezenas e dezenas de cadeiras para todos assistirem às exéquias, sempre pontuadas pela solenidade proporcionada pela obra de Fauré, composta entre 1887 e 1890, interpretada pelas vozes do coro portuense “Absolute Vocem Ensemble”.
Com a diocese de Setúbal muito representada, tanto ao nível do clero como ao nível de diocesanos, mas também com a presença de inúmeros bispos e outros membros da Igreja católica, as cerimónias acabaram muito marcadas pela homilia de Dom José Ornelas.
No interior de um mosteiro que é ele próprio testemunha de profundas e marcantes histórias vividas por todo um povo, Dom José deixou um eloquente testemunho destinado à consagração da memória daquele que foi o instalador da diocese e o organizador dos seus serviços.
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No dia em que faleceu Dom Manuel Martins, o Expresso republicou uma entrevista realizada em 2014, pelos 40 anos do 25 de abril, vivendo o país os efeitos da presença da troika. E o Bispo não escondia a “tristeza pela situação” em que Portugal se encontrava, dizendo:
Tenho uma tristeza profunda pela situação de desesperança e desânimo do povo do meu país. E tenho também uma tristeza muito grande ao reparar que não temos um Estado democrático, mas um Estado corporativo, com grupos de interesses que se juntam e defendem, que se penduram no dinheiro, desprezando as pessoas.”.
Chegara a Setúbal, como bispo da nova diocese, no verão quente de 1975. Teve dúvidas e receios, pois nunca tinha ido à cidade – um bastião comunista e zona de forte tradição operária – mas percebeu que o seu “altar não podia estar na Igreja”. Baixou ao terreno e deu voz aos que tinham fome e, sobretudo, sede de justiça. Ele mesmo contou:
“Quando fui chamado à nunciatura e o núncio me disse ‘o Santo Padre quer constituir a Diocese de Setúbal e pensou em si’, pedi que me deixassem pensar durante 8 dias. Tinha tanto medo, constava tanta coisa sobre esta terra... Estávamos no Verão Quente e eu nunca tinha vindo a Setúbal. E sabia que o povo não queria que viesse para cá um colonizador do Norte e que muito boa gente não ficou contente com a minha nomeação! Este povo agitado e contestatário do mundo do trabalho não queria que viesse para aí um padre aconselhar a paciência, organizar peregrinações ao Cristo-Rei ou a Fátima. Queria um bispo que viesse para a rua lutar com eles. Aceitei. E quando foi a minha ordenação houve uma manifestação à porta da Sé. ‘Não precisamos de bispo’, diziam, e ‘muito menos um bispo reacionário do Norte’.”.
Nunca soube quem organizara a predita manifestação, mas soube da confusão e da incapacidade da polícia e da necessidade da presença de militares, porque lho contaram, estranhando, que no fim da ordenação episcopal, a 26 de julho, o tirassem, pela sacristia para um salão, porque o normal seria vir saudar a população. Depois, tudo mudou:
“Nunca tive a mais pequena falta de respeito por parte de ninguém. E, quando me fui embora, a sociedade civil, sindicatos e patronato, prestou-me uma homenagem que está em livro. Houve sempre a melhor relação com toda a gente. Deus deu-me a graça de entender que a minha missão episcopal não estava só no altar. Ou melhor, que o meu altar estava no mundo. No mundo dos homens, onde se grita, onde se sofre, onde se berra.”.
A Igreja de Setúbal “sofria do mal que sofria toda a Igreja”. Era conservadora num Portugal com “problemas muito graves que tinham a ver com a dignidade da pessoa humana”, sendo os direitos sociais praticamente não existentes. E a Igreja era isto, distraída, “com a agravante de que as autoridades religiosas que nos governavam tinham sucedido imediatamente a Salazar”.
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Falando as relações Igreja/Estado, refere a luta da Igreja entre a República e a monarquia, frisando que a República foi uma coisa boa e providencial, porque “separou a Igreja do Estado”. Mas, estabelecida a República, os ódios que existiam contra a Igreja vieram à tona. E o Estado anulou a personalidade jurídica da Igreja, apoderou-se dos seus bens, com paços e conventos roubados e entregues a boys – o que não é novo. E explicita:
“Os boys são tão velhos como os bois. Mas tudo isto para dizer que não é de admirar que Salazar, um homem formado num seminário e que andava a dar conferências nos meios católicos, chegado ao poder, tenha querido que uma das primeiras coisas a pôr em ordem fossem as relações do Estado com a Igreja. E isso acaba com a concordata de 1940. A maioria dos bispos que nós tínhamos em 1974 eram bispos nomeados no tempo do Salazar. Não temos nada que nos admirar de termos uma Igreja conservadora, porque foi uma Igreja que respirou de alívio quando Salazar pôs as coisas na ordem.”.
Mas assegura que, já com Salazar, “o descontentamento foi nascendo”, porque, “para manter o poder, Salazar desvalorizou os direitos humanos”. E “a Igreja foi uma estrutura em que ele sempre se apoiou”. Até o Papa João Paulo II sabia disso, pois, como frisou, “quando tínhamos as visitas habituais dos bispos ao Papa, de 5 em 5 anos, João Paulo II falava sempre no Salazar”.
E “falava do seu tempo de rapaz, quando vivia num regime comunista”. Explicou Dom Manuel:
“No seu tempo de rapaz lembrava-se de ouvir falar num chefe de um Governo que existia cá para um país chamado Portugal que tinha posto tudo na ordem. Era conhecido como um economista de primeira classe, como o maior político do tempo de rapaz – em pleno comunismo – do futuro Papa João Paulo II.”.
Depois acrescentou que falava em Salazar como falava no Eusébio e na Amália Rodrigues. E sobre a interpelação se alguma vez pôs João Paulo II ao coerente do outro lado do governante, respondeu que, nas primeiras vezes, se calava. Mas, numa ocasião, ocorreu o seguinte episódio:
“A conversa alargou-se e o Papa pegou-me no braço e chamou-me para junto dele. E lá começaram esses elogios a Salazar e alguns bispos, entusiasmados, acrescentaram razões novas. E eu disse ‘Santo Padre, é preciso não esquecer que foi este homem que exilou um bispo português por ele denunciar as injustiças, o que é um das dimensões da evangelização’. Outros começaram a dizer que não era assim. Estabeleceu-se um sururu. E o Papa, ao perceber que eu estava a falar com raiva, pôs-me a mão no braço e disse ‘pronto, vamos falar de outra coisa’.”.
Quanto à relação com os seus pares bispos, assegura ter havido “sempre uma relação fraterna”, até graças ao seu feitio: nunca recebeu “nenhuma repreensão ou chamada de atenção por parte de nenhum bispo”, mas também nunca nenhum lhe deu os parabéns.
No atinente à sua ação no terreno, diz que ia às fábricas e conta:
“Lembro-me de uma, que ia fechar, aqui na estrada do Alentejo e eu fui. Estava lá o credor, o tribunal, a Guarda Republicana, os cães... E, quando, às 16 horas, tocou pela última vez a campainha para os trabalhadores saírem, eu pedi para falar com eles. Lá fiz o meu discurso, e o credor, o homem a quem a fábrica devia dinheiro, ouviu. Os trabalhadores tinham feito um juramento de que não iam deixar as máquinas. Então a polícia entrou para os obrigar e alguns desmaiaram. Foi dramático. A miséria era imensa. As metalomecânicas tinham fechado, as pessoas passavam fome. Só de uma vez houve oito suicídios em Setúbal. No fim daquilo tudo, o homem do dinheiro disse-me ‘O senhor bispo fez o discurso que lhe competia. Mas o meu discurso tem de ser outro porque eu aqui represento o capital e ao capital compete fazer capital, sem se comover com estas coisas’. Fiquei revoltado.”.
Se é esta a filosofia do capitalismo, há que perguntar “onde está a dignidade das pessoas”.
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Sobre o Portugal pós-abrilino, diz que “o 25 de Abril foi um grande sonho, na medida em que nos ia permitir viver, tanto quanto possível, os direitos humanos” e confessa:
Há 55 artigos na Constituição, do 24.º ao 79.º, que são Evangelho puro, da igualdade, da liberdade, justiça, educação, trabalho, remuneração... Mas ao fim e ao cabo as pessoas continuam menosprezadas, menorizadas, sem capacidade de escolha. Na vida política portuguesa temos neste momento uma manipulação permanente. Esse sonho do 25 de Abril falhou. Não passou do papel.”.
Do retrato do Portugal de hoje diz:
A minha sensação permanente é pouco cristã. É uma sensação de tristeza. Tenho muita tristeza pela situação em que Portugal se encontra, em primeiro lugar por não ter encontrado gente capaz de abrir os caminhos necessários para que a ninguém falte o que é minimamente indispensável para ser feliz, o que nós chamamos Estado social: o pão, a saúde… Tenho uma tristeza profunda pela situação de desesperança e desânimo do povo do meu país.”.
E aponta outra situação grave:
Tenho também uma tristeza muito grande ao reparar que não temos um Estado democrático, mas um Estado corporativo, com grupos de interesses que se juntam e defendem, que se penduram no dinheiro, desprezando as pessoas. Também fico triste por ver que os nossos governantes, na sua maioria, não têm pedagogia política, nem têm conhecimentos. Fazem as coisas sem pensar, já não digo no objetivo ou na essência, mas até na oportunidade das medidas.”.
Da raridade de manifestações, considerando o agravamento da pobreza nos últimos anos, diz:
A manifestação é um direito, a pessoa está descontente e manifesta o seu descontentamento. Mas há uma coisa de que eu tenho muita pena é de que boa parte destas manifestações, com clareza ou de forma escondida, tenham partidos por trás. Tenho muita pena e também me causa muito desânimo ver esta multiplicidade de greves que se organizam e que são fruto de organizações corporativas que mais se preocupam com os seus interesses do que com os direitos dos outros.”.
No entanto, reconhece que o povo está muito passivo, o que é um perigo. E adverte:
O povo está muito alérgico, desanimado, descrente, muito conformado. Ao fim e ao cabo, quem fez o 25 de Abril? O povo? O 25 de Abril encontrou um eco imediato na alma do povo, sinal de que o povo sentia necessidade duma revolução, embora não a conseguisse dizer ou fazer. Agora pode estar a acontecer o mesmo. O povo anda muito adormecido porque nunca foi devidamente instruído. O país está pendurado no grande poder económico, no capitalismo selvagem, sem o mínimo princípio de moral, que só explora, que só suga. Nunca tivemos um Governo que mandasse. Os poderes económicos, com mais ou menos evidência, dominaram sempre. E cada vez pior.”.
Acha que “é preciso chamar a atenção para os valores do 25 de Abril e restaurá-los, mas que não é preciso fazer outro. Nem se trata de a democracia estar em risco, mas:
A questão é que nós não temos democracia. A democracia é um Estado organizado, com hierarquias, em que há uma ordem. Nós vivemos num Estado desorganizado, em que não há respeito pela dignidade das pessoas. Antes de mais tivemos conquistas ideológicas. Chegámos à conclusão de que tínhamos vários direitos, mas muitos desses direitos não nos são hoje reconhecidos. Conquistámos muita coisa, mas essas conquistas estão comprometidas. É preciso que a sociedade acorde para que os valores do 25 de Abril sejam uma realidade.”.
Reconhece que faltam vozes na Igreja para fazer o papel de despertar consciências. Com efeito, a Igreja, quando interpelada, desculpa-se sobre as suas obrigações na sociedade. Tem cumprido o seu dever, mas entende-o apenas como o ‘dar de comer a quem tem fome’, faltando-lhe o mais importante: “apontar as causas da fome e denunciá-las sem medo”. Mas se “a Igreja está comprometida com muita coisa” (“com o Governo que dá dinheiro para o seminário, com o presidente da Câmara que dá dinheiro para uma obra...”), se está comprometida com o poder, esquece-se “um bocadinho da sua dimensão profética, que é a de denunciar com coragem e sem medo as causas e os causadores da situação que vivemos”. Ora, o “Papa Francisco disse que prefere uma Igreja mergulhada no mundo” a “uma Igreja bonequinha, muito bem tratadinha dentro de uma redoma”.
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Nunca será excessivo ler este Bispo do futuro. Não basta elogiá-lo. É urgente enveredar por esta escola crítica e profética!

2017.09.26 – Louro de Carvalho 

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