terça-feira, 26 de setembro de 2017

Teólogos conservadores acusam Francisco de heresia e fazem correção filial

Soube-se, a 24 de setembro, que um grupo de teólogos, sacerdotes e académicos católicos (62 ao todo) acusou o Papa Francisco de heresia e lhe enviou uma carta em que apresenta uma suposta “correção filial”, escudado no episódio narrado por Paulo na carta aos Gálatas (Gl 2,11ss) em que contesta alguns comportamentos de Pedro – atitude que não acontecia há 700 anos, mais precisamente desde 1333, ano em que o Papa João XXII “divulgou opiniões heréticas e foi corrigido pelos seus súbditos”.
Num texto de 26 páginas, mas em que só quase 18 é que expõem o conteúdo e circunstâncias da polémica (as restantes são notas explicativas e referências bibliográficas e sitográficas), enviada a Francisco no passado dia 11 do mês de agosto e obtida, no dia 23 de setembro, pela agência Associated Press, os preditos signatários (40 assinaturas de origem e mais 22 signatários que se lhe juntaram) apresentaram uma pretensa “correção filial” (outros chamam-lhe “correção fraterna”), que mais não é do que um apontar do dedo à alegada promoção da propagação de heresias por ações, palavras e omissões do Pontífice.
É certo que o móbil da carta é o capítulo VIII da exortação apostólica Amoris Laetitia, subsequente à discussão sinodal em duas sessões da assembleia geral do Sínodo dos Bispos (a extraordinária em outubro de 2014 e a ordinária em outubro de 2015) sobre a problemática que envolve as famílias e a vocação eclesial da família cristã no mundo atual. E o nó da questão dos 62 signatários é a abertura papal aos católicos divorciados que voltaram a casar.
Segundo a Rádio Renascença (RR), a eufemística “correção filial” foi também divulgada em simultâneo através de sites e blogs conservadores e de linha tradicionalista.
Na missiva, o líder da Igreja Católica é acusado de promover, permitir ou aceitar a propagação 7 posições heréticas sobre o casamento, a vida moral e os sacramentos na Amoris Laetitia, publicada em 2016, e subsequentes “atos, palavras e omissões”. Porém, o leitor do texto verá facilmente que a contestação ultrapassa, em larga medida, a matéria da exortação apostólica, constituindo o pretexto para uma tomada de posição global contra a postura, discurso e ação do Papa Bergoglio – até porque enquadram o perfil do atual Bispo de Roma na perspetiva do modernismo e da simpatia pelo reformador Lutero. No fundo, os signatários, entre os quais, desta vez, não consta nenhum cardeal e de bispos apenas aflora um ligado à Fraternidade São Pio X, tentam, de forma subtil, obstar ao “aggiornamento” conciliar e à leitura atualizada dos sinais dos tempos à luz do Evangelho, bem como marcar a sua oposição discreta ao movimento ecuménico – o que sucederá se considerarmos a Igreja católica como a detentora exclusiva da verdade evangélica, que o Espírito Santo não deixa aprisionar.
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Segundo a missiva dos contestatários,
“O Pontífice apoiou direta ou indiretamente a crença de que a obediência à Lei de Deus pode ser impossível ou indesejável e que a Igreja deve, às vezes, aceitar o adultério como comportamento compatível com a vida dum católico praticante”.
O facto não é inédito. Ainda há dias, o cardeal Müller, ex-Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, sustentava que o discurso do Papa não se apoia numa linha teológica consistente. E, em setembro de 2016, quatro cardeais conservadores escreveram a Francisco a pedir esclarecimentos sobre a “Amoris Laetitia”, com 5 perguntas específicas (dubia) que exigiam apenas um “sim” ou um “não” como resposta para esclarecer o que tinham como “dúvidas ou imprecisões no que diz respeito à integridade da fé católica”.
Como o Papa não respondeu até ao momento a nenhuma das missivas, os signatários, segundo a Associated Press, resolveram proceder à divulgação do seu o documento de “correção filial”.
A posição do líder da Igreja Católica, que encoraja os sacerdotes a ajudar os casais católicos divorciados e que voltaram a casar a enveredar por uma via de discernimento para decidirem em consciência se podem ou não, se devem ou não, passar pela absolvição sacramental e receber o sacramento da comunhão, foi por si reafirmada em dezembro de 2016, nomeadamente em resposta ao episcopado argentino, que promoveu um debate sobre a aplicação pastoral da Amoris Laetitia – no que tem o apoio da maioria dos bispos do mundo. Outra novidade foi a autorização a todos os sacerdotes a manterem definitivamente a capacidade de absolverem as mulheres que fizeram aborto, disposição que devia vigorar apenas durante o ano jubilar da misericórdia, que terminou em novembro do ano passado. Francisco também admitiu a possibilidade de ordenação de homens casados, que poderiam trabalhar em regiões remotas onde faltam padres, situação que afeta, por exemplo, o Brasil, grande país católico e com aguda escassez de sacerdotes; e vem insistindo na necessidade de atribuir postos-chave a mulheres e leigos, no âmbito da reforma do Governo da Igreja Católica, além de ter anunciado a intenção de criar uma comissão para estudar a possibilidade de as mulheres acederem ao diaconado, podendo substituir os padres em alguns sacramentos, como o batismo em forma solene (em forma simples e em caso de urgência, qualquer pessoa o pode fazer, desde que utilize a matéria válida e utilize a forma do sacramento – com intenção de fazer o que faz a Igreja).
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De acordo com o grupo que assina a carta, 7 posições do papa na Amoris laetitia, apresentadas em latim, contradizem “verdades divinamente reveladas” e precisam de ser novamente condenadas pela Igreja “para o bem das almas”. Além disso, condenam uma suposta simpatia do Papa Francisco por Martinho Lutero e a afinidade com as ideias do reformador alemão sobre casamento, que, em sua visão, teriam denegrido o matrimónio. Dizem eles:
“De um lado, o casamento é supostamente salvaguardado como um sacramento, enquanto, de outro lado, o divórcio e o novo casamento são considerados ‘misericordiosamente’ um status quo a ser integrado – embora apenas ‘pastoralmente’ – na vida da Igreja, contradizendo assim abertamente as palavras de Nosso Senhor”.
Discussões sobre a moral sexual e sobre o recebimento da comunhão por pessoas divorciadas que se casaram novamente são frequentes na Igreja Católica. No seu texto de 2016, o Papa Francisco pediu mais misericórdia com relação ao tema e recomendou que as Igrejas locais decidissem individualmente sobre os casos. Com efeito, estas pessoas não podem ser consideradas como excluídas da Igreja, muito embora a sua situação não seja exemplar nem desejável. Mas não se lhes pode negar a atenção cristã e muito menos a misericórdia do Pai, pela qual Jesus Cristo se bateu até ao fim. Nem vale dizer que algum ponto foi inserido na Ratio Finalis do Sínodo por insistência do Papa, apesar de esse ponto não ter colhido a maioria de 2 terços. O Magistério é da Igreja sub Petro et cum Petro e não do colégio qua tali. Aliás, apesar de decorrente do Sínodo, a Amoris Laetitia é um documento pontifício e não sinodal. Ademais, essa maioria é exigível na escolha de pessoas. Quanto à formulação de doutrina e disciplina, seria oportuno atermo-nos à nomenclatura: placet, placet iuxta modum, non placet.
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Não há dúvida sobre a legitimidade da correção fraterna ou filial da parte de crentes ao bispo ou ao papa, quer pela lei do Evangelho, quer pela lei natural, quer pela doutrina de Tomás de Aquino. Porém, a correção deve assentar em pressupostos verídicos. Ora, no caso vertente, verifica-se que os pontos retirados do capítulo VIII da exortação apostólica são descontextualizados, distorcidos e interpretados de forma desviante – o que a fortiori vale a propósito de outros fragmentos de textos discursivos de Francisco, designadamente o que disse em Fátima, a 12 de maio de 2017, sobre misericórdia e justiça, entendendo os subscritores como definitiva a postergação à condenação de pagão ou publicano referida em Mt 18,17, esquecendo Mt 18,21-22. Também é injusta a referência ao conteúdo do discurso papal na Suécia, o que dá a entender que o movimento ecuménico não seria desejável, mas sim a insistência ineficaz e injusta na supremacia da Igreja católica, como se esta não devesse autocriticar-se, renovar-se e fazer o mea culpa por tantas atitudes mais de rejeição que de inclusão, de condenação que de perdão, de instalação que de em saída, de autorreferência que de testemunho de Jesus Cristo.
É óbvio que o Papa não se reconhece nem se pode reconhecer nas 7 proposições heréticas de que abusivamente o acusam. Ademais, sempre ficou esclarecido que da parte do Papa ou do Sínodo não há qualquer alteração à doutrina da Igreja, muito menos qualquer legitimação do adultério ou do tratamento diverso da indissolubilidade do matrimónio. Ao invés, a Amoris Laetitia diz expressamente que os recasados têm de saber que a sua situação não é em linha com a doutrina. O que há é uma compreensão das diferentes situações em que ou a culpa não é clara ou a alteração da situação pode trazer prejuízos graves a outrem, nomeadamente à prole.
No respeitante, à absolvição do aborto por parte dos sacerdotes, não está em causa nem a gravidade do pecado nem a excomunhão latae sententiae. Mas é de advertir que o caminho penitencial não tem de ser dificultado nem se podem acusar levemente as pessoas de excomungadas sem ter em conta as condições da aplicação das censuras e penas canónicas. Quantas vezes é que realmente poderemos acusar de pecado grave alguém, atenta a matéria, o perfeito conhecimento e advertência e o pleno consentimento? E que dizer da consciência da censura ou pena eclesiástica?
Diga-se, em abono da verdade e à luz do Evangelho, que a comunhão não é um prémio para os santos, mas um remédio para os pecadores, que devem tornar-se quanto possível dignos. Porém, os pastores deviam abster-se de acusar os outros da indignidade, mas levar os crentes ao reconhecimento sua sponte de que não são dignos do sacramento, mas que dele se abeiram graças à misericórdia de Deus, maior que a justiça, mas que a pressupõe e enforma.
Além disso, é de sustentar que o ensinamento do Papa se respalda perfeitamente nos 16 enunciados que os subscritores pespegam na nota de esclarecimento. Porém, podiam dispensar-se de falar em pecado ou em crime de heresia (nn. 15.16). E, já agora, se estão mesmo convictos das suas razões, deviam ter o arrojo de fazer uma acusação formal ao Papa e não se refugiar no parentético eufemismo, na hipócrita submissão e na entediante incompetência canónica:   
(As descrições anteriores do pecado pessoal de heresia e do crime canónico de heresia são dadas apenas para excluí-las da matéria da nossa impugnação. Estamos preocupados apenas com as proposições heréticas propagadas pelas palavras, atos e omissões de Sua Santidade. Não temos a competência ou a intenção de emitir uma acusação canónica de heresia.).
Talvez seja conveniente lembrar a máxima agostiniana: In essentia unitas, in caeteris libertas.
E Francisco que ande mesmo para a frente! Embora também seja um teólogo, cabe-lhe não a investigação, mas a sua promoção; não a dirimição das questões da reflexão teológica, mas a doutrina; e mais do que a doutrina a confirmação na Fé dos irmãos e o Magistério, fiel ao Evangelho e no serviço aos homens.

2017.09.26 – Louro de Carvalho

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