Apesar de já me ter referido
ao “Dies Natalis” cristão de Dom
António Francisco dos Santos, pegando na sua homilia em Fátima, a 9 de setembro,
e lendo-a à laia de testamento pastoral e humanista, que a Igreja do Porto
poderá assumir e as forças vivas do país que se preocupam com a igualdade e a
fraternidade podem acolher, resta-me o dever do testemunho pessoal.
Com efeito, já muitas
pessoas se referiram ao homem, ao padre, ao bispo no que ele tem de comum com
outros homens, padres e bispos e no que revelou de peculiar. Muitos foram os
testemunhos pessoais e institucionais que o apontam como amigo pessoal e como
referência cristã e humanista na preferência pelos pobres, que “não podem esperar”. Por dever de
justiça, embora nem sempre concorde com as duas personalidades que refiro a seguir,
devo enaltecer os artigos de opinião de Paulo Rangel e de Graça Franco.
Ser-me-ia muito difícil dizer tão bem como Rangel disse e apanhar todos os
aspetos essenciais que Graça Franco captou e sintetizou.
***
Por mim, devo-lhe a
homenagem da amizade que sempre sentiu, mesmo quando estivemos mais distantes
ou quando, às vezes, nos criticávamos mútua, mas construtivamente, em tempos
longínquos. Amizade imperdível. Devo-lhe a homenagem que o homem inteligente
merece, porque sabia esperar, ouvir, falar, sorrir, ensinar, aprender e rezar.
Devo a homenagem ao sacerdote que se cultivou no seminário e em todas as
oportunidades que a vida lhe proporcionou, a partir do que sabiamente quis e
soube colocar-se inabalavelmente ao serviço do mundo das pessoas através da
Igreja e, através das pessoas, ao serviço da Igreja. Devo a homenagem de que a
sua vida episcopal e o serviço dela decorrente são merecedores enquanto
corolário da sua vida de homem e sacerdote ao estilo do coração de Cristo e
perto do coração de cada pessoa com quem tinha o ensejo de partilhar, ensejo
que acolhia e que procurava e até provocava ao de leve.
***
É óbvio que todas estas
vertentes provocam a saudade pessoal. E, tal como tantos e tantas, também senti
a fustigação da notícia que ecoou no café “Renascer”, pela voz de Graça
Portela, em Santa Maria da Feira, na manhã de 11 de setembro. Procurei viver
esta consternação de forma discreta. Não fui ao Porto, mas, como tive de me
deslocar a Santa Maria de Lamas em cuja Igreja Paroquial os responsáveis
colocaram uma grande imagem do Bispo Dom António Francisco à contemplação do crente
visitante do templo, aos pés da qual estava um vela acesa em redoma adequada e
um belo arranjo floral, fiz romagem a essa Igreja no silêncio.
Os responsáveis da paróquia
desejaram “que a
vela junto à sua imagem seja sinal de luz da vida eterna, junto do Pai do Céu”
e “que seja para nós luz a seguir no
exemplo de humildade, solidariedade, bondade, justiça e simplicidade que sempre
demonstrou para com todos”. Por isso, entendo não poder ficar na saudade,
mas na reflexão e no olhar para esta referência de homem, padre e bispo. E, por
isso, fui reler a entrevista que, no dia 9, deu à agência Ecclesia, em que, entre coisas tão importantes, acentuou:
“Há muito a fazer na Igreja no campo laboral. Eu próprio sinto isto no
dia-a-dia e é uma das minhas preocupações prementes neste campo. Nós crescemos
naquele humanismo próprio de querer dar emprego a toda a gente e agora estamos
circunscritos pela realidade. Muitas vezes não somos capazes de dar respostas
através das nossas instituições para manter todos os trabalhadores. Isso
dói-nos, rasga-nos a alma e dilacera-nos o coração. A Igreja tem de saber denunciar,
mas saber também em denunciar-se a si própria quando não é capaz de viver
aquilo que a Doutrina Social da Igreja nos propõe e nos impõe.”
(sublinhei).
***
Finalmente, vem o dever e a
alegria da gratidão. Gratidão, pelos benefícios que Deus lhe concedeu: a
bondade, a inteligência, a disponibilidade, a sabedoria e a entrega; a
proximidade e a profecia; a santificação, a orientação e a justiça. Gratidão
pela amizade desinteressada e abnegada, cheia de empatia e frontalidade, quando
necessário. Gratidão pelos benefícios que Deus nos concedeu através do homem,
padre e bispo. Gratidão por ter encarnado a novidade do pastoreio, não à moda
dos pastores veterotestamentários, mas ao estilo de Cristo, o Pastor que chama
pelas suas ovelhas, conhece cada uma e se entrega por elas até à dádiva da
vida.
Ora, Dom Manuel Clemente na
homilia que proferiu nas exéquias do Bispo do Porto e que intitulou “No
coração de Cristo, o nosso Bom Pastor”
– palavras com que terminou – disse:
“Assim como Jesus Cristo deu à imagem do Bom Pastor a realidade mais
concreta e convincente, assim a sua presença ressuscitada encontra o sinal e o
sacramento em quem, pela participação no seu Espírito, lhe dê agora o rosto e o
gesto”.
E, lendo a vida e ação de Dom António Francisco a esta luz, discorreu:
“É precisamente neste ponto que –
sem extrapolações nem lugares comuns – podemos e devemos reencontrar a figura
do Senhor Dom António Francisco, com toda a justiça em relação ao que foi entre
nós e muita ação de graças a Deus que no-lo deu como sacramento de Cristo
Pastor – em Lamego, em Braga, em Aveiro, no Porto e em todos os lugares que a
sua vida visitou”.
Assegurando que ser bispo é hoje “um trabalho complexo e quase inabarcável
para quem o exerce”, pois, não se estando “acima de nada nem de ninguém”, mas “no
centro de tudo ou quase tudo, no que à igreja se refere e mesmo além da vida da
Igreja”, comentou:
“A pressão é grande, inclusive a mediática, e as estruturas intermédias
quase se desfazem, pois sempre se espera que quem está no centro responda
imediatamente seja ao que for, por mais inesperado ou casual que possa ser.
[…].Por outro lado, tratando-se de acompanhar e conjugar a vida eclesial, a
avaliação e a decisão requerem especial cuidado. São sempre realidades
anímicas, trata-se afinal de pessoas.”.
E, aplicando esta análise ao Bispo do Porto, declarou:
“Dom António Francisco dos Santos
foi um grande pastor da Igreja. No sentido plenamente cristão de quem dá a vida
pelas ovelhas. Assim a deu generosamente, quase sem descanso e nas
circunstâncias que esbocei. […]. Foi capaz e capacíssimo, precisamente no
essencial, de ser um pastor próximo e amigo de todos e cada um dos seus. Não
lhe faltaram dificuldades, mas nenhuma lhe endureceu o espírito nem o trato. Sábio
e bondoso, assim permaneceu e assim nos fica, como memória e como estímulo. Fisicamente,
o coração pode parar. Espiritualmente, isto é, realmente, continua connosco no
coração de Deus. No coração de Cristo, o nosso Bom Pastor.”.
***
Na verdade, como diz Graça
Franco, foi “um homem bom e um grande
bispo”, que “deixou marcas no laicado de Aveiro, convivia com as famílias como se fizesse parte
de cada uma”. E, “no Porto, disse um ‘basta’ à desigualdade e conquistou o
respeito de comerciantes, empresários e militares”. De facto, “o pastor que
escolhera como lema episcopal ‘Nas tuas
mãos’ morreu […] quando nada o fazia prever, deixando em estado de choque
todos os que com ele conviveram nos últimos dias como se a sua divisa tivesse
sido integralmente cumprida”. Foi “o verdadeiro Pastor com cheiro a ovelhas,
que o Papa Francisco gostava que fosse a marca de todos os bispos”. Mas dele
bastava dizer, como Paulo Rangel disse: “quando o granito sorri…”.
2017.09.14 – Louro de Carvalho
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