quinta-feira, 14 de setembro de 2017

Coisas do arco-da-velha em advogados e tribunais ingleses

A Comunicação Social tem dado relevo ao caso que se passou em Inglaterra nos últimos anos.
Ângela Maria de Sousa Baptista, de 69 anos, trabalhava em Londres há mais de quatro décadas, onde sempre viveu sozinha ou, melhor, com um sobrinho. Não sabendo ler nem escrever, toda a sua aprendizagem foi adquirida e desenvolvida ao longo duma vida humilde e de trabalho.
Em 2006, um acidente por atropelamento deixou-a parcialmente incapacitada. Foi um incidente causador de várias lesões físicas e que lhe afeta a capacidade motora. Por isso, um psiquiatra enviado pela empresa de advogados acabou por dizer que ela não estava bem e que tinha vários problemas psicológicos, acrescentando não ter discernimento.
Passados sete anos, foi-lhe atribuída uma indemnização de 170 mil libras (o equivalente a cerca de 200 mil euros), mas a sociedade de advogados que lhe tratou do caso, Hansen Palomares Solicitors, invocou a incapacidade mental da cliente para reter a indemnização e administrar todos os seus bens e ficou tutelar daquela verba até há poucos dias, pelo que a indemnizada nunca pudera usufruir do montante pecuniário que lhe fora atribuído.
“Aquela senhora nem tampouco era dona da sua vida”, acrescenta a estudante de 21 anos que veio a defendê-la. “Tem o seu temperamento, não teve escolaridade, não sabe falar inglês, e é normal que, por vezes, não se expresse da melhor forma. Mas não quer dizer que não estivesse capaz para gerir o seu dinheiro”.
A idosa tentava desde 2013, sem sucesso, reverter a situação, até que, no ano passado, conheceu no restaurante do Futebol Clube do Porto (GCP) em Londres – ponto de encontro para muitas pessoas da comunidade lusófona – uma jovem aspirante a advogada, Alexandra da Silva, de 21 anos, natural de Cardielos, Viana do Castelo, onde viveu até aos 17 anos. E esta, depois de ouvir a história de Ângela, disponibilizou-se a ajudá-la, apesar de não ter ainda o curso concluído. Segundo o que está previsto na lei inglesa, tornou-se a sua representante na qualidade de “litigation friend” (amigo/a de litígio), figura que não existe em Portugal.
Registe-se que também Alexandra passou as suas dificuldades em Inglaterra. Há 4 anos, quando chegou a Londres, mal conseguia pedir um copo de água. Revela a este respeito:
“Por vezes, quando ia na rua, tinha sede e queria pedir um copo de água. A minha mãe respondia-me: ‘vais tu lá pedi-lo ou não bebes’. E eu deixava que toda a gente passasse à minha frente, porque ainda estava a pensar que palavras deveria utilizar.”.
Mas estudou muito, bastante para ganhar coragem de enfrentar e vencer em tribunal o consórcio Hansen Palomares Solicitors.
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Assim, logo em novembro de 2016, Alexandra avançou com requerimento ao tribunal para que averiguasse o caso. Apresentou provas de que a lesada está mentalmente sã e requereu que fosse ordenada ao gabinete de advogados a restituição dos seus pertences. A médica independente indicada pelo tribunal para avaliar a emigrante concluiu pela sanidade e a sentença favorável à sexagenária, quase septuagenária, saiu há dias.
Alexandra sempre disse à Dona Ângela: “estou consigo e é a si que vou representar, da melhor forma que puder” – como conta em entrevista ao Expresso. “Há uma semana chegou a ordem do tribunal [Court of Protection ou, de forma traduzida, Tribunal de Proteção] e ganhámos”.
A este respeito, contra a aspirante a advogada:
“Deram muita luta. Estamos a falar de uma quantia milionária e os advogados alegaram sempre que a senhora não estava capaz. Foi uma grande batalha, mas há cerca de uma semana chegou-nos a ordem do tribunal, em que o juiz corta qualquer tipo de vínculo entre eles e a dona Ângela e determina que a firma tem até 3 de outubro para lhe devolver todo o dinheiro e apresentar contas. Ela está radiante.”.
Ao jornal “The Independent” Alexandra Silva declarou:
“Nunca pensei que corresse tão bem. Fez-se mesmo justiça, porque um juiz contrariou a decisão anterior de outro juiz.”.
E ao JN (Jornal de Notícias) reconhece que “lutar contra uma sociedade de advogados não foi um processo fácil”, mas que, ainda assim, ou talvez por isso, foi “muito desafiante”. Alega, ainda, que a firma de advogados esgotou até ao limita todas as oportunidades que o processo oferecia para apresentar alegações e argumentos que tentavam descredibilizar Ângela, afirmando constantemente que a decisão de reterem os bens fora sempre no sentido de proteger a constituinte.
Alexandra considera, por isso, que, em casos deste tipo, a justiça anglo-saxónica está mais avançada do que a portuguesa, por permitir que qualquer pessoa defenda outrem num processo jurídico. Diz também que, em Portugal, sem um advogado devidamente creditado, não é possível ter defesa.
Ainda sobre o caso, Alexandra adianta que está a ser feita uma investigação à sociedade de advogados para perceber se o dinheiro cobrado a Ângela o foi corretamente – isto por faltar apurar a legalidade dos alegados serviços prestados à mulher. Só assim será possível fixar o valor final a ser restituído a Ângela. O prazo limite é 3 de outubro.
A estudante garante que a “Dona Ângela” está satisfeita com o resultado e que, neste momento, se encontra na Madeira à procura de casa de férias, porque “não tenciona sair daqui [Londres]”, pois “adora estar em Inglaterra e tem aqui todas as amigas e toda a sua vida”.
Por sua vez, Ângela Baptista, ex-empregada de limpezas em hotéis e casas particulares londrinas e que, por estes dias, se encontra na Madeira, mostrou-se “feliz” com o desfecho do processo, tendo confessado ao “JN” que “a Alexandra foi o meu anjo da guarda”.
Na verdade, segundo a jovem emigrante, que entra agora para o 3.º ano de Direito, “a Dona Ângela já tinha tentado com advogados portugueses e ingleses, mas todos começavam e depois não davam seguimento ao processo, ou então pediam-lhe uma quantia excessiva”. Por isso, o pedido constante de Ângela a Alexandra era: “Não se deixe comprar por eles”.
E a estudante de Direito, que desde o início se apercebeu de uma “hostilidade” por parte dos advogados na forma como tratavam Ângela Baptista, explica-se:
“Tive um par de reuniões com a senhora e vi que não havia qualquer problema [psicológico] com ela. Achei toda a situação muito injusta. […]. Percebi que tinha de a ajudar, como se fosse alguém da minha família […]. Comecei a enviar formulários e reabri o processo, porque era necessário recomeçar tudo de novo. Obrigou-me a fazer um trabalho de casa e a estudar, desde investigar fontes legais até ligar para o tribunal a perguntar se estava tudo correto. Fiz tudo sozinha, sem a ajuda de nenhum advogado. Reunimos provas e escrevi páginas e páginas a relatar o que se passava.”.
Reaberto o processo, o tribunal enviou uma perita a avaliar o estado clínico de Ângela, bem como a perceber quem era a jovem que acompanhava a sexagenária no processo. A perita concluiu ser desnecessário estar a sociedade de advogados na posse do dinheiro, por considerar que a senhora estava mentalmente bem.
O caso teve eco em terras de Sua Majestade, por via dum artigo do “The Independent”. A jovem pode estar num ponto de viragem, dada a atenção mediática ao desfecho que o processo acabou por ter. Assim, Alexandra, sempre com os pés bem assentes na terra, diz e acredita:
“Foi um caso que eu ganhei sem terminar o curso. De alguma forma, pode ser que os escritórios de advogados em Londres tenham isto em vista e me apresentem alguma proposta.”.
Mas, por agora, só pensa em concluir o curso e ingressar na Ordem Jurídica Britânica, estando já a pensar na dissertação. Ao ler algumas das inúmeras mensagens de apoio recebidas, diz ficar com lágrimas nos olhos, lembrando a importância da mãe, pois graças a ela teve a oportunidade de estudar e seguir o sonho de “pequenina”, quando com sete ou oito anos já tinha o ‘bichinho’ pelo Direito. E foi com ela que aprendeu a lutar pelo que queria, desde o dia em que aterrou em Londres, quando mal conseguia comunicar no idioma do imorredoiro Shakespeare.
No entanto, a estudante de Direito que, há dias, conseguiu, surpreendentemente, vencer uma causa na justiça britânica, vê reconhecido o seu ótimo trabalho. Já foi contactada por várias firmas de advogados inglesas, sendo que duas já lhe fizeram propostas de trabalho concretas.
O que seria só uma ajuda abriu caminhos no percurso da jovem que ainda não tem perspetivas definidas para o futuro como advogada, mas que admite que, “se aparecerem causas que me despertem o interesse, terei todo gosto e vontade em ajudar”.
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Segundo o JN, apoiado em explicação de fonte jurídica, “um caso destes seria praticamente impossível em Portugal”. E mais:
Isso é o sistema anglo-saxónico a funcionar. Cá não existe a figura do ‘litigation friend’. A lesada teria de apresentar queixa-crime no Ministério Público pela prática de crimes e teria de instaurar ela própria uma ação cível. A jovem não teria capacidade nem legitimidade para tal. Os sistemas jurídicos são completamente diferentes. O anglo-saxónico não tem a ver com leis, mas com decisões jurisprudenciais, enquanto o português obriga a que juízes e intervenientes processuais respeitem a lei e o estado de direito.”.
A isto deve assinalar-se a diferença dos sistemas jurídicos, não sendo legítimo perdermo-nos no seu juízo de valor. No entanto, é de considerar que, entre nós, não existe a figura do ‘litigation friend’, o que é mau. Se as pessoas confiam na sabedoria e dedicação de um determinado indivíduo para as representar, não se vê motivo para exigir um profissional com papel da Universidade e da Ordem, a não ser pela mira de proteção dos profissionais, que não deve sobrepor-se aos interesses dos cidadãos. Além disso, o caso vertente não apresenta uma figura humana totalmente leiga na matéria. Até seria útil para o estudante de Direito passar, com proficiência, pela barra dos tribunais antes de concluir o curso. Seria uma boa mais-valia.
É inexato dizer que o anglo-saxónico não tem a ver com as leis, mas com a jurisprudência, enquanto o português obriga juízes e intervenientes processuais a respeitarem a lei e o estado de direito. Os ingleses também julgam caldeando a aplicação da lei com a jurisprudência e com a doutrina. Exatamente o que se faz em Portugal. O que pode acontecer é dar-se mais relevância a uma ou a outra das vertentes para a convicção que o juiz formula para poder decidir. E onde é que Portugal tem um estado de direito melhor que a Inglaterra? Porque não encontra Portugal outras formas de proteger os advogados, que impedir outrem de praticar atos de pura cidadania? Mas continua a Ordem a permitir que os seus sócios se vejam obrigados a trabalhar, em regime de precariedade, por conta de grandes Sociedades de Advogados a troco de um salário de miséria mediante a passagem de recibos verdes. Fá-lo em nome de que lei ou de que Estado de Direito? Ou, por falar à inglesa, em nome de que decisões jurisprudenciais?
Será que no nosso Estado de Direito as Sociedades de Advogados serão tão sãs que possam atirar pedras às congéneres inglesas? Só se for para controlo da natalidade!

2017-09.14 – Louro de Carvalho

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