A Comunicação Social tem dado relevo ao caso que se passou em Inglaterra
nos últimos anos.
Ângela
Maria de Sousa Baptista, de 69 anos, trabalhava em Londres há mais de quatro
décadas, onde sempre viveu sozinha ou, melhor, com um sobrinho. Não sabendo ler
nem escrever, toda a sua aprendizagem foi adquirida e desenvolvida ao longo duma
vida humilde e de trabalho.
Em
2006, um acidente por atropelamento deixou-a parcialmente incapacitada. Foi um incidente causador de várias lesões físicas e que lhe afeta a
capacidade motora. Por isso, um psiquiatra enviado pela empresa de advogados
acabou por dizer que ela não estava bem e que tinha vários problemas
psicológicos, acrescentando não ter discernimento.
Passados
sete anos, foi-lhe atribuída uma indemnização de 170 mil libras (o
equivalente a cerca de 200 mil euros), mas a
sociedade de advogados que lhe tratou do caso, Hansen Palomares Solicitors, invocou a incapacidade mental da
cliente para reter a indemnização e administrar todos os seus bens e ficou
tutelar daquela verba até há poucos dias, pelo que a indemnizada nunca pudera
usufruir do montante pecuniário que lhe fora atribuído.
“Aquela
senhora nem tampouco era dona da sua vida”, acrescenta a estudante de 21 anos
que veio a defendê-la. “Tem o seu temperamento, não teve escolaridade, não sabe
falar inglês, e é normal que, por vezes, não se expresse da melhor forma. Mas
não quer dizer que não estivesse capaz para gerir o seu dinheiro”.
A
idosa tentava desde 2013, sem sucesso, reverter a situação, até que, no ano
passado, conheceu no restaurante do Futebol Clube do Porto (GCP) em Londres – ponto de encontro para muitas pessoas da
comunidade lusófona – uma jovem aspirante a advogada, Alexandra da Silva, de 21
anos, natural de Cardielos, Viana do Castelo, onde viveu até aos 17 anos. E
esta, depois de ouvir a história de Ângela, disponibilizou-se a ajudá-la,
apesar de não ter ainda o curso concluído. Segundo o que está previsto na lei
inglesa, tornou-se a sua representante na qualidade de “litigation friend” (amigo/a de litígio), figura que não existe em Portugal.
Registe-se
que também Alexandra passou as suas dificuldades em Inglaterra. Há 4 anos,
quando chegou a Londres, mal conseguia pedir um copo de água. Revela a este
respeito:
“Por vezes, quando ia na rua, tinha
sede e queria pedir um copo de água. A minha mãe respondia-me: ‘vais tu lá
pedi-lo ou não bebes’. E eu deixava que toda a gente passasse à minha frente,
porque ainda estava a pensar que palavras deveria utilizar.”.
Mas
estudou muito, bastante para ganhar coragem de enfrentar e vencer em tribunal o
consórcio Hansen Palomares Solicitors.
***
Assim,
logo em novembro de 2016, Alexandra avançou
com requerimento ao tribunal para que averiguasse o caso. Apresentou provas de
que a lesada está mentalmente sã e requereu que fosse ordenada ao gabinete de
advogados a restituição dos seus pertences. A médica independente indicada pelo
tribunal para avaliar a emigrante concluiu pela sanidade e a sentença favorável
à sexagenária, quase septuagenária, saiu há dias.
Alexandra
sempre disse à Dona Ângela: “estou consigo e é a si que vou representar, da
melhor forma que puder” – como conta em entrevista ao Expresso. “Há uma semana chegou a ordem do tribunal [Court of Protection ou, de forma
traduzida, Tribunal de Proteção] e ganhámos”.
A este
respeito, contra a aspirante a advogada:
“Deram muita luta. Estamos a falar de uma quantia milionária e os advogados
alegaram sempre que a senhora não estava capaz. Foi uma grande batalha, mas há
cerca de uma semana chegou-nos a ordem do tribunal, em que o juiz corta
qualquer tipo de vínculo entre eles e a dona Ângela e determina que a firma tem
até 3 de outubro para lhe devolver todo o dinheiro e apresentar contas. Ela
está radiante.”.
Ao
jornal “The Independent” Alexandra
Silva declarou:
“Nunca pensei que corresse tão bem. Fez-se mesmo justiça, porque um juiz
contrariou a decisão anterior de outro juiz.”.
E ao JN (Jornal de Notícias) reconhece que “lutar contra uma sociedade de advogados não foi um
processo fácil”, mas que, ainda assim, ou talvez por isso, foi “muito
desafiante”. Alega, ainda, que a firma de advogados esgotou até ao limita todas
as oportunidades que o processo oferecia para apresentar alegações e argumentos
que tentavam descredibilizar Ângela, afirmando constantemente que a decisão de
reterem os bens fora sempre no sentido de proteger a constituinte.
Alexandra considera, por isso, que, em casos deste tipo, a justiça
anglo-saxónica está mais avançada do que a portuguesa, por permitir que
qualquer pessoa defenda outrem num processo jurídico. Diz também que, em
Portugal, sem um advogado devidamente creditado, não é possível ter defesa.
Ainda sobre o caso, Alexandra adianta que está a ser feita
uma investigação à sociedade de advogados para perceber se o dinheiro cobrado a
Ângela o foi corretamente – isto por faltar apurar a legalidade dos alegados
serviços prestados à mulher. Só assim será possível fixar o valor final a ser
restituído a Ângela. O prazo limite é 3 de outubro.
A estudante garante que a “Dona Ângela” está satisfeita com o
resultado e que, neste momento, se encontra na Madeira à procura de casa de
férias, porque “não tenciona sair daqui [Londres]”,
pois “adora estar em Inglaterra e tem aqui todas as amigas e toda a sua vida”.
Por sua vez,
Ângela Baptista, ex-empregada de limpezas em hotéis e casas particulares
londrinas e que, por estes dias, se encontra na Madeira, mostrou-se “feliz” com
o desfecho do processo, tendo confessado ao “JN” que “a Alexandra foi o meu anjo da guarda”.
Na
verdade, segundo a jovem emigrante, que entra agora para o 3.º ano de Direito,
“a Dona Ângela já tinha tentado com advogados portugueses e ingleses, mas todos
começavam e depois não davam seguimento ao processo, ou então pediam-lhe uma
quantia excessiva”. Por isso, o pedido constante de Ângela a Alexandra era: “Não se deixe comprar por eles”.
E a
estudante de Direito, que
desde o início se apercebeu de uma “hostilidade” por parte dos advogados na
forma como tratavam Ângela Baptista, explica-se:
“Tive um par de reuniões com a senhora
e vi que não havia qualquer problema [psicológico] com ela. Achei toda a
situação muito injusta. […]. Percebi que tinha de a ajudar, como se fosse
alguém da minha família […]. Comecei a enviar formulários e reabri o processo,
porque era necessário recomeçar tudo de novo. Obrigou-me a fazer um trabalho de
casa e a estudar, desde investigar fontes legais até ligar para o tribunal a
perguntar se estava tudo correto. Fiz tudo sozinha, sem a ajuda de nenhum
advogado. Reunimos provas e escrevi páginas e páginas a relatar o que se
passava.”.
Reaberto
o processo, o tribunal enviou uma perita a avaliar o estado clínico de Ângela,
bem como a perceber quem era a jovem que acompanhava a sexagenária no processo.
A perita concluiu ser desnecessário estar a sociedade de advogados na posse do
dinheiro, por considerar que a senhora estava mentalmente bem.
O caso
teve eco em terras de Sua Majestade, por via dum artigo do “The Independent”. A jovem pode estar num
ponto de viragem, dada a atenção mediática ao desfecho que o processo acabou
por ter. Assim, Alexandra, sempre com os pés bem assentes na terra, diz e
acredita:
“Foi um caso que eu ganhei sem
terminar o curso. De alguma forma, pode ser que os escritórios de advogados em
Londres tenham isto em vista e me apresentem alguma proposta.”.
Mas,
por agora, só pensa em concluir o curso e ingressar na Ordem Jurídica Britânica,
estando já a pensar na dissertação. Ao ler algumas das inúmeras mensagens de
apoio recebidas, diz ficar com lágrimas nos olhos, lembrando a importância da
mãe, pois graças a ela teve a oportunidade de estudar e seguir o sonho de
“pequenina”, quando com sete ou oito anos já tinha o ‘bichinho’ pelo Direito. E
foi com ela que aprendeu a lutar pelo que queria, desde o dia em que aterrou em
Londres, quando mal conseguia comunicar no idioma do imorredoiro Shakespeare.
No entanto, a estudante de Direito
que, há dias, conseguiu, surpreendentemente, vencer uma causa na justiça
britânica, vê reconhecido o seu ótimo trabalho. Já foi contactada por várias firmas
de advogados inglesas, sendo que duas já lhe fizeram propostas de trabalho
concretas.
O que seria só uma ajuda abriu caminhos no percurso da jovem
que ainda não tem perspetivas definidas para o futuro como advogada, mas que
admite que, “se aparecerem causas que me despertem o interesse, terei todo
gosto e vontade em ajudar”.
***
***
Segundo o JN, apoiado em explicação de fonte
jurídica, “um caso destes seria praticamente impossível em Portugal”. E mais:
“Isso é o sistema anglo-saxónico a
funcionar. Cá não existe a figura do ‘litigation friend’. A lesada teria de
apresentar queixa-crime no Ministério Público pela prática de crimes e teria de
instaurar ela própria uma ação cível. A jovem não teria capacidade nem
legitimidade para tal. Os sistemas jurídicos são completamente diferentes. O
anglo-saxónico não tem a ver com leis, mas com decisões jurisprudenciais,
enquanto o português obriga a que juízes e intervenientes processuais respeitem
a lei e o estado de direito.”.
A isto deve
assinalar-se a diferença dos sistemas jurídicos, não sendo legítimo
perdermo-nos no seu juízo de valor. No entanto, é de considerar que, entre nós,
não existe a figura do ‘litigation
friend’, o que é mau. Se as pessoas confiam na sabedoria e dedicação de um
determinado indivíduo para as representar, não se vê motivo para exigir um
profissional com papel da Universidade e da Ordem, a não ser pela mira de proteção
dos profissionais, que não deve sobrepor-se aos interesses dos cidadãos. Além
disso, o caso vertente não apresenta uma figura humana totalmente leiga na
matéria. Até seria útil para o estudante de Direito passar, com proficiência,
pela barra dos tribunais antes de concluir o curso. Seria uma boa mais-valia.
É inexato
dizer que o anglo-saxónico não tem a ver com as leis, mas com a jurisprudência,
enquanto o português obriga juízes e intervenientes processuais a respeitarem a
lei e o estado de direito. Os ingleses também julgam caldeando a aplicação da
lei com a jurisprudência e com a doutrina. Exatamente o que se faz em Portugal.
O que pode acontecer é dar-se mais relevância a uma ou a outra das vertentes
para a convicção que o juiz formula para poder decidir. E onde é que Portugal
tem um estado de direito melhor que a Inglaterra? Porque não encontra Portugal
outras formas de proteger os advogados, que impedir outrem de praticar atos de
pura cidadania? Mas continua a Ordem a permitir que os seus sócios se vejam
obrigados a trabalhar, em regime de precariedade, por conta de grandes
Sociedades de Advogados a troco de um salário de miséria mediante a passagem de
recibos verdes. Fá-lo em nome de que lei ou de que Estado de Direito? Ou, por falar
à inglesa, em nome de que decisões jurisprudenciais?
Será que no
nosso Estado de Direito as Sociedades de Advogados serão tão sãs que possam
atirar pedras às congéneres inglesas? Só se for para controlo da natalidade!
2017-09.14 – Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário