sábado, 30 de setembro de 2017

Impressões duma campanha eleitoral de proximidade

Amanhã, dia 1 de outubro, são as eleições para os órgãos das autarquias locais. Os cidadãos eleitores vão eleger, a partir das propostas disponíveis em cada município e freguesia (de partidos e coligações ou de grupos de cidadãos formados para o efeito), a assembleia municipal, a câmara municipal e a assembleia de freguesia. Da assembleia de freguesia emanará a junta de freguesia, sabendo-se que o presidente será o candidato que encabeça a lista do partido ou grupo de cidadãos mais votado, sendo eleitos o secretário e o tesoureiro e, nos casos onde houver lugar a eles, os vogais. Depois, para colmatar a saída dos eleitos para a junta, a lista ou listas que eles integravam fornecerá(ão) os substitutos respeitando o respetivo ordenamento de lista.
Depois da operação de supressão e agregação de freguesias (a mor parte em uniões), determinada pela Lei n.º 11-A/2013, de 28 de janeiro, no âmbito da Lei n.º 22/2012, de 30 de maio (a lei-quadro),  que aprova o regime jurídico da reorganização administrativa territorial autárquica, são muito poucas as freguesias (aquelas em que o número de eleitores é inferior a 150) em que a junta de freguesia não emana duma assembleia de freguesia eleita, mas é eleita diretamente pelo plenário dos cidadãos eleitores.
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Foi para esta magna operação a realizar amanhã que se mobilizaram os partidos políticos, nalguns casos, em regime de coligação, e se constituíram grupos de cidadãos eleitores que se candidataram aos órgãos das autarquias locais. E estas são os municípios (não as câmaras, que são órgãos executivos dos municípios) e as freguesias (não as juntas, que são órgãos executivos das freguesias).
Houve bastantes casos de freguesias em que só uma lista concorreu à assembleia de freguesia. Este facto, aliado a outro, o da permanência como que alapada da mesma personalidade ou do mesmo partido à frente dos destinos de uma autarquia, deveria fazer repensar a política local e provavelmente levar a importantes alterações legislativas sobre a matéria.
Em alguns casos, aqueles em que efetivamente não há pessoas suficientes para formar listas, deveriam multiplicar-se as freguesias em que a junta é eleita diretamente em plenário, mas, segundo as regras de funcionamento de assembleia geral, em que os candidatos se apresentam em plenário e a votação é feita com o plenário reunido; e não como sucede nalguns casos em que a sala abre a determinada hora da manhã (cedinho) e fecha tardiamente a hora vespertina. Este comportamento configura, em meu entender, uma batota, pois, aqueles eleitores têm, sem necessidade, um bónus ou um massacre de mais 8 ou 15 dias de campanha eleitoral e já conhecem os resultados globais do município.
Entretanto, a maior parte dos casos em que é difícil conseguir (ou não se consegue) mais que uma lista de candidatos à assembleia de freguesia, considerando-se à partida eleita a lista única não resulta da exiguidade de eleitores disponíveis, mas do caciquismo local. Com efeito, em muitos municípios o bastião do poder autárquico torna-se inexpugnável pela criação de dependências, pela troca de contrapartidas sobre o voto ou pela oferta do voto à espera de benefícios de emprego, subsídios, licenças para desenvolvimento de projetos de habitação, empresariais ou socioculturais e, sobretudo (o que é mais grave ainda), pelo receio de retaliação ou de negação de benesses para as coletividades e freguesias. Recordo que é difícil os presidentes de junta da oposição, que integram por inerência a assembleia municipal, votarem contra a proposta de orçamento apresentado pelo executivo. Porquê? Para não serem acusados de bloqueio ao desenvolvimento da sua freguesia.
Depois, a lei eleitoral facilita um outro fenómeno que engrossa a rede dependencial. Dantes, não era admissível a candidatura às autarquias locais a funcionários do respetivo município, o que gerou algumas situações consideradas inconstitucionais. A partir de um determinado momento, a lei eleitoral proíbe a candidatura às autarquias locais a funcionários que detenham cargos de direção no município respetivo ou nas sociedades em que este detenha posição maioritária no capital social. É uma situação que facilmente se contorna: funcionários dirigentes demitem-se dos cargos; outros dispensam-se de aceder a eles; e os municípios descartam-se da posição maioritária das sociedades, ficando-se pela participação a 49,9%. 
Ora, torna-se mais perigoso para a democracia ter aberto a candidatura aos funcionários, pois, em geral, como autarcas em assembleias, câmaras e juntas, tornam-se mais servis do presidente da câmara do que os funcionários dirigentes (estes ainda são decisores que podem enfrentar o poder se quiserem). E os casos não são poucos em que os discursos e atitudes resultam de estrita recomendação do presidente ou de quem as suas vezes faz. E o cumprimento de obrigações funcionais é muitas vezes visto como resolução de problemas do foro político e administrativo.
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Porque incluo este arrazoado nas impressões de campanha? Exatamente, porque os partidos não explicaram aos eleitores ao que iam. Muitos pensam – e o material de campanha o faz supor – que se elege a câmara e a junta e também o presidente da assembleia municipal. Na verdade, o cidadão que encabeça a lista ganhadora de candidatura à câmara será o presidente da câmara, mas o que encabeça a lista de candidatura à assembleia pode não vir a ser o seu presidente. Basta que a lista que ele integra, embora tenha o maior número de votos, não disponha de maioria absoluta ou que alguns dos seus correligionários modifiquem o seu sentido de voto, pois a eleição da mesa é feita na primeira reunião da assembleia por escrutínio secreto.
Depois, as candidaturas não desmontaram nem denunciaram os defeitos dependenciais, “fraudulentos” ou lacunares acima expostos. É difícil fazer passar a mensagem e os jornalistas sabem tudo menos muito do que interessa. Até deram importância ao facto de os cabeças de lista única fazerem campanha eleitoral, esquecendo que os eleitores são como os jogadores de futebol: precisam de ser respeitados e acarinhados. Candidato praticamente eleito que ousasse desprezar os seus eleitores e a solidariedade para com o seu município arriscava-se a não ter lugar na próxima oportunidade por a sua atitude poder ser entendida como desprezo, arrogância ou falta de solidariedade.
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Mas a campanha foi muito movimentada: arruadas de carrinhas com instalação sonora e disseminação de panfletos, caravanas de automóvel, marchas a pé, contacto porta a porta, invasão de caixas de correio, comícios, distribuição de brindes, exibição de programas, colocação de outdoors publicitários, redes sociais, blogues, programas radiofónicos, comezainas, espetáculos, alguns debates televisivos… Tudo certo. Mas dois reparos: ninguém falou da distribuição de géneros alimentícios como se fosse Natal antecipado, pagamento de viagens do estrangeiro para cidadãos virem votar nesta ou naquela formação partidária, manipulação discreta ou descarada através de crianças em idade escolar e mesmo em pré-escolar, atribuição de bolsas para cursos de línguas... É de arrepiar, não? Não é este o poder ou serviço de proximidade!
Notou-se que os candidatos com maior arreganho em pompa e gastos são os que estão no poder autárquico. Mas o partido do poder central também sabe gastar e estar nos municípios que lhe interessam. É difícil separar um exercício de poder e um ato de campanha, como separar material administrativo de material de candidatura, não é?
Aos partidos e grupos de cidadãos que se candidataram só em algumas freguesias ou só em alguns municípios e àqueles que fizeram campanha só para eleger vereador ou vereadores ou para tirar maiorias absolutas devo dizer que isto não é sério. Se a lei de financiamento dos partidos está mal, corrijam-na. Os partidos legalmente constituídos têm de possuir meios para as operações eleitorais, venham eles dos militantes, do Estado ou das empresas. Essa de querermos os partidos independentes do poder económico é mera hipocrisia. Tão independentes que estão metidos na maior parte das questões económicas e financeiras do BES/GES, BCP, BPI, BPN, Montepio, Santander, Compta, Galilei, PPP, swap, etc.! Lembram-me os bispos de Portugal, que não deixaram Salazar atribuir um salário aos padres, como em Espanha ou na Alemanha, para não se acusar o clero de ficar de pendente do poder político. Valeu-lhes muito!...
Não fazer campanha, comícios, festa, etc. pode significar não atenção ao eleitor. Se não vêm nem visitá-lo para a eleição, que garantias dão de o atenderem se forem poder. Depois, quando se vai à luta, embora se corra o risco de perder, o objetivo é ganhar. E começa-se logo pelo discurso e pelo ímpeto de festa. Concorrer para cumprir calendário ou para ter um vereador ou um deputado ou para tirar maioria sabe a pouco e não é uma atitude política nem de serviço à democracia. E isto aconteceu.
Neste período eleitoral, houve duas coisas que já não deviam acontecer: a quantidade de reclamações junto da CNE (Comissão Nacional de Eleições) por atitudes e situações irregulares, como destruição de material de propaganda, má confeção de material eleitoral, confusão de documentação de ação autárquica e publicidade eleitoral, entre outros aspetos; e a disparidade de decisões do TC (Tribunal Constitucional) na apreciação de recursos sobre decisões dos tribunais de comarca sobre alegadas irregularidades de candidaturas, o que não aconteceria se o TC tivesse uma secção especializada que apreciasse estes processos.  
Também quero deixar uma palavra sobre a intervenção dos líderes nacionais nas campanhas às eleições autárquicas. É certo que eles têm o dever da solidariedade para com aqueles e aquelas que dão a cara no terreno pelos partidos e são uma mais-valia para os partidos. Porém, estas eleições não podem confundir-se com as eleições nacionais, que infelizmente movimentam muitíssimo pouco os autarcas e as populações, o que se reflete na elevadíssima percentagem de abstencionistas. E fazer delas a inauguração de novo ciclo político como alguns comentadores dizem que Marcelo quis fazer (Ele o deu a tender em certa medida quando disse não haver crise política até às autárquicas!) é de efeito perverso. Primeiro, porque, a nível local, as pessoas a eleger estão acima dos partidos; segundo, há situações de simpatia partidária a nível local, quando o mesmo partido gera antipatias a nível nacional (Vi isso em 2005, quando na apresentação de candidatura autárquica do PS, uma deputada veio dizer maravilhas do governo de Sócrates!) e vice-versa; e, ainda, porque incumbe aos dirigentes nacionais a solidariedade, mas não o apadrinhamento. Tanto assim é que uma candidatura quis aproveitar como apoio presidencial a simpatia do Presidente e grupos de professores e de enfermeiros manifestaram-se contra o Primeiro-Ministro a pretexto de ações partidárias de campanha. Fez bem António Costa ao separar as águas e fazem mal os dirigentes nacionais que aproveitam as autárquicas para vender a banha de cobra governativa ou os candidatos locais (dirigentes nacionais) que aproveitam o papel de candidatos a autarquia para debate de questões nacionais.   
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Por uma questão de simpatia, mas também de dever cívico e para com o insigne, não resisto à citação da parte final da última entrevista (sobre eleições autárquicas) do falecido Bispo do Porto à agência Ecclesia (AE), a 9 de setembro, em Fátima, na antevéspera da sua morte.
Fez um comentário ao repto da AE sobre a proximidade das eleições autárquicas, a abundância do discurso em torno do local e do poder local e a importância de se falar “muito no valor das pessoas”, mas sem que isso “não se esqueça após a contagem dos votos”:
Creio que todos nós somos devedores, após o 25 de Abril de 1974, a um grande caminho feito no poder autárquico. O serviço dos autarcas, a quem eu presto homenagem e admiração, quando realizado como tónica de dimensão de serviço. Aqueles que servem, tanto nas juntas de freguesia como nas câmaras municipais, são os que estão mais próximos de nós e conhecem melhor a realidade. Todavia há realidades que demoram muito tempo. A burocracia e a administração são muitas vezes lentas. Estas atrasam soluções que prejudicam e tornam injusta a vida das populações. Este é um caminho grande a percorrer… E depois a transparência. Acho que a verdade, a autenticidade e entrega são essenciais. Todavia, considero que o rosto das cidades, vilas e aldeias transformou-se e, graças a Deus, para bem de todos.”.
Da necessidade de reforçar este poder para aumentar a proximidade às populações, disse:
Devemos fazer uma grande reforma da administração central, administração regional e local. Quanto mais aproximarmos os servidores, seja a nível do Estado, das autarquias e instituições daqueles a quem servem para que seja olhos nos olhos, coração a coração, rosto a rosto… Nós estamos a construir um Portugal melhor, mas nesta área temos muito a aprender com outros povos para reforçar o poder autárquico. Aqueles que nos conhecem podem servir-nos melhor.”.
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Porém, estas partes da entrevista têm umas reticências, que representam omissões da versão oral que saiu de forma algo confusa, pelo que se compreende esta atitude prudencial da AE. Mas é pena, porque, apesar da gratidão e simpatia plasmada na entrevista, aliás como na vida do prelado, fica patente a marca das exceções apontada ao espírito de serviço de autarcas, tendo ele dito que são exceções que confirmam a regra. Por outro lado, há a exigência que devemos fazer aos autarcas que elegemos na linha do acompanhamento e da ação inspetiva.
Sabendo que se trata dum bispo que lidou de perto com o poder autárquico já enquanto sacerdote, devo dizer que ele sabia o que bem queria dizer na sua lucidez, bondade, exigência e apoio a todos os que desejam bem servir.
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Penso que as autarquias, em vez do jogo de interesses que às vezes são, devem passar a ser sempre escolas e campos do bem-fazer, passando pelo bem pensar, bem-querer e bem participar: escolas e campos da cidadania, do exercício da política ativa – almejando a realização de pessoas e famílias, o bem-estar das populações e o desenvolvimento económico e social.

2017.09.30 – Louro de Carvalho

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