terça-feira, 5 de setembro de 2017

Direito à privacidade vs obrigação do trabalho sem mistura com o privado

A comunicação social destaca hoje, dia 5 de setembro, nas suas parangonas que “empresas têm direito a ler conversas dos funcionários em horário de trabalho”. Quem ler isto demasiado depressa pode pensar que se trata de um direito absoluto, até porque resulta de um acórdão do TEDH (Tribunal Europeu dos Direitos do Homem).
Segundo o Dinheiro Vivo, aquele tribunal europeu decidiu autorizar as empresas a monitorizar o conteúdo das mensagens dos seus trabalhadores durante o horário de trabalho, sejam elas feitas pelo e-mail profissional, seja pelos telemóveis da empresa ou até pelas mais inovadoras formas de comunicação como o WhatsApp ou o Facebook Messenger. Porém, apesar do veredicto final, as organizações que escolham controlar os comportamentos dos seus empregados terão de satisfazer uma série de procedimentos (de modo a evitar abusos) e, além disso, avisá-los com antecedência da decisão.
O diário espanhol El País, que avança a notícia, fala numa “decisão crucial” do TEDH para os limites da privacidade no local de trabalhado, sobretudo se for considerado o facto de este ser o mais alto órgão judicial europeu no que diz respeito a matérias como a liberdade civil e cuja jurisprudência é – e deve ser – acompanhada pelos tribunais nacionais.
Na verdade, o TEDH confirma, hoje, dia 5 de setembro, a decisão tomada em finais de 2016, embora com modelação um pouco diferente, no sentido do reconhecimento do direito das empresas a ver a correspondência privada dos funcionários, mas necessariamente com o aviso prévio de que tal correspondência poderá ser monitorizada.
Esta decisão do tribunal de Estrasburgo foi, segundo fontes da instituição citadas pelo El País, tomada por maioria – com 11 votos a favor e 6 contra – e faz jurisprudência sobre os limites da privacidade nos locais de trabalho e num tempo em que “todos vivemos ligados” e a separação entre vida privada e profissional é cada vez mais ténue.
Está na base de tal decisão o despedimento, há 10 anos, de um cidadão na Roménia por ter usado uma aplicação de mensagens eletrónicas – do tipo WhatsApp ou Facebook Messenger – para comunicar com a família.
De facto, o engenheiro Bogdan Barbulescu, de 37 anos, trabalhava como responsável de vendas e, por sugestão da empresa, criou uma conta naquele serviço de mensagens instantâneas para responder aos clientes, mas acabou por ser ‘espiado’ durante quase duas semanas pelos patrões, que concluíram que as tais conversas – usando computadores, fotocopiadoras, telefones e faxes da empresa – eram do foro pessoal e não profissional.
Em julho de 2007, a empresa informou-o de que as suas comunicações através da aplicação tinham sido monitorizadas e mostravam que ele a usara com intuitos pessoais.
Na altura em que foi confrontado com os factos pela chefia, o engenheiro negou tudo. Face a essa negação de tudo, a empresa apresentou-lhe cópias das mensagens em que falava da sua saúde e da sua vida sexual: foram-lhe, assim, apresentadas 45 páginas com as transcrições de todas as conversas que manteve entre 5 e 13 de julho daquele ano, sendo algumas delas com a esposa (algumas referências dizem namorada, noiva) ou com o irmão.
A empresa acabou por despedi-lo por ter violado a norma de usar meios da companhia para fins pessoais e ainda por tê-lo feito durante o horário de serviço.
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O engenheiro recorreu para os tribunais na Roménia, mas perdeu em todas as instâncias da justiça daquele país. A justiça romena decidiu a favor da organização, sendo que nenhum dos tribunais nacionais deu razão ao autor, com o mesmo argumento de que os recursos da empresa não devem ser utilizados para fins pessoais.
Na sequência disso, o engenheiro interpôs recurso para o TEDH, sediado em Estrasburgo. E este tribunal europeu reconheceu, em finais de 2016, que a empresa tinha violado a vida e a correspondência privadas do cidadão trabalhador, mas que isso não pusera em causa a norma da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, porque a vigilância tinha sido “limitada no seu alcance e proporcionada”. Pelo que também acabou por decidir a favor da firma.
É então mesmo verdade que o TEDH entendeu decidir que as conversas privadas online no trabalho podem ser razão para despedimento, ou seja, uma empresa pode, afinal, vigiar as conversas privadas via chat (online) dos seus trabalhadores e que estes podem, inclusivamente, vir a ser despedidos por isso.
Esta postura que, ao tempo, foi avançada pelo jornal britânico The Guardian, referia-se ao caso deste engenheiro romeno que, em 2007, fora despedido porque falava no chat do Messenger com a namorada ou noiva (há quem refira “esposa”).
No entanto, em abril do ano passado (2016), o Conselho da Europa definiu novas regras a adotar pelas empresas, públicas ou privadas, para reforçar a defesa da privacidade dos seus colaboradores. Uma das regras defendia a proibição de vigiar as redes sociais (Facebook e twitter) dos seus trabalhadores. Como é que o TEDH não teve em conta tal definição, ponderando a possibilidade de o juízo a proferir beneficiar o autor, antes trabalhador arguido e despedido, por o direito lhe vir a ser mais favorável?
Entretanto, o engenheiro romeno apresentou ao TEDH um pedido de revisão da decisão anterior. E, volvidos oito meses, o veredicto final é outro: a Justiça entende que os direitos de privacidade daquele cidadão e trabalhador foram violados. A este respeito, o comunicado do tribunal europeu, citado pela agência Reuters, esclarece:
“Os tribunais nacionais [romenos] falharam por não terem percebido se Barbulescu foi avisado da possibilidade de as suas comunicações estarem a ser monitorizadas; nem tiveram em conta o facto de não ter sido avisado sobre a natureza e extensão dessa monitorização, ou o grau de intrusão na sua vida privada e correspondência”.
Ainda de acordo com aquela agência noticiosa, não há evidências de que a conduta de Barbulescu tenha exposto a empresa a determinados riscos, nem que as suas conversas tenham afetado os seus sistemas operacionais.
Ora, a nova sentença da justiça europeia, que teoricamente vem, em certa medida, confirmar a postura anterior – ou seja, considerar “racional [que] um empregador queira verificar se os trabalhadores estão a realizar as suas tarefas durante o horário de trabalho” –, concluiu que os tribunais romenos falharam na proteção do direito à vida e à correspondência privadas de Bogdan Barbulescu, porque a empresa para a qual trabalhava o engenheiro não o informou previamente de que ia monitorizar as suas mensagens.
Assim, as empresas podem querer verificar que ou se os trabalhadores estão a realizar as suas tarefas durante o horário de trabalho, sem mesclas com a vida pessoal ou familiar, mas são obrigadas a satisfazer um conjunto de procedimentos, dos quais ressalta o dever de avisar previamente o funcionário os funcionários em causa.
O facto de, ao contrário do que tinha sido decidido anteriormente, as empresas só poderem aceder aos mails e outros meios de contacto dos seus trabalhadores depois de os avisarem configura um marco importante na evolução do direito sobre privacidade no trabalho.
Tinha razão o juiz português que votara votado vencido aquando da primeira decisão e que vê agora reconhecido o que pretendia ver clarificado.
Fique esclarecido também que os patrões não têm necessariamente ou em absoluto o direito de ler as mensagens dos seus empregados, ainda que eles utilizem o e-mail e os computadores de trabalho. No mínimo, o funcionário tem de ser avisado de que a empresa pode vir a controlar as suas comunicações, possivelmente lendo-as. Assim decidiu o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem hoje, num caso que durava há 10 anos e percorreu todo o trajeto dos tribunais romenos antes de ir parar a Estrasburgo (sede do TEDH), onde já tinha sido objeto de uma primeira decisão no ano passado.
O caso diz respeito, como ficou dito, a Bogdan Barbulescu, um engenheiro informático romeno que foi despedido em 2007 por ter usado para comunicações privadas o seu “Yahoo! Messenger” da empresa, quando esta aplicava uma política estrita na matéria, proibindo formalmente os empregados de se servirem do Messenger para quaisquer fins que não fossem profissionais. E Barbulescu infringiu a política ao trocar mensagens com o seu irmão e a sua namorada ou noiva.
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Estão em causa alguns direitos e deveres. Assim, o art.º 12.º da Declaração Universal do Direitos do Homem estabelece a proteção da lei contra as “intromissões arbitrárias” na vida privada, na família, no domicílio ou na correspondência, bem como contra os ataques à honra e reputação da pessoa. Por seu turno, o art.º 8.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem consagra o respeito pela vida privada e familiar de qualquer pessoa, bem como do seu domicílio e correspondência. Também o n.º 1 do art.º 26.º da CRP (Constituição) protege o direito “à reserva da intimidade da vida privada e familiar”. Porém, estes direitos podem ser limitados pelo legislador ordinário nos casos expressamente tipificados e com caráter abstrato, universal e proporcional. E, nesta perspetiva, as leis laborais, enquanto estabelecem, nos ternos constitucionais, o direito ao acesso ao trabalho e ao seu exercício estável, definem os direitos dos trabalhadores e os do empregador, como os deveres de ambas as partes. E um destes direitos envolve o respeito pela vida pessoal e familiar. Ninguém suportaria que a entidade patronal entrasse abusivamente no domicílio do trabalhador, se intrometesse nas questões familiares, lesse uma carta pessoal que viesse parar às instalações da empresa ou não compreendesse que o trabalhador seja sensível a graves ou inadiáveis problemas de assistência à família.
Mas também nenhum de nós entende ou tolera que o trabalhador não se empenhe constante e conscientemente na prestação do trabalho, respeitando as políticas da empresa ou serviço e utilizando adequadamente as instalações e equipamentos.
Ora, a colocação de meios informáticos de empresa a uso do trabalhador comporta riscos. E estão neste caso a degradação e o abuso para fins pessoais, exatamente como a utilização das instalações. Podem tomar-se refeições, fazer reuniões e desenvolver eventualmente outras atividades nas instalações, não necessariamente profissionais, desde que a entidade patronal autorize.
Em situações excecionais, pode receber-se uma visita de familiar ou de amigo, mas não pode transformar-se em regra, muito menos em abuso. Nesta linha de contenção, não se vê que uma comunicação de serviço não possa eventualmente vir acompanhada de uma mensagem pessoal. Ninguém irá exigir que o trabalhador faça uma comunicação oficiosa a um amigo ou familiar e, entretanto, mude de equipamento de empresa para equipamento pessoal para introduzir um aspeto pessoal ou familiar. Nem na tropa isso acontece!
No caso de infração, há que avaliar a sério se a situação se tornou abusiva e com alguma permanência, ou configurando simples reincidência, e se prejudicou o normal funcionamento dos equipamentos e comunicações de serviço.
Quanto à empresa, se pretende exercer o “direito” de proibição do uso de instalações e/ou equipamentos para uso pessoal, deve publicitá-lo pelos meios normais de comunicação dentro da empresa e estender tal proibição a todos e não apenas a alguns. O que implicará a sanção prevista e proporcionada em caso de os trabalhadores serem surpreendidos em infração ou se esta for denunciada e inequivocamente comprovada. E, se a empresa quer fazer a monitorização das comunicações, deve publicitá-lo e avisar prévia e devidamente cada funcionário que tenha a probabilidade de vir a ser objeto de tal monitorização.
Resta saber se os empresários estarão mesmo interessados em tratar todos por igual nestas matérias. No caso vertente, o engenheiro informático foi despedido mesmo só pelos motivos expostos? É que todos somos iguais, mas uns são mais iguais que outros. E a Roménia não é modelo a seguir de forma acrítica!

2017.09.05 – Louro de Carvalho 

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