A comunicação social destaca hoje, dia 5 de setembro, nas suas parangonas
que “empresas têm direito a ler conversas dos funcionários em horário de
trabalho”. Quem ler isto demasiado depressa pode pensar que se trata de um
direito absoluto, até porque resulta de um acórdão do TEDH (Tribunal
Europeu dos Direitos do Homem).
Segundo o Dinheiro Vivo,
aquele tribunal europeu decidiu autorizar as empresas a monitorizar o conteúdo
das mensagens dos seus trabalhadores durante o horário de trabalho, sejam elas
feitas pelo e-mail profissional, seja
pelos telemóveis da empresa ou até pelas mais inovadoras formas de comunicação
como o WhatsApp ou o Facebook Messenger. Porém, apesar do veredicto final, as
organizações que escolham controlar os comportamentos dos seus empregados terão
de satisfazer uma série de procedimentos (de modo a evitar abusos) e, além disso, avisá-los com antecedência da decisão.
O diário espanhol El
País, que avança a notícia, fala numa “decisão crucial” do TEDH para os
limites da privacidade no local de trabalhado, sobretudo se for considerado o
facto de este ser o mais alto órgão judicial europeu no que diz respeito a
matérias como a liberdade civil e cuja jurisprudência é – e deve ser – acompanhada
pelos tribunais nacionais.
Na verdade, o TEDH confirma, hoje, dia 5 de setembro, a decisão tomada em finais
de 2016, embora com modelação um pouco diferente, no sentido do reconhecimento
do direito das empresas a ver a correspondência privada dos funcionários, mas necessariamente
com o aviso prévio de que tal correspondência poderá ser monitorizada.
Esta decisão
do tribunal de Estrasburgo foi, segundo fontes da instituição citadas pelo El País, tomada por maioria – com 11
votos a favor e 6 contra – e faz jurisprudência sobre os limites da privacidade
nos locais de trabalho e num tempo em que “todos vivemos ligados” e a separação
entre vida privada e profissional é cada vez mais ténue.
Está na base
de tal decisão o despedimento, há 10 anos, de um cidadão na Roménia por ter
usado uma aplicação de mensagens eletrónicas – do tipo WhatsApp ou Facebook
Messenger – para comunicar com a família.
De facto, o
engenheiro Bogdan Barbulescu, de 37 anos, trabalhava como responsável de vendas
e, por sugestão da empresa, criou uma conta naquele serviço de mensagens
instantâneas para responder aos clientes, mas acabou por ser ‘espiado’ durante quase duas semanas
pelos patrões, que concluíram que as tais conversas – usando computadores,
fotocopiadoras, telefones e faxes da empresa – eram do foro pessoal e não
profissional.
Em julho de
2007, a empresa informou-o de que as suas comunicações através da aplicação
tinham sido monitorizadas e mostravam que ele a usara com intuitos pessoais.
Na
altura em que foi confrontado com os factos pela chefia, o engenheiro negou
tudo. Face a essa negação de tudo, a
empresa apresentou-lhe cópias das mensagens em que falava da sua saúde e da sua
vida sexual:
foram-lhe, assim, apresentadas 45 páginas com as transcrições de todas as
conversas que manteve entre 5 e 13 de julho daquele ano, sendo algumas delas com
a esposa (algumas referências dizem namorada, noiva…) ou com o irmão.
A
empresa acabou por despedi-lo
por ter violado a norma de usar meios da companhia para fins pessoais e ainda
por tê-lo feito durante o horário de serviço.
***
O engenheiro
recorreu para os tribunais na Roménia, mas perdeu em todas as instâncias da
justiça daquele país.
A justiça romena decidiu a favor da organização, sendo que nenhum dos tribunais
nacionais deu razão ao autor, com o mesmo argumento de que os recursos da
empresa não devem ser utilizados para fins pessoais.
Na sequência
disso, o engenheiro interpôs recurso para o TEDH, sediado em Estrasburgo. E
este tribunal europeu reconheceu, em finais de 2016, que a empresa tinha
violado a vida e a correspondência privadas do cidadão trabalhador, mas que isso
não pusera em causa a norma da Convenção
Europeia dos Direitos do Homem, porque a vigilância tinha sido “limitada no
seu alcance e proporcionada”. Pelo que também acabou por decidir a favor da firma.
É então mesmo verdade que o TEDH entendeu decidir que
as conversas privadas online no
trabalho podem ser razão para despedimento, ou seja, uma empresa pode, afinal,
vigiar as conversas privadas via chat
(online) dos seus trabalhadores e que estes podem, inclusivamente, vir a ser
despedidos por isso.
Esta postura que, ao tempo, foi avançada pelo jornal
britânico The Guardian, referia-se ao caso deste engenheiro
romeno que, em 2007, fora despedido porque falava no chat do Messenger com a
namorada ou noiva (há
quem refira “esposa”).
No entanto, em abril do ano passado (2016), o Conselho da
Europa definiu novas regras a adotar pelas empresas, públicas ou privadas,
para reforçar a defesa da privacidade dos seus colaboradores. Uma das regras
defendia a proibição de vigiar as redes sociais (Facebook e twitter) dos seus trabalhadores. Como é que o TEDH não teve em conta
tal definição, ponderando a possibilidade de o juízo a proferir beneficiar o
autor, antes trabalhador arguido e despedido, por o direito lhe vir a ser mais favorável?
Entretanto, o engenheiro romeno apresentou ao TEDH um pedido
de revisão da decisão anterior. E, volvidos oito meses, o veredicto final é
outro: a Justiça entende que os direitos de privacidade daquele cidadão e
trabalhador foram violados. A este respeito, o comunicado do tribunal europeu,
citado pela agência Reuters,
esclarece:
“Os
tribunais nacionais [romenos] falharam por não terem percebido se Barbulescu
foi avisado da possibilidade de as suas comunicações estarem a ser
monitorizadas; nem tiveram em conta o facto de não ter sido avisado sobre a
natureza e extensão dessa monitorização, ou o grau de intrusão na sua vida
privada e correspondência”.
Ainda de acordo com aquela agência noticiosa, não há
evidências de que a conduta de Barbulescu tenha exposto a empresa a
determinados riscos, nem que as suas conversas tenham afetado os seus sistemas
operacionais.
Ora, a nova
sentença da justiça europeia, que teoricamente vem, em certa medida, confirmar
a postura anterior – ou seja, considerar “racional [que] um empregador queira verificar se os trabalhadores
estão a realizar as suas tarefas durante o horário de trabalho” –, concluiu que
os tribunais romenos falharam na proteção do direito à vida e à correspondência
privadas de Bogdan Barbulescu, porque a empresa para a qual trabalhava o
engenheiro não o informou previamente de que ia monitorizar as suas mensagens.
Assim, as empresas podem querer verificar que ou se os
trabalhadores estão a realizar as suas tarefas durante o horário de trabalho,
sem mesclas com a vida pessoal ou familiar, mas são obrigadas a satisfazer um
conjunto de procedimentos, dos quais ressalta o dever de avisar previamente o
funcionário os funcionários em causa.
O facto de, ao contrário do que
tinha sido decidido anteriormente, as empresas só poderem aceder aos mails e
outros meios de contacto dos seus trabalhadores depois de os avisarem configura
um marco importante na evolução do direito sobre privacidade no trabalho.
Tinha razão o juiz português que
votara votado vencido aquando da primeira decisão e que vê agora reconhecido o
que pretendia ver clarificado.
Fique
esclarecido também que os patrões não têm necessariamente ou em absoluto o
direito de ler as mensagens dos seus empregados, ainda que eles utilizem o e-mail e os computadores de trabalho. No
mínimo, o funcionário tem de ser avisado de que a empresa pode vir a controlar
as suas comunicações, possivelmente lendo-as. Assim decidiu o Tribunal Europeu
dos Direitos do Homem hoje, num caso que durava há 10 anos e percorreu todo o
trajeto dos tribunais romenos antes de ir parar a Estrasburgo (sede do TEDH), onde já tinha sido objeto de uma
primeira decisão no ano passado.
O caso
diz respeito, como ficou dito, a Bogdan Barbulescu, um engenheiro informático
romeno que foi despedido em 2007 por ter usado para comunicações privadas o seu
“Yahoo! Messenger” da empresa, quando
esta aplicava uma política estrita na matéria, proibindo formalmente os
empregados de se servirem do Messenger
para quaisquer fins que não fossem profissionais. E Barbulescu infringiu a
política ao trocar mensagens com o seu irmão e a sua namorada ou noiva.
***
Estão
em causa alguns direitos e deveres. Assim, o art.º 12.º da Declaração Universal
do Direitos do Homem estabelece a proteção da lei contra as “intromissões
arbitrárias” na vida privada, na família, no domicílio ou na correspondência, bem
como contra os ataques à honra e reputação da pessoa. Por seu turno, o art.º
8.º da Convenção Europeia dos Direitos do
Homem consagra o respeito pela vida privada e familiar de qualquer pessoa,
bem como do seu domicílio e correspondência. Também o n.º 1 do art.º 26.º da
CRP (Constituição) protege o direito “à reserva da
intimidade da vida privada e familiar”. Porém, estes direitos podem ser
limitados pelo legislador ordinário nos casos expressamente tipificados e com
caráter abstrato, universal e proporcional. E, nesta perspetiva, as leis
laborais, enquanto estabelecem, nos ternos constitucionais, o direito ao acesso
ao trabalho e ao seu exercício estável, definem os direitos dos trabalhadores e
os do empregador, como os deveres de ambas as partes. E um destes direitos envolve
o respeito pela vida pessoal e familiar. Ninguém suportaria que a entidade patronal
entrasse abusivamente no domicílio do trabalhador, se intrometesse nas questões
familiares, lesse uma carta pessoal que viesse parar às instalações da empresa
ou não compreendesse que o trabalhador seja sensível a graves ou inadiáveis problemas
de assistência à família.
Mas também
nenhum de nós entende ou tolera que o trabalhador não se empenhe constante e conscientemente
na prestação do trabalho, respeitando as políticas da empresa ou serviço e
utilizando adequadamente as instalações e equipamentos.
Ora, a
colocação de meios informáticos de empresa a uso do trabalhador comporta riscos.
E estão neste caso a degradação e o abuso para fins pessoais, exatamente como a
utilização das instalações. Podem tomar-se refeições, fazer reuniões e desenvolver
eventualmente outras atividades nas instalações, não necessariamente profissionais,
desde que a entidade patronal autorize.
Em situações
excecionais, pode receber-se uma visita de familiar ou de amigo, mas não pode
transformar-se em regra, muito menos em abuso. Nesta linha de contenção, não se
vê que uma comunicação de serviço não possa eventualmente vir acompanhada de uma
mensagem pessoal. Ninguém irá exigir que o trabalhador faça uma comunicação
oficiosa a um amigo ou familiar e, entretanto, mude de equipamento de empresa
para equipamento pessoal para introduzir um aspeto pessoal ou familiar. Nem na
tropa isso acontece!
No
caso de infração, há que avaliar a sério se a situação se tornou abusiva e com
alguma permanência, ou configurando simples reincidência, e se prejudicou o
normal funcionamento dos equipamentos e comunicações de serviço.
Quanto
à empresa, se pretende exercer o “direito” de proibição do uso de instalações e/ou
equipamentos para uso pessoal, deve publicitá-lo pelos meios normais de
comunicação dentro da empresa e estender tal proibição a todos e não apenas a
alguns. O que implicará a sanção prevista e proporcionada em caso de os trabalhadores
serem surpreendidos em infração ou se esta for denunciada e inequivocamente comprovada.
E, se a empresa quer fazer a monitorização das comunicações, deve publicitá-lo
e avisar prévia e devidamente cada funcionário que tenha a probabilidade de vir
a ser objeto de tal monitorização.
Resta saber
se os empresários estarão mesmo interessados em tratar todos por igual nestas
matérias. No caso vertente, o engenheiro informático foi despedido mesmo só
pelos motivos expostos? É que todos somos iguais, mas uns são mais iguais que outros.
E a Roménia não é modelo a seguir de forma acrítica!
2017.09.05 – Louro de
Carvalho
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