É efetivamente com o escopo de prosseguir a
renovação da vida litúrgica que o Papa Francisco fez publicar, a 9 de setembro
pp, a carta apostólica “Magnum principium”
na forma de Motu Proprio, datado de 3
do mesmo mês, com que
modificou o cânon 838 do CIC (Código de Direito Canónico, Codex Iuris Canonici) para
entrar em vigor no próximo dia 1 de outubro.
***
A
justificação
No texto
preambular, fica plasmada a justificação que se sintetiza nos termos seguintes:
O documento
retoma o magno princípio, confirmado pelo Concílio Ecuménico Vaticano que induz
a assimilação da oração litúrgica, convenientemente adaptada à compreensão do
povo, e à luz do qual se exige aos Bispos a tarefa de introduzir a língua
vulgar na liturgia e de preparar e aprovar as versões dos livros litúrgicos.
Apesar de ciente do grande sacrifício da perda parcial da língua, usada em todo
o mundo ao longo dos séculos, a Igreja latina abriu de boa mente a porta a que
as versões, como partes dos próprios ritos, se tornassem voz da Igreja que
celebra os mistérios divinos. Entretanto, colocavam-se-lhe dois problemas: dum
lado, a necessidade de “unir o bem dos fiéis de qualquer idade e cultura e o
seu direito a uma participação consciente e ativa nas celebrações litúrgicas
com a unidade substancial do Rito Romano”; do outro, a dificuldade das línguas
vulgares em tornar-se línguas litúrgicas (só muito progressivamente), esplendorosas à semelhança do latim litúrgico “por
elegância de estilo e pela gravidade dos conceitos a fim de alimentar a fé”. E
era este o escopo das leis litúrgicas, instruções, circulares, indicações e
confirmações dos livros em língua vernácula emanadas pela Santa Sé já durante o
Concílio, no pós-Concílio e mesmo depois das normas estabelecidas no CIC, de
1983.
Os critérios
indicados foram e permanecem úteis, pelo que, dentro do possível, devem ser
seguidos pelas Comissões litúrgicas como instrumentos adequados para que, na
variedade das línguas, a comunidade litúrgica alcance um estilo expressivo
adequado e congruente com cada uma das partes, mantendo a integridade e a
fidelidade cuidadosa, sobretudo na tradução de textos de maior relevância em
cada livro litúrgico.
Na verdade,
texto litúrgico, como sinal ritual, é meio de comunicação oral. Mas para os
crentes também a palavra é um mistério: pois, quando são proferidas as
palavras, sobretudo quando se lê a Sagrada Escritura, Deus fala aos homens,
Cristo no Evangelho fala ao seu povo que, por si ou mediante o celebrante,
responde, com a oração, ao Senhor no Espírito Santo. Assim, a tradução dos
textos legislativos e bíblicos para a liturgia da Palavra visa “anunciar aos
fiéis a palavra de salvação em obediência à fé e exprimir a oração da Igreja ao
Senhor”. Por isso, é preciso comunicar fielmente a um povo em concreto, pela
sua língua, o que a Igreja pretende comunicar por meio da língua latina. Mesmo
se nem sempre a fidelidade pode ser julgada por simples palavras, mas no
contexto de toda a ação comunicacional e segundo o género literário, alguns
termos peculiares devem ser considerados também no contexto da íntegra fé
católica, pois cada tradução dos textos litúrgicos deve ser congruente com a
doutrina.
É normal
que, ao longo do tempo, tenham surgido dificuldades entre as Conferências Episcopais
e a Sé Apostólica. Mas para a validade, também no futuro, das decisões do
Concílio sobre o uso das línguas vulgares na Liturgia, torna-se necessária a
constante colaboração, cheia de “confiança recíproca, vigilante e criativa”, entre
as Conferências Episcopais e a Congregação para o Culto Divino e a Disciplina
dos Sacramentos. Assim, para que a renovação de toda a vida litúrgica continue,
“pareceu oportuno que alguns princípios transmitidos desde o tempo do Concílio
sejam reafirmados e postos em prática de maneira mais clara”.
Nesse
sentido, deve-se prestar atenção à utilidade e ao bem dos fiéis, mas sem esquecer
o direito e o encargo das Conferências Episcopais que, juntamente com as
Conferências Episcopais de regiões que usam a mesma língua e com a Sé
Apostólica, têm em garantir e estabelecer que, salvaguardada a índole de cada
língua, seja dado plena e fielmente o sentido do texto original e que os livros
traduzidos, até depois das adaptações, resplandeçam pela unidade ao Rito Romano.
É justamente para tornar mais fácil e frutuosa a colaboração entre a Sé
Apostólica e as Conferências Episcopais que deve ser prestado aos fiéis que o
Papa dispõe que a disciplina canónica vigente no cân. 838 do CIC seja tornada
mais clara, para que, segundo o expresso na Constituição Sacrosanctum Concilium (em especial nos artigos 36 §§ 3.4,
40 e 63), de 1963, e na Carta Apostólica
Motu Proprio Sacram Liturgiam (n. IX), seja mais clara a competência da Sé Apostólica
quanto a traduções dos livros litúrgicos e adaptações mais profundas, entre as
quais se incluem eventuais novos textos a serem inseridos neles, estabelecidos
e aprovados pelas Conferências Episcopais.
***
As normas
modificadas
Assim, no
futuro, o cân. 838 será lido como segue (a negrito vão as alterações
introduzidas em relação ao texto em vigor até 1 de outubro):
“Cân. 838 – §1. O ordenamento
da sagrada liturgia depende unicamente da autoridade da Igreja: compete, de
modo próprio, à Sé Apostólica, e, segundo as normas do direito, ao Bispo
diocesano.
§ 2 – Pertence à Sé Apostólica
ordenar a liturgia sagrada da Igreja Universal, publicar os livros
litúrgicos, rever as adaptações aprovadas, segundo as normas do
direito, pela Conferência Episcopal, e vigiar para que em toda a parte se
observem fielmente as normas liturgias.
§ 3 – Compete às Conferências
Episcopais preparar fielmente as versões dos livros litúrgicos
nas línguas vernáculas, convenientemente adaptadas dentro dos limites
fixados, aprová-las e publicar os livros litúrgicos, para as regiões da
sua competência, após a confirmação da Sé Apostólica.
§ 4 – Ao Bispo diocesano, na Igreja
que lhe foi confiada, pertence, dentro dos limites da sua competência, dar
normas em matéria litúrgica, que todos estão obrigados a observar.”.
Por consequência,
devem ser interpretados em consonância quer o art. 64 § 3 da Constituição
Apostólica Pastor bonus quer as
outras leis, em particular as que estão contidas nos livros litúrgicos, acerca
das suas versões. De igual modo, se dispõe que a Congregação para o Culto
Divino e a Disciplina dos Sacramentos modifique o próprio “Regulamento” com base na nova disciplina, ajude as Conferências
Episcopais a desempenhar a sua tarefa e se comprometa a promover cada vez mais
a vida litúrgica da Igreja Latina.
***
Algumas reações
O
Secretariado Nacional de Liturgia da Conferência Episcopal Portuguesa, comentou:
“O propósito da mudança é definir melhor o papel da Sé Apostólica e as
Conferências Episcopais, que são chamadas a trabalhar em diálogo uns com os
outros, respeitando as suas próprias competências, que são diferentes e
complementares, tanto para a tradução de livros latinos (edição típica) quanto
para possíveis adaptações de textos e ritos. Tudo isso, ao serviço da oração
litúrgica do povo de Deus”.
Mons. Arthur
Roche, Secretário da Congregação do Culto Divino e da Disciplina dos
Sacramentos, publicou uma Nota a
ilustrar as fontes normativas que originaram a alteração ao cân. 838, de que, a
seguir, se dá conta.
***
Nota sobre o Cânone 838 à luz de fontes conciliares e pós-conciliares
Aquando da
publicação do Magunm principium, com
o qual Francisco estabelece variações nos §§ 2 e 3 do cân. 838 do CIC, o
Secretário da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos
comenta as fontes que fundamentam tais parágrafos, considerando a formulação
até agora em vigor e a nova.
O texto hodierno:
§ 2. “Apostolicae Sedis est sacram
liturgiam Ecclesiae universae ordinare, libros liturgicos edere eorumque versiones
in linguas vernaculas recognoscere, necnon advigilare ut ordinationes
liturgicae ubique fideliter observentur”.
§ 3. “Ad Episcoporum conferentias
spectat versiones in linguas vernaculas, convenienter intra limites in ipsis
libris liturgicis definitos aptatas, parare easque edere, praevia recognitione
Sanctae Sedis.
Para o § 2,
as referências são o n.º 21 da instrução Inter Oecumenici (26 de setembro de 1964) e o cân. 1257 do CIC, de 1917.
Para o § 3, são a Sacrosanctum
Concilium n. 22 § 2 e n. 36 §§ 3-4; S. Congr. pro Sacramentis et Cultu
Divino, Epist. Decem iam anos (5 de junho de 1976); S. Congr. pro Doctrina Fidei, Ecclesiae pastorum (19 de março de 1975),
art. 3.
Apesar de as
fontes terem mero valor indicativo e não serem completas, podem-se fazer
algumas anotações a seu respeito e a propósito daquilo em que têm implicações.
Assim, antes
de mais, acerca do § 2 do cân. 838, é de referir:
O n. 21 da
Instrução Inter Oecumenici pertence ao cap. I, VI. De
competenti auctoritate in re litúrgica (na Const. art. 22) e reza:
“Apostolicae Sedis est tum libros
liturgicos generales instaurare atque approbare, tum sacram Liturgiam in iis
quae universam Ecclesiam respiciunt ordinare, tum Acta et deliberationes
auctoritatis territorialis probare seu confirmare, tum eiusdem auctoritatis
territorialis propositiones et petitiones accipere”.
Parece clara a
pressuposta igualdade entre o verbo “recognoscere”, do § 2 do cân. 838, e a
expressão “probare seu confirmare”, da Inter
Oecumenici. Esta última expressão foi desejada pela Comissão litúrgica do
Concílio Vaticano II para substituir a terminologia derivante do verbo
“recognoscere” (“actis
recognitis”), com
referência ao cân. 250 § 4 (cf cân. 304 § 2)
do CIC, de 1917, como foi explicado aos Padres conciliares na Relatio e
por eles votado no n. 36 § 3 da
Sacrosanctum Concilium na forma “actis ab Apostolica Sede probatis seu
confirmatis”. Pode-se notar também que o n. 21 da Inter Oecumenici respeita
a todos os atos das autoridades territoriais, enquanto neste ponto o CIC o
aplica especificamente às “interpretationes textuum liturgicorum”, matéria que
a Inter Oecumenici trata explicitamente no n. 40.
Em relação ao
do § 3 do cân. 838, a referência à Sacrosanctum
Concilium n. 22 § 2 é
pertinente. E quanto à referência ao n. 36 §§ 3-4 desta (o § 3 trata “de usu et modo linguae
vernaculae statuere, actis ab Apostolica Sede probatis seu confirmatis” e o § 4
da “conversio textus latini in linguam vernaculam in Liturgia adhibenda, a
competenti auctoritate ecclesiastica territoriali, de qua supra, approbari
debet”) é evidente que
para a tradução não se pede uma probatio seu confirmatio nem
uma recognitio em estreito sentido jurídico, como exige o cân.
455 § 2. A vicissitude em relação a um trecho do Motu Proprio Sacram Liturgiam n. IX (25 de janeiro de 1964), que pela reação dos Padres
Conciliares foi emendado na Acta Apostolicae Sedis, não terá sido
considerada adequadamente. No Sacram
Liturgiam, publicado em L’Osservatore
Romano, de 29 de janeiro de 1964, lia-se:
“...
populares interpretationes, a competente auctoritate ecclesiastica territoriali
propositas, ab Apostolica Sede esse rite recognoscendas atque
probandas”.
Mas na Acta Apostolicae Sedis foi
adotada a terminologia conciliar:
“...populares
interpretationes, a competente auctoritate ecclesiastica territoriali
conficiendas et approbandas esse, ad normam art. 36, §§ 3 et 4; acta vero huius
auctoritatis, ad normam eiusdem art. 36, § 3, ab Apostolica Sede esse rite
probanda seu confirmanda”.
Portanto, o Sacram Liturgiam distinguia a
aprovação das traduções como tais por parte das autoridades territoriais por
decreto que as tornava obrigatórias e o facto que tal ato devia ser “probatus seu confirmatus” pela Sé
Apostólica. Ademais, o Sacram
Liturgiam acrescenta:
“Quod
ut semper servetur praescribimus, quoties liturgicus quidam textus latinus a
legitima, quam diximus, auctoritate in linguam vernaculam convertetur”.
A prescrição
refere-se aos dois momentos distintos: o conficere et approbare uma
tradução; e o ato de a tornar obrigatória com a publicação do livro que a
contém.
A referência
cruzada com a Epist. Decem iam annos da S. Congregatio pro
Sacramentis et Cultu Divino é pertinente, mas nunca usa o termo “recognoscere”,
mas sim os termos “probare, confirmare, confirmatio”. Quanto ao Ecclesiae
pastorum da S. Congregatio pro Doctrina Fidei, art. 3 (composto de três números), só o n. 1 se refere à questão,
rezando:
“Libri
liturgici itemque eorum versiones in linguam vernaculam eorumve partes ne
edantur nisi de mandato Episcoporum Conferentiae atque sub eiusdem vigilantia,
praevia confirmatione Apostolicae Sedis”.
O n. 2
concerne às reedições; e o n. 3, aos livros de oração. Porém, é de notar que às
Conferências Episcopais se atribuem a vigilância e o mandato, enquanto à Sé
Apostólica a “praevia confirmatio” acerca do livro que se edita, e não
precisamente uma “recognitio” da versão,
como ao contrário refere o cân. 838.
O texto novo:
A modificação
dos §§ 2 e 3 do cân. 838 pelo Magnum principium
requer a seguinte formulação:
§ 2. “Apostolicae Sedis est sacram
liturgiam Ecclesiae universae ordinare, libros liturgicos edere, aptationes,
ad normam iuris a Conferentia Episcoporum approbatas, recognoscere, necnon
advigilare ut ordinationes liturgicae ubique fideliter observentur”.
§ 3. “Ad Episcoporum Conferentias
spectat versiones librorum liturgicorum in linguas vernaculas fideliter
et convenienter intra limites definitos accommodatas parare et approbare atque libros
liturgicos, pro regionibus ad quas pertinent, post confirmationem Apostolicae
Sedis edere”.
Assim, o § 2
atinge as “aptationes” (já
não as “versiones”, matéria do § 3), isto é, textos e elementos que aparecem na editio
typica latina, assim como as “profundiores aptationes” contempladas na Sacrosanctum Concilium (n. 40) e reguladas pela Instrução Varietates
legitimae sobre a liturgia romana e a inculturação (25 de janeiro de 1994); aprovadas pela Conferência
Episcopal, as “aptationes” devem ter a “recognitio” da Sé Apostólica. A
referência é à Sacrosanctum Concilium n.
36 § 3. O § 2 modificado conserva, entre as suas fontes, o cân. 1257 do CIC de
1917 e acrescenta a referência à Instrução Varietates legitimae que
trata da aplicação dos nn. 39 e 40 da Constituição Sacrosanctum Concilium, para o que se exige uma verdadeira
“recognitio”.
O § 3
refere-se às “versiones” dos textos que, especificado melhor, devem ser feitas
“fideliter” e aprovadas pelas Conferências Episcopais.
A referência
é à Sacrosanctum Concilium n.
36 § 4 e também à analogia com o cân. 825 § 1 sobre a versão da Sagrada
Escritura. Tais versões são editadas nos livros litúrgicos, depois de ter
recebido a “confirmatio” da Sé Apostólica, como disposto pelo Sacram Liturgiam, n. IX.
A formulação
anterior no § 3 do cân. 838: “intra limites in ipsis libris liturgicis
definitos aptatas”, devedora da Sacrosanctum
Concilium n. 39 (“Intra limites in edititionibus
typicis librorum liturgicorum statutos... aptationes definire”), concernente às “aptationes” e não
às “versiones” das quais agora trata este parágrafo, é apresentada agora com a
expressão “intra limites definitos
accommodatas”, segundo a terminologia do n. 392 do Institutio
Generalis Missalis Romani, o que permite oportuna distinção em relação às
“aptationes” nomeadas no § 2.
E o § 3
aperfeiçoado continua a fundar-se na Sacrosanctum
Concilium n. 22
§ 2; n. 36 §§ 3 – 4; S. Congr. pro Sacramentis et Cultu Divino, Epist. Decem
iam anos (5 de junho
de 1976); S. Congr. pro
Doctrina Fidei, Ecclesiae pastorum (19 de março de 1975), art. 3, com o acréscimo da
referência aos nn. 391 e 392 do Institutio Generalis Missalis Romani (ed. typica tertia), mas evitando os termos
“recognoscere, recognitis”, de modo que o ato da Sé Apostólica relativo às
versões, preparadas pelas Conferências Episcopais com particular fidelidade ao
sentido do texto latino (ver
o acréscimo do “fideliter”), não possa ser equiparado à disciplina do cân. 455, mas incluído na
ação de uma “confirmatio” (como expressa tanto a Decem iam annos como a Ecclesiae pastorum, art. 3).
A
“confirmatio” é um ato de autoridade com o qual a Congregação para o Culto
Divino e a Disciplina dos Sacramentos ratifica a aprovação dos Bispos, deixando
a responsabilidade da tradução, presumidamente fiel, ao munus doutrinal
e pastoral da Conferência dos Bispos.
Em suma,
realizada na base da confiança recíproca, a “confirmatio” supõe a positiva
avaliação da fidelidade e da congruência dos textos produzidos em relação ao
texto típico latino, tendo em conta sobretudo os textos de maior importância (por exemplo as fórmulas sacramentais,
que exigem a aprovação do Santo Padre, o Rito da Missa, as orações eucarísticas
e de ordenação, que requerem uma revisão esmerada). E, como recordado no presente Motu Proprio, as mudanças do cân. 838, §§ 2 e 3 têm consequências
no art. 64 § 3 da Constituição Apostólica Pastor
bonus, no Institutio Generalis Missalis Romani e nos Praenotanda dos
livros litúrgicos, nos lugares que se ocupam da matéria das traduções e das
adaptações.
Uma chave de leitura
Comentário do Secretário da Congregação para o Culto Divino e Disciplina
dos Sacramentos
***
O presente Motu Proprio muda a formulação de normas
do CIC atinentes à edição dos livros litúrgicos nas línguas vernáculas,
designadamente o texto do cân. 838. A exposição dos motivos é oferecida pelo
próprio documento, que recorda e expõe os princípios que estão na base da
tradução dos textos litúrgicos típicos em língua latina e as instâncias
implicadas nesse delicado trabalho. Sendo oração da Igreja, a liturgia é de
facto regulada pela autoridade eclesial.
Considerando
a importância dos desafios, já os padres Vaticano II tinham interpelado quer a
Sé apostólica quer as conferências episcopais. De facto, o compromisso de
providenciar traduções litúrgicas foi guiado por normas e instruções
específicas do dicastério competente, em particular Comme le prévoit
(25 de janeiro de 1969) e, depois do CIC de 1983, Liturgiam authenticam (28
de março de 2001), ambos
publicados, em fases diferentes, para responder a problemas concretos
evidenciados ao longo do tempo e suscitados pelo trabalho complexo que a
tradução dos textos litúrgicos comporta. Ao contrário, relativamente ao âmbito
da inculturação, a matéria foi regulada pela instrução Varietates legitimae
(25 de janeiro de 1994).
Considerada a
experiência, agora, segundo o Papa,
“Pareceu
oportuno que alguns princípios transmitidos desde o período do Concílio sejam
reafirmados de forma mais clara e postos em prática”.
Portanto, foi
considerando o caminho percorrido e olhando o futuro, com base na constituição Vaticano
II Sacrosanctum Concilium, que o
Pontífice especificou a disciplina vigente introduzindo variações ao cânone 838
do CIC, com a finalidade de definir melhor os papéis da Sé apostólica e
das conferências episcopais, chamadas a trabalhar em diálogo entre elas, no
respeito da própria competência, diferente e complementar, relativamente à
tradução dos livros típicos latinos, bem como das eventuais adaptações, que
podem dizer respeito aos textos e aos ritos – isto “ao serviço da oração
litúrgica do povo de Deus”. Em particular, na nova formulação do cânone 838, faz-se
distinção mais adequada em relação ao papel da Sé apostólica, entre o âmbito
próprio da recognitio e o da confirmatio, no
respeito de quanto compete às conferências episcopais, tendo em conta a sua
responsabilidade pastoral e doutrinal e os seus limites de ação.
A “recognitio”, referida no § 2,
implica o processo de reconhecimento da parte da Sé apostólica das legítimas
adaptações litúrgicas, inclusive as “mais profundas”, que as conferências podem
estabelecer e aprovar para os seus territórios, nos limites consentidos.
Portanto, no terreno de encontro entre liturgia e cultura, a Sé apostólica é
chamada a recognoscere, ou rever e avaliar estas adaptações, em
virtude da salvaguarda da unidade substancial do rito romano. A referência
nesta matéria são os números 39-40 da Sacrosanctum
Concilium; e a sua aplicação, nos modos indicados ou não nos livros
litúrgicos, é regulamentada pela instrução Varietates legitimae.
Ao invés,
a “confirmatio” –
termo adotado no Motu Proprio Sacram
Liturgiam n. IX (25
de janeiro 1964) –
incide nas traduções dos textos litúrgicos que, de acordo com a Sacrosanctum Concilium (n. 36 § 4), compete às conferências episcopais
preparar e aprovar; o § 3 do cânone 838 especifica que as versões devem ser
realizadas fideliter conforme os textos originais, tendo em
conta a preocupação principal da instrução Liturgiam authenticam. Com efeito, evocando o direito e
responsabilidade da tradução confiada às conferências episcopais, o Motu Proprio recorda que as conferências
“Devem
fazer com que e, ao mesmo tempo, estabelecer que, ao salvaguardar a natureza de
cada língua, seja dado plena e fielmente o sentido do texto original”.
Portanto,
a confirmatio da Sé apostólica não se apresenta como uma
intervenção alternativa de tradução, mas como um ato autoritativo com o qual o competente
dicastério ratifica a aprovação dos bispos, supondo uma avaliação positiva da
fidelidade e congruência dos textos produzidos em relação à edição típica sobre
a qual se funda a unidade do rito e tendo em conta sobretudo os textos de maior
importância, especialmente as fórmulas sacramentais, as orações eucarísticas,
as orações de ordenação, o rito da missa, e assim por diante.
A modificação
do CIC comporta ajustamento do artigo 64 § 3 da Pastor bonus (de 28 de junho de 1988), bem como da normativa em matéria
de traduções – o que postula a correção de alguns números do Institutio
generalis missalis Romani e dos Praenotanda dos
livros litúrgicos. A própria instrução Liturgiam
authenticam, que deve
ser apreciada pelas válidas atenções que reserva a este trabalho e a suas
implicações, quando pede a recognitio, deve ser interpretada à luz da nova formulação do cânone
838. Por fim, o Motu Proprio dispõe que a Congregação para o Culto Divino e
a Disciplina dos Sacramentos “modifique o próprio Regulamento com
base na nova disciplina e ajude as Conferências Episcopais a levar a cabo a
própria tarefa”.
***
Concluindo
Trata-se de uma norma sobre
trabalho orientado e regulado pelos
critérios sugeridos de tempos a tempos por alguns documentos normativos
fundamentais, em particular pelas instruções Comme le prévoit de
1969 e Liturgiam authenticam de 2001.
O Ponto-chave do Motu Proprio é a relação entre Sé
Apostólica e conferências episcopais na preparação e na tradução dos textos litúrgicos,
precisamente para “tornar mais fácil e frutuosa” a sua colaboração, através dum
clima de “confiança recíproca, vigilante e criativa”. Assim, o Papa reformula o
cânone 838, definindo em particular a distinção entre “revisão” (recognitio) e “confirmação” (confirmatio), ambas as tarefas de competência da Sé Apostólica. A
primeira, tendo por critério a verificação da fidelidade ao rito romano e à sua
substancial unidade, consiste na obra de “revisão” e avaliação das adaptações que
a conferência episcopal faz aos textos litúrgicos para valorizar as legítimas
diversidades de povos e etnias no culto divino; a segunda, relativa às
traduções preparadas e aprovadas pelos bispos para as regiões de sua
competência, configura o ato da Sé Apostólica, que sobre aquelas matérias é de “confirmação”,
ratificando em substância o trabalho dos episcopados e obviamente pressupondo a
sua fidelidade e a correspondência das versões ao texto litúrgico original.
Porém, “não basta reformar os livros para renovar a
mentalidade”, como dizia Francisco, a 24 de agosto pp, aos participantes da Semana Litúrgica Nacional italiana, a
quem, garantindo a irreversibilidade da reforma litúrgica, recordou os eventos
substanciais (e não
superficiais) do arco
dos últimos 70 anos na história Igreja e em particular, na história da liturgia.
Com efeito, a educação litúrgica de Pastores e fiéis é desafio a enfrentar
sempre de novo. O Concílio Vaticano II e a reforma litúrgica são eventos
conexos, “que não floresceram repentinamente, mas foram longamente preparados”,
como testemunha o movimento litúrgico e as respostas dadas pelos Sumos Pontífices
às dificuldades percebidas na oração eclesial. Mencionou São Pio X, com
reordenação da música sacra, restauração celebrativa do domingo e criação da
comissão para a reforma geral da liturgia; o projeto reformador de Pio XII com
a Encíclica Mediator Dei, a
instituição duma comissão de estudo e as decisões de atenuação do jejum
eucarístico, de uso da língua viva no Ritual, da reforma da Vigília Pascal e da
Semana Santa; e a direção traçada pelo Concílio que encontrou forma segundo o
princípio do respeito da sã tradição e do progresso nos livros litúrgicos
promulgados pelo Beato Paulo VI”, já há quase 50 anos universalmente em uso no
Ritual Romano. E Paulo VI, um ano antes da morte, disse ao consistório dos
cardeais:
“Chegou o momento, agora, de deixar cair
definitivamente os fermentos desagregadores, igualmente perniciosos em um
sentido e em outro, e de aplicar integralmente, nos seus justos critérios
inspiradores, a reforma por nós aprovada em aplicação aos votos do Concílio”.
Francisco disse que “a liturgia é “viva” e que “sem a
presença real do mistério de Cristo, não existe nenhuma vitalidade litúrgica. “Como
sem o batimento cardíaco não existe vida humana, da mesma forma, sem o coração
pulsante de Cristo não existe ação litúrgica”. E salientou:
“Entre os sinais visíveis do invisível
Mistério está o altar, sinal de Cristo pedra viva, descartada pelos homens mas
que se tornou a pedra angular do edifício espiritual em que é oferecido a Deus
vivo o culto em espírito e verdade”.
A liturgia é vida para e com todo o povo, convocado. Por natureza,
a liturgia é, de facto, popular e não clerical, não seletiva, mas inclusiva,
criadora de comunhão e transformação. E comentou:
“A Igreja em oração acolhe todos aqueles que
têm o coração na escuta do Evangelho, sem descartar ninguém: são convocados
pequenos e grandes, ricos e pobres, crianças e idosos, saudáveis e doentes, justos
e pecadores. À imagem da ‘multidão imensa’ que celebra a liturgia no santuário
do céu, a assembleia litúrgica supera, em Cristo, todo limite de idade, raça,
língua e nação.”.
Não podendo esquecer que Igreja em oração enquanto “católica”
vai além do Rito Romano que, mesmo sendo o mais difundido, não é o único, disse
das tradições do Oriente e do Ocidente:
“O
Espírito dá voz à única Igreja orante por Cristo, com Cristo e em Cristo, para
glória do Pai e para a salvação do mundo”.
2017-09.29 – Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário