sexta-feira, 29 de setembro de 2017

“Para continuar a renovação da vida litúrgica”

É efetivamente com o escopo de prosseguir a renovação da vida litúrgica que o Papa Francisco fez publicar, a 9 de setembro pp, a carta apostólica “Magnum principium” na forma de Motu Proprio, datado de 3 do mesmo mês, com que modificou o cânon 838 do CIC (Código de Direito Canónico, Codex Iuris Canonici) para entrar em vigor no próximo dia 1 de outubro.
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A justificação
No texto preambular, fica plasmada a justificação que se sintetiza nos termos seguintes:
O documento retoma o magno princípio, confirmado pelo Concílio Ecuménico Vaticano que induz a assimilação da oração litúrgica, convenientemente adaptada à compreensão do povo, e à luz do qual se exige aos Bispos a tarefa de introduzir a língua vulgar na liturgia e de preparar e aprovar as versões dos livros litúrgicos. Apesar de ciente do grande sacrifício da perda parcial da língua, usada em todo o mundo ao longo dos séculos, a Igreja latina abriu de boa mente a porta a que as versões, como partes dos próprios ritos, se tornassem voz da Igreja que celebra os mistérios divinos. Entretanto, colocavam-se-lhe dois problemas: dum lado, a necessidade de “unir o bem dos fiéis de qualquer idade e cultura e o seu direito a uma participação consciente e ativa nas celebrações litúrgicas com a unidade substancial do Rito Romano”; do outro, a dificuldade das línguas vulgares em tornar-se línguas litúrgicas (só muito progressivamente), esplendorosas à semelhança do latim litúrgico “por elegância de estilo e pela gravidade dos conceitos a fim de alimentar a fé”. E era este o escopo das leis litúrgicas, instruções, circulares, indicações e confirmações dos livros em língua vernácula emanadas pela Santa Sé já durante o Concílio, no pós-Concílio e mesmo depois das normas estabelecidas no CIC, de 1983.
Os critérios indicados foram e permanecem úteis, pelo que, dentro do possível, devem ser seguidos pelas Comissões litúrgicas como instrumentos adequados para que, na variedade das línguas, a comunidade litúrgica alcance um estilo expressivo adequado e congruente com cada uma das partes, mantendo a integridade e a fidelidade cuidadosa, sobretudo na tradução de textos de maior relevância em cada livro litúrgico.
Na verdade, texto litúrgico, como sinal ritual, é meio de comunicação oral. Mas para os crentes também a palavra é um mistério: pois, quando são proferidas as palavras, sobretudo quando se lê a Sagrada Escritura, Deus fala aos homens, Cristo no Evangelho fala ao seu povo que, por si ou mediante o celebrante, responde, com a oração, ao Senhor no Espírito Santo. Assim, a tradução dos textos legislativos e bíblicos para a liturgia da Palavra visa “anunciar aos fiéis a palavra de salvação em obediência à fé e exprimir a oração da Igreja ao Senhor”. Por isso, é preciso comunicar fielmente a um povo em concreto, pela sua língua, o que a Igreja pretende comunicar por meio da língua latina. Mesmo se nem sempre a fidelidade pode ser julgada por simples palavras, mas no contexto de toda a ação comunicacional e segundo o género literário, alguns termos peculiares devem ser considerados também no contexto da íntegra fé católica, pois cada tradução dos textos litúrgicos deve ser congruente com a doutrina.
É normal que, ao longo do tempo, tenham surgido dificuldades entre as Conferências Episcopais e a Sé Apostólica. Mas para a validade, também no futuro, das decisões do Concílio sobre o uso das línguas vulgares na Liturgia, torna-se necessária a constante colaboração, cheia de “confiança recíproca, vigilante e criativa”, entre as Conferências Episcopais e a Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos. Assim, para que a renovação de toda a vida litúrgica continue, “pareceu oportuno que alguns princípios transmitidos desde o tempo do Concílio sejam reafirmados e postos em prática de maneira mais clara”.
Nesse sentido, deve-se prestar atenção à utilidade e ao bem dos fiéis, mas sem esquecer o direito e o encargo das Conferências Episcopais que, juntamente com as Conferências Episcopais de regiões que usam a mesma língua e com a Sé Apostólica, têm em garantir e estabelecer que, salvaguardada a índole de cada língua, seja dado plena e fielmente o sentido do texto original e que os livros traduzidos, até depois das adaptações, resplandeçam pela unidade ao Rito Romano. É justamente para tornar mais fácil e frutuosa a colaboração entre a Sé Apostólica e as Conferências Episcopais que deve ser prestado aos fiéis que o Papa dispõe que a disciplina canónica vigente no cân. 838 do CIC seja tornada mais clara, para que, segundo o expresso na Constituição Sacrosanctum Concilium (em especial nos artigos 36 §§ 3.4, 40 e 63), de 1963, e na Carta Apostólica Motu Proprio Sacram Liturgiam (n. IX), seja mais clara a competência da Sé Apostólica quanto a traduções dos livros litúrgicos e adaptações mais profundas, entre as quais se incluem eventuais novos textos a serem inseridos neles, estabelecidos e aprovados pelas Conferências Episcopais.
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As normas modificadas
Assim, no futuro, o cân. 838 será lido como segue (a negrito vão as alterações introduzidas em relação ao texto em vigor até 1 de outubro):
“Cân. 838 – §1.  O ordenamento da sagrada liturgia depende unicamente da autoridade da Igreja: compete, de modo próprio, à Sé Apostólica, e, segundo as normas do direito, ao Bispo diocesano.
§ 2 – Pertence à Sé Apostólica ordenar a liturgia sagrada da Igreja Universal, publicar os livros litúrgicos, rever as adaptações aprovadas, segundo as normas do direito, pela Conferência Episcopal, e vigiar para que em toda a parte se observem fielmente as normas liturgias. 
§ 3 – Compete às Conferências Episcopais preparar fielmente as versões dos livros litúrgicos nas línguas vernáculas, convenientemente adaptadas dentro dos limites fixados, aprová-las e publicar os livros litúrgicos, para as regiões da sua competência, após a confirmação da Sé Apostólica.
§ 4 – Ao Bispo diocesano, na Igreja que lhe foi confiada, pertence, dentro dos limites da sua competência, dar normas em matéria litúrgica, que todos estão obrigados a observar.”.
Por consequência, devem ser interpretados em consonância quer o art. 64 § 3 da Constituição Apostólica Pastor bonus quer as outras leis, em particular as que estão contidas nos livros litúrgicos, acerca das suas versões. De igual modo, se dispõe que a Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos modifique o próprio “Regulamento” com base na nova disciplina, ajude as Conferências Episcopais a desempenhar a sua tarefa e se comprometa a promover cada vez mais a vida litúrgica da Igreja Latina.
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Algumas reações
O Secretariado Nacional de Liturgia da Conferência Episcopal Portuguesa, comentou: 
“O propósito da mudança é definir melhor o papel da Sé Apostólica e as Conferências Episcopais, que são chamadas a trabalhar em diálogo uns com os outros, respeitando as suas próprias competências, que são diferentes e complementares, tanto para a tradução de livros latinos (edição típica) quanto para possíveis adaptações de textos e ritos. Tudo isso, ao serviço da oração litúrgica do povo de Deus.
Mons. Arthur Roche, Secretário da Congregação do Culto Divino e da Disciplina dos Sacramentos, publicou uma Nota a ilustrar as fontes normativas que originaram a alteração ao cân. 838, de que, a seguir, se dá conta.
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Nota sobre o Cânone 838 à luz de fontes conciliares e pós-conciliares
Aquando da publicação do Magunm principium, com o qual Francisco estabelece variações nos §§ 2 e 3 do cân. 838 do CIC, o Secretário da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos comenta as fontes que fundamentam tais parágrafos, considerando a formulação até agora em vigor e a nova.
O texto hodierno:
§ 2. “Apostolicae Sedis est sacram liturgiam Ecclesiae universae ordinare, libros liturgicos edere eorumque versiones in linguas vernaculas recognoscere, necnon advigilare ut ordinationes liturgicae ubique fideliter observentur”.
§ 3. “Ad Episcoporum conferentias spectat versiones in linguas vernaculas, convenienter intra limites in ipsis libris liturgicis definitos aptatas, parare easque edere, praevia recognitione Sanctae Sedis.
Para o § 2, as referências são o n.º 21 da instrução Inter Oecumenici (26 de setembro de 1964) e o cân. 1257 do CIC, de 1917. Para o § 3, são a Sacrosanctum Concilium n. 22 § 2 e n. 36 §§ 3-4; S. Congr. pro Sacramentis et Cultu Divino, Epist. Decem iam anos (5 de junho de 1976); S. Congr. pro Doctrina Fidei, Ecclesiae pastorum (19 de março de 1975), art. 3.
Apesar de as fontes terem mero valor indicativo e não serem completas, podem-se fazer algumas anotações a seu respeito e a propósito daquilo em que têm implicações.
Assim, antes de mais, acerca do § 2 do cân. 838, é de referir:
O n. 21 da Instrução Inter Oecumenici pertence ao cap. I, VI. De competenti auctoritate in re litúrgica (na Const. art. 22) e reza:
“Apostolicae Sedis est tum libros liturgicos generales instaurare atque approbare, tum sacram Liturgiam in iis quae universam Ecclesiam respiciunt ordinare, tum Acta et deliberationes auctoritatis territorialis probare seu confirmare, tum eiusdem auctoritatis territorialis propositiones et petitiones accipere”.
Parece clara a pressuposta igualdade entre o verbo “recognoscere”, do § 2 do cân. 838, e a expressão “probare seu confirmare”, da Inter Oecumenici. Esta última expressão foi desejada pela Comissão litúrgica do Concílio Vaticano II para substituir a terminologia derivante do verbo “recognoscere” (“actis recognitis”), com referência ao cân. 250 § 4 (cf cân. 304 § 2) do CIC, de 1917, como foi explicado aos Padres conciliares na Relatio e por eles votado no n. 36 § 3 da Sacrosanctum Concilium na forma “actis ab Apostolica Sede probatis seu confirmatis”. Pode-se notar também que o n. 21 da Inter Oecumenici respeita a todos os atos das autoridades territoriais, enquanto neste ponto o CIC o aplica especificamente às “interpretationes textuum liturgicorum”, matéria que a Inter Oecumenici trata explicitamente no n. 40.
Em relação ao do § 3 do cân. 838, a referência à Sacrosanctum Concilium n. 22 § 2 é pertinente. E quanto à referência ao n. 36 §§ 3-4 desta (o § 3 trata “de usu et modo linguae vernaculae statuere, actis ab Apostolica Sede probatis seu confirmatis” e o § 4 da “conversio textus latini in linguam vernaculam in Liturgia adhibenda, a competenti auctoritate ecclesiastica territoriali, de qua supra, approbari debet”) é evidente que para a tradução não se pede uma probatio seu confirmatio nem uma recognitio em estreito sentido jurídico, como exige o cân. 455 § 2. A vicissitude em relação a um trecho do Motu Proprio Sacram Liturgiam n. IX (25 de janeiro de 1964), que pela reação dos Padres Conciliares foi emendado na Acta Apostolicae Sedis, não terá sido considerada adequadamente. No Sacram Liturgiam, publicado em L’Osservatore Romano, de 29 de janeiro de 1964, lia-se:
... populares interpretationes, a competente auctoritate ecclesiastica territoriali propositas, ab Apostolica Sede esse rite recognoscendas  atque probandas”.
 Mas na Acta Apostolicae Sedis foi adotada a terminologia conciliar:

...populares interpretationes, a competente auctoritate ecclesiastica territoriali conficiendas et approbandas esse, ad normam art. 36, §§ 3 et 4; acta vero huius auctoritatis, ad normam eiusdem art. 36, § 3, ab Apostolica Sede esse rite probanda seu confirmanda”. 
Portanto, o Sacram Liturgiam distinguia a aprovação das traduções como tais por parte das autoridades territoriais por decreto que as tornava obrigatórias e o facto que tal ato devia ser “probatus seu confirmatus” pela Sé Apostólica. Ademais, o Sacram Liturgiam acrescenta:
Quod ut semper servetur praescribimus, quoties liturgicus quidam textus latinus a legitima, quam diximus, auctoritate in linguam vernaculam convertetur”. 
A prescrição refere-se aos dois momentos distintos: o conficere et approbare uma tradução; e o ato de a tornar obrigatória com a publicação do livro que a contém.
A referência cruzada com a Epist. Decem iam annos da S. Congregatio pro Sacramentis et Cultu Divino é pertinente, mas nunca usa o termo “recognoscere”, mas sim os termos “probare, confirmare, confirmatio”. Quanto ao Ecclesiae pastorum da S. Congregatio pro Doctrina Fidei, art. 3 (composto de três números), só o n. 1 se refere à questão, rezando:
Libri liturgici itemque eorum versiones in linguam vernaculam eorumve partes ne edantur nisi de mandato Episcoporum Conferentiae atque sub eiusdem vigilantia, praevia confirmatione Apostolicae Sedis”.
O n. 2 concerne às reedições; e o n. 3, aos livros de oração. Porém, é de notar que às Conferências Episcopais se atribuem a vigilância e o mandato, enquanto à Sé Apostólica a “praevia confirmatio” acerca do livro que se edita, e não precisamente uma “recognitio” da versão, como ao contrário refere o cân. 838.
O texto novo:
A modificação dos §§ 2 e 3 do cân. 838 pelo Magnum principium requer a seguinte formulação:
§ 2. “Apostolicae Sedis est sacram liturgiam Ecclesiae universae ordinare, libros liturgicos edere, aptationes, ad normam iuris a Conferentia Episcoporum approbatas, recognoscere, necnon advigilare ut ordinationes liturgicae ubique fideliter observentur”.
§ 3. “Ad Episcoporum Conferentias spectat versiones librorum liturgicorum in linguas vernaculas fideliter et convenienter intra limites definitos accommodatas parare et approbare atque libros liturgicos, pro regionibus ad quas pertinent, post confirmationem Apostolicae Sedis edere”.
Assim, o § 2 atinge as “aptationes” (já não as “versiones”, matéria do § 3), isto é, textos e elementos que aparecem na editio typica latina, assim como as “profundiores aptationes” contempladas na Sacrosanctum Concilium (n. 40) e reguladas pela Instrução Varietates legitimae sobre a liturgia romana e a inculturação (25 de janeiro de 1994); aprovadas pela Conferência Episcopal, as “aptationes” devem ter a “recognitio” da Sé Apostólica. A referência é à Sacrosanctum Concilium n. 36 § 3. O § 2 modificado conserva, entre as suas fontes, o cân. 1257 do CIC de 1917 e acrescenta a referência à Instrução Varietates legitimae que trata da aplicação dos nn. 39 e 40 da Constituição Sacrosanctum Concilium, para o que se exige uma verdadeira “recognitio”.
O § 3 refere-se às “versiones” dos textos que, especificado melhor, devem ser feitas “fideliter” e aprovadas pelas Conferências Episcopais.
A referência é à Sacrosanctum Concilium n. 36 § 4 e também à analogia com o cân. 825 § 1 sobre a versão da Sagrada Escritura. Tais versões são editadas nos livros litúrgicos, depois de ter recebido a “confirmatio” da Sé Apostólica, como disposto pelo Sacram Liturgiam, n. IX.
A formulação anterior no § 3 do cân. 838: “intra limites in ipsis libris liturgicis definitos aptatas”, devedora da Sacrosanctum Concilium n. 39 (“Intra limites in edititionibus typicis librorum liturgicorum statutos... aptationes definire”), concernente às “aptationes” e não às “versiones” das quais agora trata este parágrafo, é apresentada agora com a expressão “intra limites definitos accommodatas”, segundo a terminologia do n. 392 do Institutio Generalis Missalis Romani, o que permite oportuna distinção em relação às “aptationes” nomeadas no § 2.
E o § 3 aperfeiçoado continua a fundar-se na Sacrosanctum Concilium  n. 22 § 2; n. 36 §§ 3 – 4; S. Congr. pro Sacramentis et Cultu Divino, Epist. Decem iam anos (5 de junho de 1976); S. Congr. pro Doctrina Fidei, Ecclesiae pastorum (19 de março de 1975), art. 3, com o acréscimo da referência aos nn. 391 e 392 do Institutio Generalis Missalis Romani (ed. typica tertia), mas evitando os termos “recognoscere, recognitis”, de modo que o ato da Sé Apostólica relativo às versões, preparadas pelas Conferências Episcopais com particular fidelidade ao sentido do texto latino (ver o acréscimo do “fideliter”), não possa ser equiparado à disciplina do cân. 455, mas incluído na ação de uma “confirmatio” (como expressa tanto a Decem iam annos como a Ecclesiae pastorum, art. 3).
A “confirmatio” é um ato de autoridade com o qual a Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos ratifica a aprovação dos Bispos, deixando a responsabilidade da tradução, presumidamente fiel, ao munus doutrinal e pastoral da Conferência dos Bispos.
Em suma, realizada na base da confiança recíproca, a “confirmatio” supõe a positiva avaliação da fidelidade e da congruência dos textos produzidos em relação ao texto típico latino, tendo em conta sobretudo os textos de maior importância (por exemplo as fórmulas sacramentais, que exigem a aprovação do Santo Padre, o Rito da Missa, as orações eucarísticas e de ordenação, que requerem uma revisão esmerada). E, como recordado no presente Motu Proprio, as mudanças do cân. 838, §§ 2 e 3 têm consequências no art. 64 § 3 da Constituição Apostólica Pastor bonus, no Institutio Generalis Missalis Romani e nos Praenotanda dos livros litúrgicos, nos lugares que se ocupam da matéria das traduções e das adaptações.
Uma chave de leitura
Comentário do Secretário da Congregação para o Culto Divino e Disciplina dos Sacramentos
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O presente Motu Proprio muda a formulação de normas do CIC atinentes à edição dos livros litúrgicos nas línguas vernáculas, designadamente o texto do cân. 838. A exposição dos motivos é oferecida pelo próprio documento, que recorda e expõe os princípios que estão na base da tradução dos textos litúrgicos típicos em língua latina e as instâncias implicadas nesse delicado trabalho. Sendo oração da Igreja, a liturgia é de facto regulada pela autoridade eclesial.
Considerando a importância dos desafios, já os padres Vaticano II tinham interpelado quer a Sé apostólica quer as conferências episcopais. De facto, o compromisso de providenciar traduções litúrgicas foi guiado por normas e instruções específicas do dicastério competente, em particular Comme le prévoit (25 de janeiro de 1969) e, depois do CIC de 1983, Liturgiam authenticam (28 de março de 2001), ambos publicados, em fases diferentes, para responder a problemas concretos evidenciados ao longo do tempo e suscitados pelo trabalho complexo que a tradução dos textos litúrgicos comporta. Ao contrário, relativamente ao âmbito da inculturação, a matéria foi regulada pela instrução Varietates legitimae (25 de janeiro de 1994).
Considerada a experiência, agora, segundo o Papa,
Pareceu oportuno que alguns princípios transmitidos desde o período do Concílio sejam reafirmados de forma mais clara e postos em prática”.
Portanto, foi considerando o caminho percorrido e olhando o futuro, com base na constituição Vaticano II Sacrosanctum Concilium, que o Pontífice especificou a disciplina vigente introduzindo variações ao cânone 838 do CIC, com a finalidade de definir melhor os papéis da Sé apostólica e das conferências episcopais, chamadas a trabalhar em diálogo entre elas, no respeito da própria competência, diferente e complementar, relativamente à tradução dos livros típicos latinos, bem como das eventuais adaptações, que podem dizer respeito aos textos e aos ritos – isto “ao serviço da oração litúrgica do povo de Deus”. Em particular, na nova formulação do cânone 838, faz-se distinção mais adequada em relação ao papel da Sé apostólica, entre o âmbito próprio da recognitio e o da confirmatio, no respeito de quanto compete às conferências episcopais, tendo em conta a sua responsabilidade pastoral e doutrinal e os seus limites de ação.
A “recognitio, referida no § 2, implica o processo de reconhecimento da parte da Sé apostólica das legítimas adaptações litúrgicas, inclusive as “mais profundas”, que as conferências podem estabelecer e aprovar para os seus territórios, nos limites consentidos. Portanto, no terreno de encontro entre liturgia e cultura, a Sé apostólica é chamada a recognoscere, ou rever e avaliar estas adaptações, em virtude da salvaguarda da unidade substancial do rito romano. A referência nesta matéria são os números 39-40 da Sacrosanctum Concilium; e a sua aplicação, nos modos indicados ou não nos livros litúrgicos, é regulamentada pela instrução Varietates legitimae.
Ao invés, a “confirmatio” – termo adotado no Motu Proprio Sacram Liturgiam n. IX (25 de janeiro 1964) – incide nas traduções dos textos litúrgicos que, de acordo com a Sacrosanctum Concilium (n. 36 § 4), compete às conferências episcopais preparar e aprovar; o § 3 do cânone 838 especifica que as versões devem ser realizadas fideliter conforme os textos originais, tendo em conta a preocupação principal da instrução Liturgiam authenticam. Com efeito, evocando o direito e responsabilidade da tradução confiada às conferências episcopais, o Motu Proprio recorda que as conferências
Devem fazer com que e, ao mesmo tempo, estabelecer que, ao salvaguardar a natureza de cada língua, seja dado plena e fielmente o sentido do texto original”.
Portanto, a confirmatio da Sé apostólica não se apresenta como uma intervenção alternativa de tradução, mas como um ato autoritativo com o qual o competente dicastério ratifica a aprovação dos bispos, supondo uma avaliação positiva da fidelidade e congruência dos textos produzidos em relação à edição típica sobre a qual se funda a unidade do rito e tendo em conta sobretudo os textos de maior importância, especialmente as fórmulas sacramentais, as orações eucarísticas, as orações de ordenação, o rito da missa, e assim por diante.
A modificação do CIC comporta ajustamento do artigo 64 § 3 da Pastor bonus (de 28 de junho de 1988), bem como da normativa em matéria de traduções – o que postula a correção de alguns números do Institutio generalis missalis Romani e dos Praenotanda dos livros litúrgicos. A própria instrução Liturgiam authenticam, que deve ser apreciada pelas válidas atenções que reserva a este trabalho e a suas implicações, quando pede a recognitio, deve ser interpretada à luz da nova formulação do cânone 838. Por fim, o Motu Proprio dispõe que a Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos “modifique o próprio Regulamento com base na nova disciplina e ajude as Conferências Episcopais a levar a cabo a própria tarefa”.
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Concluindo
Trata-se de uma norma sobre trabalho orientado e regulado pelos critérios sugeridos de tempos a tempos por alguns documentos normativos fundamentais, em particular pelas instruções Comme le prévoit de 1969 e Liturgiam authenticam de 2001.
O Ponto-chave do Motu Proprio é a relação entre Sé Apostólica e conferências episcopais na preparação e na tradução dos textos litúrgicos, precisamente para “tornar mais fácil e frutuosa” a sua colaboração, através dum clima de “confiança recíproca, vigilante e criativa”. Assim, o Papa reformula o cânone 838, definindo em particular a distinção entre “revisão” (recognitio) e “confirmação” (confirmatio), ambas as tarefas de competência da Sé Apostólica. A primeira, tendo por critério a verificação da fidelidade ao rito romano e à sua substancial unidade, consiste na obra de “revisão” e avaliação das adaptações que a conferência episcopal faz aos textos litúrgicos para valorizar as legítimas diversidades de povos e etnias no culto divino; a segunda, relativa às traduções preparadas e aprovadas pelos bispos para as regiões de sua competência, configura o ato da Sé Apostólica, que sobre aquelas matérias é de “confirmação”, ratificando em substância o trabalho dos episcopados e obviamente pressupondo a sua fidelidade e a correspondência das versões ao texto litúrgico original.
Porém, “não basta reformar os livros para renovar a mentalidade”, como dizia Francisco, a 24 de agosto pp, aos participantes da Semana Litúrgica Nacional italiana, a quem, garantindo a irreversibilidade da reforma litúrgica, recordou os eventos substanciais (e não superficiais) do arco dos últimos 70 anos na história Igreja e em particular, na história da liturgia. Com efeito, a educação litúrgica de Pastores e fiéis é desafio a enfrentar sempre de novo. O Concílio Vaticano II e a reforma litúrgica são eventos conexos, “que não floresceram repentinamente, mas foram longamente preparados”, como testemunha o movimento litúrgico e as respostas dadas pelos Sumos Pontífices às dificuldades percebidas na oração eclesial. Mencionou São Pio X, com reordenação da música sacra, restauração celebrativa do domingo e criação da comissão para a reforma geral da liturgia; o projeto reformador de Pio XII com a Encíclica Mediator Dei, a instituição duma comissão de estudo e as decisões de atenuação do jejum eucarístico, de uso da língua viva no Ritual, da reforma da Vigília Pascal e da Semana Santa; e a direção traçada pelo Concílio que encontrou forma segundo o princípio do respeito da sã tradição e do progresso nos livros litúrgicos promulgados pelo Beato Paulo VI”, já há quase 50 anos universalmente em uso no Ritual Romano. E Paulo VI, um ano antes da morte, disse ao consistório dos cardeais:
Chegou o momento, agora, de deixar cair definitivamente os fermentos desagregadores, igualmente perniciosos em um sentido e em outro, e de aplicar integralmente, nos seus justos critérios inspiradores, a reforma por nós aprovada em aplicação aos votos do Concílio”.
Francisco disse que “a liturgia é “viva” e que “sem a presença real do mistério de Cristo, não existe nenhuma vitalidade litúrgica. “Como sem o batimento cardíaco não existe vida humana, da mesma forma, sem o coração pulsante de Cristo não existe ação litúrgica”. E salientou:
Entre os sinais visíveis do invisível Mistério está o altar, sinal de Cristo pedra viva, descartada pelos homens mas que se tornou a pedra angular do edifício espiritual em que é oferecido a Deus vivo o culto em espírito e verdade”.
A liturgia é vida para e com todo o povo, convocado. Por natureza, a liturgia é, de facto, popular e não clerical, não seletiva, mas inclusiva, criadora de comunhão e transformação. E comentou:
A Igreja em oração acolhe todos aqueles que têm o coração na escuta do Evangelho, sem descartar ninguém: são convocados pequenos e grandes, ricos e pobres, crianças e idosos, saudáveis e doentes, justos e pecadores. À imagem da ‘multidão imensa’ que celebra a liturgia no santuário do céu, a assembleia litúrgica supera, em Cristo, todo limite de idade, raça, língua e nação.”.
Não podendo esquecer que Igreja em oração enquanto “católica” vai além do Rito Romano que, mesmo sendo o mais difundido, não é o único, disse das tradições do Oriente e do Ocidente:
“O Espírito dá voz à única Igreja orante por Cristo, com Cristo e em Cristo, para glória do Pai e para a salvação do mundo”.

2017-09.29 – Louro de Carvalho

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