Dom Manuel da Silva Martins, Bispo de Setúbal entre 1975 e 1998, morreu
este domingo, dia 24 de setembro, aos 90 anos, como informou a Diocese de
Setúbal, a que se seguiu a informação da diocese do Porto.
Um comunicado da diocese sadina informou que um dos seus bispos eméritos, Dom
Manuel Martins, “faleceu hoje, às 14,05 horas acompanhado dos seus familiares e
após receber a Santa Unção” de um pároco local, sem referir o local da morte.
Mais tarde, a mesma diocese de Setúbal informou que as exéquias fúnebres se
celebrarão na próxima terça-feira, dia 26 de setembro, pelas 15 horas, no
Mosteiro de Leça do Balio (Matosinhos, Porto); que o
corpo do prelado emérito estará em câmara ardente no Mosteiro, a partir do dia
25 de setembro, entre as 9 e as 24 horas, e, no dia 26, entre as 9 e as 12
horas; que, segundo o desejo expresso pelo próprio finado, será sepultado junto
dos pais no cemitério junto ao referido Mosteiro de Leça do Balio; e que a
missa de sétimo dia se realizará no domingo, dia 1 de outubro, pelas 16 horas,
na Sé de Setúbal.
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O 1.º Bispo de Setúbal, nomeado e ordenado no grau do episcopado em 1975,
teve pela frente o encargo de criar os serviços diocesanos, o que sucedeu com
os prelados nomeados para as novéis dioceses criadas pelo Papa Paulo VI (Dom António
Francisco Marques para a de Santarém, criada em 1975, e Dom Júlio Tavares
Rebimbas para a de Viana do Castelo, criada em 1977), mas esta revestia-se de caraterísticas específicas.
Porém, ao longo do tempo que pontificou em Setúbal, Dom Manuel tornou-se uma voz
inusitada na hierarquia portuguesa, provavelmente sob inspiração do famoso Bispo
do Porto, Dom António Ferreira Gomes, que regressara do exílio em 1969 e que
fora um dos poucos que enfrentara o regime salazarista-caetanista (entre Dom
Sebastião Soares de Resende, 1.º Bispo da Beira, Moçambique, e Dom Manuel
Vieira Pinto, 3.º Bispo e 1.º Arcebispo de Nampula, Moçambique).
Mais claro que o cardeal patriarca Dom António Ribeiro, mas na mesma linha
de denúncia profética, Dom Manuel Martins fez escola na Igreja portuguesa. Chegou
a ser conhecido por “bispo vermelho”, durante a crise do PREC e dos anos 80,
pelas denúncias que fez de situações desemprego, pobreza e fome na região, pela
autocrítica que provocou no seio da Igreja pela sua frequente inércia e
acomodação aos poderes e pela crítica com que verberou governos e instituições,
mesmo eclesiásticas por, com o rótulo de serviço ao povo e aos pobres, se entregarem
e continuarem a entregar a ações de fachada ou de proveito ou protagonismo próprio.
A dedicação às grandes causas, na leitura atualizada do Evangelho e do
Magistério da Igreja, fê-lo um notável e incansável paladino dos direitos
humanos – das pessoas e dos povos – e teve o ensejo de usar da palavra perante
o Conselho dos 24 na ONU.
Nunca deixando de tecer as críticas que entendia justas aos poderes nem de
acentuar os valores que via onde quer que os encontrasse, abriu pistas a um bom
conjunto de seguidores na defesa das grandes causas dos pobres e da justiça
social – uns com a mesma ousadia, outros com maior contenção aparente (não refiro
nomes em concreto para não ser injusto). Nunca a
hierarquia católica em Portugal foi, com e depois de Dom Manuel Martins, igual
ao que era antigamente. Mas também sei que alguns bispos e padres nunca foram compreendidos
na sua leitura do terreno que pisavam e na sua ação em prol das pessoas e na consonância
com o Evangelho. De facto, a denúncia é urgente, mas a reviravolta no terreno,
discreta, tem a sua eficácia, também profética.
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Nascido a 20 de janeiro de 1927, em Leça do Balio, Matosinhos, Manuel da
Silva Martins estudou no seminário do Porto e, mais tarde, na Universidade
Gregoriana, em Roma, onde se formou em Direito Canónico, em 1954, passando a
exercer o múnus de professor e de vice-reitor do Seminário Maior do Porto.
Foi pároco de Cedofeita, nos perto de 10 anos de exílio do Bispo do Porto Dom
António Ferreira Gomes (1960-1969), por
motivos políticos, durante o Estado Novo, e foi vigário geral após o regresso
do prelado. Como pároco de Cedofeita, deu início à construção da nova
igreja, construiu a colónia balnear denominada Arca de Noé e adquiriu o imponente edifício da Creche de Cedofeita, onde
ficou instalada parte do serviço social da paróquia. Fundou também o jornal
paroquial Alleluia e manteve durante largo tempo um programa radiofónico
semanal nos prestigiados Emissores
do Norte Reunidos.
A 16 de julho de 1975, um ano após o 25 de abril de 1974, foi nomeado bispo
da diocese de Setúbal – tendo sido ordenado a 26 de outubro do mesmo ano – de
onde saiu 23 anos depois (em 24 de abril de 1998).
Em Setúbal,
encontrou um clima social de instabilidade e com todo o tipo de carências,
tendo procurado comungar vivamente a vida daquele povo em cumprimento, aliás,
do lema escolhido na ordenação episcopal: “Nasci Bispo em Setúbal, agora
sou de Setúbal. Aqui anunciarei o Evangelho da justiça e da paz”. Com uma presença muito ativa, exerceu
a sua ação pastoral numa vertente de serviço global e próximo, sobretudo dos
mais carentes e marginalizados, de tal modo que algumas autarquias o
designaram cidadão honorário
(entre estas conta-se o município de Sernancelhe), condecorando-o com várias medalhas
de mérito, dando o seu nome ao polo de Setúbal da Universidade e à
antiga Escola Secundária n.º 1, localizada na Estrada do Alentejo.
O Bispo é conhecido
por não ter papas na língua. Divertido, aberto, frontal, não teve o
menor pejo em dizer o que pensa, por exemplo, dividindo os padres em duas
classes: Os que acreditam no que dizem e fazem e os que são meros
funcionários. Passou a vida no meio do povo, sentindo o povo,
auscultando-o, sendo povo, sabendo o que ele vive e as situações de desespero
em que se encontra. A sua passagem por Setúbal constituiu um tempo em que a sua
figura se impôs como personagem necessária à história contemporânea duma região
que atravessou fases, no mínimo, problemáticas. A sua intervenção nem sempre
foi pacífica e a denominação de Bispo Vermelho, com toda a carga
política que esse epíteto acarretava, surgiu numa tentativa opositora de instrumentalização
para combate ao mediatismo de que usufruiu. Com efeito, ao chegar a Setúbal, foi
cercado de uma manifestação de hostilidade por alegadamente simbolizar o “reacionarismo
nortenho”. Mas a situação que realmente encontrou foi a de uma cidade de
proletários, homens e mulheres que muito se identificavam com o PCP, pessoas
tinham aversão ao que chamavam de ostentação da Igreja, às vezes real. Contudo,
a mestria de que foi capaz induziu-o a assemelhar-se ao povo que jurou servir
e, como sinal de combate à ostentação, abdicou de usar as vestes prelatícias e clericais
fora da igreja e aproximou-se da população, sempre solidário com as suas
preocupações, problemas, necessidades, anseios e conquistas.
No âmbito da Conferência Episcopal, foi presidente da Comissão Episcopal da
Ação Social e Caritativa e da Comissão Episcopal das Migrações e Turismo e também
da secção portuguesa da Pax Christi Internationalis, no âmbito da qual se
bateu pela questão de Timor-Leste, com iniciativas de vária ordem, que
culminariam com uma intervenção na sede da ONU e, posteriormente, com uma
visita a Timor-Leste. Foi membro fundador das organizações não governamentais Oikos e Pro Dignitate.
***
O Primeiro-Ministro, António Costa, já reagiu à morte de Dom Manuel
Martins, que apontou como uma “grande referência da consciência social”,
afirmando que a “melhor homenagem à sua memória é a ação pela erradicação da
pobreza”. E vários membros
da Igreja enaltecem o “homem de coragem e de causas”.
À
Rádio Renascença, Dom Jorge Ortiga, arcebispo primaz de Braga e seu seguidor na denúncia, recordou-o como
um “homem de coragem e causas” e uma “voz de denúncia”, explicitando:
“Trata-se de um homem
apaixonado pelas causas da humanidade, sobretudo pela dignidade dos mais
desfavorecidos. É uma voz profética, profética de anúncio corajoso e profética
também na denúncia de determinadas situações. Era uma pessoa muito próxima,
próxima dos amigos e próxima também das causas que implicavam esta ousadia e
esta coragem de alguém que tinha voz e queria dar voz a quem não tinha força
para a ter.”.
Também
ouvido pela Renascença, Dom Joaquim Mendes, bispo auxiliar de Lisboa, lembrou Dom
Manuel Martins como “um bispo próximo à realidade do povo da sua diocese que na
altura se debatia com uma situação de precariedade e de pobreza”. E disse:
“Dom Manuel Martins foi um
defensor dos direitos dos trabalhadores e dos mais pobres e, por isso, entrou
no seu coração. Era um bispo das causas sociais, um bispo da caridade cristã,
um bispo respeitado e escutado por todos, crentes e não crentes.”.
No
site da Presidência da República, Marcelo Rebelo de Sousa escreve tratar-se de
uma personalidade “singular, que tudo fez na sua vida para um Portugal mais
livre e mais justo e, por isso, mais democrático”, apontando-o como um homem “sempre
atento à luta pela liberdade contra a opressão e pela igualdade contra a
justiça”.
Na
mesma nota, o Presidente, além do trabalho pastoral em Setúbal, diz que a ação do
prelado foi muito além da Igreja, pois, “ao dar vida aos princípios
evangélicos, em tempos de crise e de enormes desafios comunitários, não serviu
apenas a Igreja Católica, serviu Portugal”.
Em
declarações à Lusa, o porta-voz da
Conferência Episcopal Portuguesa, Manuel Barbosa, recordou a “profunda
humanidade” e a “intransigência na defesa dos direitos humanos e dos valores do
evangelho”.
Dom Januário
Torgal Ferreira, Bispo emérito das Forças Armadas e de Segurança, frisou que
sempre teve dele “a visão de um homem superior e muito raro na Igreja”. E disse,
sublinhando que tudo o que ele fazia não era em nome de “ideários políticos”,
mas em nome do Evangelho:
“Toda a gente sabe que, do ponto de
vista social, uma das zonas mais depauperadas era a região de Setúbal, [que] foi
sempre a sua dor de cabeça e a menina dos seus olhos. Os pobres, os humildes,
as fábricas que fecham, as lutas e, por outro lado, as más interpretações que
muita gente fez dele.”.
Também
o cardeal patriarca de Lisboa disse à Comunicação das virtudes de proximidade, ousadia,
profundidade e profecia de Dom Manuel Martins
E o
secretário-geral do PCP, Jerónimo de Sousa, fez questão de evocar a morte de
Manuel Martins, uma “personalidade que, em certos momentos, teve uma grande
intervenção social, particularmente no tempo em que se trabalhava e não se
recebia, no tempo dos salários em atraso”. O líder comunista falou após um
comício autárquico da CDU, apresentando as “condolências a toda a Igreja
Católica e a todos os católicos do nosso país”.
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Por mim,
que falei com ele duas vezes, rogo a Deus que o recompense com o prémio dos profetas,
dos apóstolos e dos confessores da fé e pregoeiros da esperança!
2017.09.24 – Louro de
Carvalho
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