Estava
longe de imaginar, quando li a homilia de Dom António Francisco dos Santos, da
celebração eucarística do passado dia 9 de setembro, que seria a sua última
peça de parenética pública, a da segunda peregrinação diocesana do Porto a
Fátima.
Como
todos os que se sentiram e mostraram consternados com a sua inesperada partida
para o seio do bom Deus ou para a comunhão na Santíssima Trindade, de que a
Igreja é instrumento e sinal, também eu me rendo à evidência da brevidade da
vida terrena ou, melhor, da sua passagem transformadora de transitória e
precária em definitiva e plena. E, nesse sentido, presto homenagem ao amigo, ao
padre, ao bispo que Dom António Francisco foi de corpo inteiro e de alma plena na
procura, proximidade, profecia e, a seu modo, saltério das maravilhas de Deus.
Todavia,
o Pastor que pensava estar a festejar a dedicação da Catedral do Porto extra muros no local em que a branca
Senhora apareceu, não a Pastores da Igreja institucional, mas a três humildes
pastorinhos, estava afinal a lavrar publicamente o seu testamento pastoral (E o notário
privilegiado era o Bispo de Leiria-Fátima, que saudou enlevado a diocese e o
Bispo). Não estava
só a agradecer à Virgem a sua visita em imagem peregrina de há um ano à Igreja
do Porto cujas vias percorreu, em cujas moradas foi acolhida e em cujas praças
foi proclamada, mas a comprometê-La com a Igreja do Porto e a comprometer esta
Igreja milenar com a solicitude materna de Maria; não estava apenas a inaugurar
o plano pastoral para 2017/2018, mas a legar aos sucessores e a toda a Igreja
do Porto o percurso e o efeito da primeira pedra que dele estava a lançar; não
estava somente a anunciar um sínodo diocesano que expressamente confiou à Mãe
de Deus e dos homens, mas a delinear a ideia da sinodalidade dinâmica, paciente
e participativa como decorrente do plano pastoral gizado para o quinquénio em
curso; não estava só a celebrar, mas sobretudo a mobilizar para o compromisso
de fé, solidariedade, missão e fraternidade na perspetiva do acolhimento aos
sem vez, sem voz, sem emprego, sem teto e sem pão.
***
O
testamento pastoral do Bispo
do Porto radica no Evangelho da maternidade de Maria e da filiação divina e mariana.
Com efeito, Jesus disse ao discípulo: “Eis a tua Mãe” (Jo 19,26-27). E os portuenses foram convidados a ver interiormente a Mãe do
Céu, se possível, com a alegria e o espanto dos três videntes de 1917.
É um legado de paz e felicidade: em união e
comunhão com o Papa Francisco que, na Colômbia, pregava a esperança, a
concórdia e a paz a um povo ferido pela violência; e no mar que Fátima parecia
ao ver a confluir para si “as ruas e as estradas das quatrocentas e setenta e
sete paróquias da diocese do Porto – a norte e a sul do Douro, entre o Antuã e
o Ave” – quais “braços de um grande rio a guiar(em)-nos” na fé pessoal e
comunitária. É a paz que se invoca, constrói e educa; e a felicidade da
abundância simbolizada na força caudalosa do rio ou dos braços do grande rio!
É um legado mariano, peregrino o e missionário:
“Queremos dizer ao futuro
este nosso modo feliz e mariano de viver a fé e este desejo incontido de
anunciar a alegria do Evangelho no Porto, Cidade da Virgem e Terra de Santa
Maria. Caminhamos juntos a partir das nossas casas e comunidades a cantar a
alegria da mesma fé e a proclamar esta bela experiência de sermos: ‘Com Maria, Igreja do Porto, peregrina e
missionária’.”.
É
um testamento de gratidão: “a Nossa
Senhora, Mãe de Deus e nossa Mãe”; e a todos quantos se encontravam presentes
em Fátima e “a quantos nos acompanham nesta hora”.
É
um legado eclesial de gratidão, oração e alegria.
Gratidão, “pela Igreja que somos e pela experiência de fé, de esperança e de
caridade que vivemos juntos: crianças, jovens, famílias, idosos, doentes,
sem-abrigo e emigrantes aqui reunidos nesta participativa assembleia diocesana”;
oração de todos, “com todos e por todos os que estão connosco”; e de alegria
completa porque partilhada e celebrada, pois, “sem todos e sem cada um, a
alegria desta hora não seria possível nem completa”.
É
um testamento de caminho pastoral. De facto, se “foi muito belo o caminho percorrido ao longo deste ano pastoral que
aqui nos conduziu sob o lema Com Maria, renovai-vos nas fontes da alegria”,
também é certo que “o caminho pastoral não se encerra em nenhum lugar”, nem
mesmo nesta “segunda peregrinação diocesana que aqui realizamos neste arco de
tempo de cem anos de Fátima”. Por conseguinte, “também a missão não termina
aqui nem agora”. Pelo contrário,
“Este é, apenas, o início de uma nova etapa de caminho nos desafios por
Deus semeados no íntimo da vida de cada um de nós, na alma de cada comunidade
cristã e na força dos testemunhos apostólicos que nos dizem que há por toda
diocese dinamismo e vigor, iniciativas e propostas de uma fé professada,
celebrada, vivida, testemunhada e anunciada com alegria”.
Sei
como era caro o ditame do Arcebispo Montini, que veio a ser o papa Paulo VI,
que ensinava que era fundamental e bastante que cada um dos cristãos ousasse
passar por cada habitante da sua arquidiocese de Milão a dizer: Deus ama-te. Talvez por isso Dom António Francisco
assegurou solenemente perante os bispos auxiliares, sacerdotes, diáconos,
catequistas, acólitos, coros, frágeis – enfim, a fina flor da Igreja das duas
margens do Douro Litoral (do Antuã ao Ave):
“A certeza de que Deus nos ama e nos quer felizes, tantas vezes sentida
e experimentada, multiplica-se agora em vidas disponíveis que Deus chama, em
comunidades vivas que Deus modela e em caminhos aplanados que Deus percorre
connosco”.
E,
na atenção aos sinais dos tempos, “daqui
se vislumbram novos horizontes de missão ampliados à dimensão dos desafios, das
exigências e da cultura do nosso tempo”.
Por
isso, o testamento do prelado portuense é o dos sinais dos tempos. E o
apelo episcopal é:
“Procuremos escutar o mundo em que vivemos e prestemos mais atenção ao
povo peregrino que somos, para no meio deste povo percebermos os sinais que a
alegria do encontro com Cristo a todos oferece”.
É
um testamento de apelo de caminhada no sentido do homem para Deus por Maria e
no sentido de Deus para o homem, à luz do Evangelho e a exemplo de Maria:
“Igreja do Porto, vive esta hora, que te chama, guiada pelas mãos de
Maria, a ir ao encontro de Cristo e a partir de Cristo a anunciar com renovado
vigor e acrescido encanto a beleza da fé e a alegria do Evangelho. Viver em
Igreja esta paixão evangelizadora é a nossa missão. A vossa e a minha missão!”.
É
um testamento de sonho, porque
“Esta é uma das horas mais significativas de alegria e de comunhão
sonhada por Deus para a nossa diocese. Iniciamos agora, em dia da dedicação da
nossa Igreja Catedral, o novo ano pastoral, no horizonte do Sínodo Diocesano,
que aqui confio, desde já, à proteção da Mãe de Deus e Mãe da Igreja, Senhora
do Rosário de Fátima.”.
***
E
a palavra de ordem é a de uma Igreja cada vez mais em saída –
coerente com o pensamento do episcopado português e com o sentir das forças
vivas da diocese do Porto:
“Vamos partir daqui ‘movidos pelo amor de Deus’ para que cresça, no
Porto, como nos lembra o nosso Plano Diocesano de Pastoral 2017/2018, ‘uma
Igreja bela, verdadeira casa de família, sensível, fraterna, acolhedora e
sempre a caminho, mãe comovida com as dores e alegrias dos seus filhos e
filhas, cada vez menos em casa, cada mais fora de casa, a quem deve fazer
chegar e saber envolver na mais simples e comovente notícia do amor de Deus.
(CEP/Carta Pastoral, 16.7.2010).”.
E,
citando palavras do Papa Francisco em Fátima, o Bispo sustenta,
comprometendo-se na linguagem e na ação (do “nós”,
“nosso”, “nossa”) com as comunidades em que vive e que visita:
“O rosto jovem e belo da Igreja brilha quando é missionária, acolhedora,
livre, fiel, pobre de meios e rica no amor (Papa Francisco, Fátima,
Homilia, 13.5.2017), (cf. Plano Diocesano de Pastoral, Porto, 2017, pág. 45).”.
Mas
esta Igreja só será verdadeiramente Igreja para o nosso mundo de hoje se
assumir a postura da Gaudium et Spes (GS):
“As
alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje,
sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as
esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo; e não há
realidade alguma verdadeiramente humana que não encontre eco no seu coração”
(GS, 1).
Por
isso, o Bispo do Porto dizia:
“Não podemos viver distantes dos dramas humanos nem ficar insensíveis
aos seus clamores e indiferentes aos seus desafios. É preciso viver a imensa
experiência de ser povo, a experiência de pertencer a um povo. Temos de entrar
em contacto com a vida concreta dos outros e manifestar a força da ternura e da
bondade de Deus.”.
E
todos estes propósitos do testamento pastoral do Bispo do Porto vêm com uma
garantia de segurança, eficácia e qualidade – a proteção da Virgem com os
rostos com que Ela queira apresentar-se ao mundo, sabendo-se que o seu manto
será sempre grande e acolhedor, e a palavra do grande comunicador e profeta, o
Papa Francisco (na Evangelii Gaudium, EG):
“Peço à Virgem Maria, Senhora de Fátima, Senhora de Vandoma e Senhora da
Assunção, nossa Mãe e Padroeira, com as palavras do Papa Francisco, “’que nos
ajude a anunciar a todos a mensagem da salvação, que nos ensine a acreditar na
força revolucionária da bondade, da ternura e do afeto e nos dê a santa audácia
de buscar novos caminhos para que chegue a todos o dom da beleza que não se
apaga, a alegria da fé que nunca se esgota e o fascínio das bem-aventuranças
que inspiram a missão da Igreja e transformam o Mundo” (EG, n.º 288).
***
Ao
ler a homilia do dia 9 de setembro e ver os seus ecos na comunicação social,
lembrei-me de algumas semelhanças de estilo entre Dom António e Paulo VI, como:
uma enorme atividade durante a juventude; uma bonomia por trás da qual se
escondia uma boa dose de firmeza, prudência e ousadia; a extrema dedicação às
causas; a dinâmica da proximidade; a agudeza e acutilância da inteligência e do
discernimento; o inusitado dos gestos de humanidade e profecia; a atenção aos
pobres, que não podem esperar e cujo problema se resolve com justiça social,
emprego e educação; e o vigor do discurso, embora a voz pudesse ser algo
trémula. Mal sabia que a sua vida terrena estava perto do fim. Como alguém me
dizia hoje: devemos rezar por ele; e temos agora mais alguém a quem rezar.
***
Se
a contabilidade não permite quantificar muitas coisas na sua passagem pela
diocese do Porto, pelo menos ficam as marcas de um estilo de presença,
proximidade e voz, de imagem da Igreja de gente que tem o direito e o dever de
ser feliz e tornar os outros felizes, Deus lhe pague!
2017.09.11 – Louro de Carvalho
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