domingo, 17 de setembro de 2017

A mãe e o pai do Serviço Nacional de Saúde

Em geral, o advogado António Arnaut, de 81 anos, que foi Ministro dos Assuntos Sociais, no II Governo Constitucional, presidido por Mário Soares, e deputado do Partido Socialista, é considerado o “pai” do Serviço Nacional de Saúde (SNS). Habitualmente, dá-me para remar contra a maré e insistir na atribuição da paternidade dum regime jurídico que estabelece um sistema nacional à Assembleia da República, se falamos duma lei, ou ao Governo, se considerarmos um decreto-lei. E, mesmo neste caso, trata-se usualmente de um diploma de desenvolvimento de uma lei de bases ou de um diploma elaborado em consonância com uma autorização legislativa ou, ainda, de um decreto-lei que cuja apreciação parlamentar pode ser requerida por um grupo de deputados nos termos constitucionais e regimentais. Apenas nos casos em que o Governo legisla em matéria da sua exclusiva competência é que o Parlamento não pode avocar a apreciação parlamentar do diploma em causa. Em qualquer dos casos, a autoria é de um órgão colegial do poder político, passando pelo punho do Presidente da República para promulgação, pouco me interessando a iniciativa ou a autoria material.
Porém, no caso de Arnaut e do SNS, não tenho qualquer escrúpulo em alinhar ao lado dos que atribuem ao cidadão, na altura investido em funções de poder, a paternidade do SNS. Com efeito, a experiência fez-se e consolidou-se pela via de despacho ministerial (uma via estranha) – o conhecido “Despacho Arnaut” – datado de 20 de julho de 78 e publicado na II Série do Diário da República de 29 de julho de 78, uma verdadeira antecipação do SNS, na medida em que abre o acesso aos Serviços Médico-Sociais a todos os cidadãos, independentemente da sua capacidade contributiva. É garantida assim, pela primeira vez, a universalidade, generalidade e gratuitidade dos cuidados de saúde e a comparticipação medicamentosa.
O ilustre advogado tinha sido convidado para Ministro da Justiça do II Governo, mas tomou posse como Ministro dos Assuntos Sociais. De facto, Mário Soares, à última hora, disse-lhe que tinha de ser Ministro dos Assuntos Sociais, Saúde e a Segurança Social, porque não tinha conseguido ninguém que aceitasse aquela pasta “muito difícil, pois, “na altura, existiam muitos problemas entre os médicos” (havia ainda os anos policlínicos) e “entre os enfermeiros”. E, apelando-lhe ao sentido de dever, insistiu que era uma pasta à sua altura, que era socialista. Arnaut aceitou com a condição de criar o SNS. Soares concordou, mas, face à resistência inicial do convidado, aconselhou-lhe a escolha dum bom Secretário de Estado. E foi escolhido para Secretário de Estado da Saúde, com a mediação de Miguel Torga, Mário Mendes, médico de Coimbra, que deu extraordinária colaboração. Arnaut foi o impulsionador político do SNS, responsabilidade que assume, mas “a parte técnica foi feita por Mário Mendes e por Gonçalves Ferreira, um homem que sabia muito de saúde pública e tinha sido Secretário de Estado de Marcello Caetano”. E, para Secretário de Estado da Segurança Social convidou Victor Vasques, que já lá estava e era também de Coimbra.
Deixado o programa da Justiça, já delineado, começou a preparar o programa do Ministério dos Assuntos Sociais. Isto apenas dois ou três dias antes da posse. Diz Arnaut que, em 1978, “havia um grande entusiasmo, tínhamos um sentido de servir o povo, a causa pública, tínhamos valores, que infelizmente hoje vão desaparecendo”. O Governo tomou posse a 23 de janeiro e, nos primeiros dias de fevereiro, o Ministro apresentou o programa do Ministério dos Assuntos Sociais em nome do Governo. Entre os pontos de honra, figurava o anúncio de que o Governo ia criar o SNS e que, no prazo de 5 meses, seria apresentado o projeto da Lei de Bases. Porém, ao fim de um mês, o anteprojeto estava pronto e foi apresentado publicamente em princípios de abril e foi aí que o parceiro do PS no Governo e outras forças, incluindo elementos socialistas, viram que era a sério. O Ministro, verificando a convicção criada de que “habitualmente os programas do governo não se cumprem”, garantiu reiteradamente que o SNS era, para si, “um ponto de honra, não recuava um milímetro, não retirava uma vírgula”.
Entretanto, o II Governo Constitucional caiu em agosto desse ano, mas, antes, o Ministro fez um despacho a criar o SNS, datado de 20 de julho de 78 e publicado no Diário da República de 29 de julho de 78 (Foi o ano da 1.ª intervenção do FMI). Voltou à Assembleia da República como deputado, onde apresentou o anteprojeto do SNS como projeto de lei do PS. Na votação final global, foi aprovado com os votos favoráveis do PS, do PCP e do deputado da UDP, tendo os votos contra do PSD e do CDS. A Lei n.º 56/79, de 15 de setembro, que formalmente cria o SNS e lhe alarga o âmbito, foi publicada a 15 de setembro, sendo Primeiro-Ministro Lourdes Pintasilgo, conhecida como a antiga Ministra dos Assuntos Sociais com fortes convicções e preocupações nesta área. O seu Governo, o dos 100 dias, foi altamente reformista e inovador.
Está assim explicada a paternidade e a gestação do SNS (vd As Beiras, de 7 de outubro de 2014).
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Nos termos da predita Lei n.º 56/79, de 15 de setembro, o acesso ao SNS é garantido a todos os cidadãos, independentemente da sua condição económica e social e reger-se-á por normas regulamentares a estabelecer, e também aos estrangeiros, em regime de reciprocidade, aos apátridas e aos refugiados políticos que residam ou se encontrem em Portugal. Esta garantia compreende o acesso a todas as prestações abrangidas pelo SNS e não sofre restrições, salvo as impostas pelo limite de recursos humanos, técnicos e financeiros disponíveis; e o SNS envolve todos os cuidados integrados de saúde, compreendendo a promoção e vigilância da saúde, a prevenção da doença, o diagnóstico e tratamento dos doentes e a reabilitação médica e social.
Por outro lado, ao direito à proteção da saúde assegurado pelo SNS corresponde o dever, que a todos incumbe, de a defender e promover, nos termos da Constituição.
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Na passagem do 38.º aniversário da publicação da 1.ª Lei do SNS anos, a 15 de setembro pp, António Arnaut foi entrevistado pelo “Notícias ao Minuto”, edição on line, revelando:
“Em breve, teremos uma nova lei de bases, que prevê carreiras profissionais dignas, com garantia de estabilidade, formação permanente, progressão e remuneração adequada. Estou pessoalmente empenhado nesse objetivo e a trabalhar nisso.”.
E Arnaut, conhecido como o “pai” do SNS, por ter sido o mentor dum serviço de saúde acessível a todos os portugueses – sonho de muitos e que o levou a transformar uma “velha aspiração em letra de lei” – não aceita ficar com todos os louros, pois, além do trabalho técnico de Mário Mendes e de Gonçalves Ferreira, crê que “sem a ‘mãe’ – Constituição – já não existia SNS”. Mais: acredita que o progresso é parte da humanidade e que é possível “construir uma sociedade mais justa, livre e fraterna”, num caminho orientado para um “mundo melhor”; e que os profissionais de saúde são o “fator principal de sustentabilidade do SNS” e aqueles que o tornam um serviço de qualidade.
Questionado se o SNS é hoje o que idealizou, não se circunscreve a uma resposta simples e direta de “Sim” ou de “Não”. Mas, reconhecendo algumas insuficiências, explica como se realizou o anseio de muitos:
“Foi sonhado por muitos como o conjunto de serviços e equipamentos capazes de responder satisfatoriamente às necessidades de saúde de todos os portugueses, prestando-lhes, de forma geral, universal e gratuita, os cuidados de que necessitam. Esse foi também o meu propósito quando tomei a iniciativa, primeiro como Ministro dos Assuntos Sociais do II Governo de Mário Soares e, depois, como deputado do Partido Socialista, de transformar essa velha aspiração em letra de lei. Por isso, posso afirmar que o SNS continua, apesar de algumas insuficiências, a cumprir o seu objetivo.”.
Justificando porque nos devemos orgulhar do nosso SNS, enfatiza:
“Os indicadores sanitários conhecidos e, especialmente, quanto à mortalidade infantil e à esperança média de vida, mostram que Portugal tem um dos melhores serviços de saúde do mundo” (Em 2014, avançava os seguintes dados: a esperança média de vida passou dos 75 para os 80 anos e a mortalidade infantil, que estava próxima dos 40 por mil, baixou para três por mil).
Falando em termos pessoais, confessa:
“Eu, hoje, estou vivo graças ao SNS. Sempre optei pelo SNS, sou apenas utente do SNS, como a maioria dos portugueses. Quando fui operado às cataratas estive 8 meses à espera e não houve problema nenhum. Quando passaram 6 meses de espera, recebi uma carta a dizer que tinha direito a escolher uma de três unidades de saúde privadas, e eu disse ‘sou utente do SNS, eu espero’.”.
A seguir, aponta algumas carências, para conseguir que o sistema seja melhor:
É preciso desenvolver algumas valências, como por exemplo a medicina dentária. Nós não temos medicina dentária, temos um esboço, um cheque dentário, mas não temos em geral e é preciso desenvolvê-lo. E é necessário garantir um médico de família para toda a população, já que ainda há 500 mil portugueses sem médico de família atribuído, portanto há muita coisa a fazer, sobretudo neste domínio.”.
Olha com simpatia para as manifestações e greves dos profissionais de saúde, achando que os enfermeiros têm razão, mas lamenta a instrumentalização partidária por parte da bastonária, que é dirigente política dum partido. Salientando, como se disse, que “os profissionais de saúde são o fator principal de sustentabilidade do SNS”, realça que “os enfermeiros estão na vanguarda da qualidade dos serviços de saúde”. E explica:
“Eles estão presentes à cabeceira do doente 24 horas por dia. Presto-lhes homenagem, mas peço-lhes alguma compreensão em face das nossas dificuldades financeiras. No geral, são todos muito delicados, competentes, com grande sentido de sacrifício e ganham muito mal.”.
Tem uma opinião muito positiva a respeito do novo bastonário da Ordem dos Médicos, “pois é um defensor do SNS e dos valores deontológicos da profissão médica”.
Dos serviços de urgência diz que “têm muitas carências”, sendo a principal a falta de médicos, enfermeiros e técnicos, referindo:
“Alguns trabalham até à exaustão, fazendo muitos turnos seguidos; e outros são contratados aos fins de semana. Estes profissionais não têm capacidade de se integrarem nas equipas. Pode haver algumas insuficiências e é preciso romper com essa rotina e encarar a situação com coragem. É necessário criar carreiras profissionais dignas e motivadoras. Quando se fala da sustentabilidade do SNS, pensa-se no orçamento, nos meios financeiros.”.
Mas assenta em que, a seu ver, “a verdadeira sustentabilidade do SNS não é o dinheiro”, mas “os profissionais”. E sustenta:
“O dinheiro aparece, vem um governo e dá mais dinheiro ao SNS e resolve o problema só nesse ano, enquanto a questão das carreiras é uma coisa de gerações, porque, se não há carreiras estabilizadas, estáveis, dignas, então o SNS não funciona. Os profissionais estão numa carreira 20, 30, 40 anos, portanto a estabilidade tem de ser vista a longo prazo. A sustentabilidade e qualidade do SNS depende de carreiras dignas; e o Estado Social tem a obrigação de garantir aos seus profissionais carreiras dignas onde eles se sintam motivados.”.
Só me interrogo porque é que não se ouve este homem, se há dinheiro a rodos para salvar bancos e pagar ordenados e reformas milionárias a gestores de topo e se tantos delapidam o Estado e ficam impunes e, em contrapartida, desinveste-se no capital humano…
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Mas Arnaut traz uma novidade sobre a questão das carreiras e da especialidade dos enfermeiros:
“A questão de enfermeiros especialistas não tem razão legal, porque a categoria de especialista não está na lei, foram as escolas de enfermagem e a Ordem que a criaram. Eles criaram isso e são especialistas, muito bem, mas a lei ainda não contempla essa qualidade.”.
E, colocando as coisas no seu devido lugar, assegura:
“Os enfermeiros é que verdadeiramente cuidam do doente, porque o médico prescreve, faz a intervenção e entrega o doente a quem? Ao enfermeiro. O doente está 24 horas sobre 24 horas ao cuidado do enfermeiro. Há uma grande dedicação.”. 
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Sobre as utopias do SNS e sobre os sonhos ainda adiados, o jurista político não tem dúvidas. Primeiro o objetivo:
“O nosso grande objetivo com o SNS era garantir que todos os portugueses – tanto em Lisboa, como no Porto, como em Coimbra, como nas aldeias mais recônditas – tivessem acesso concreto aos cuidados de saúde de que necessitam, embora não possa haver um hospital ou um centro de saúde à porta de cada cidadão”.
Depois, a utopia do SNS:
“A utopia do SNS é que um dia possa haver todos os cuidados de saúde para todos os portugueses de forma gratuita. Quando se diz tudo para todos, é tudo dentro dos meios técnicos e humanos disponíveis, como é evidente. Haverá um plano moral e ético, porque a saúde é um direito fundamental dos portugueses, um direito fundamental das pessoas e tem a ver com a dignidade da vida humana. A Constituição reconhece a saúde como um direito fundamental, portanto, o SNS tem de garantir de forma efetiva o acesso a cuidados de saúde, para preservar a dignidade de cada um.”.
Por fim, sobre a utopia por que todos devemos lutar, diz em termos pessoais:
O progresso é uma constante da humanidade e eu, como socialista ético, acredito, e todas as pessoas de boa vontade acreditam, que é possível construir uma sociedade mais justa, livre e fraterna. Neste plano, acho que caminhamos para um mundo melhor.”.
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Em concreto, sobre a questão da paternidade e da maternidade do SNS, Arnaut explica-se bem:
“As pessoas conhecem-me como ‘pai’ do SNS, por ser o autor da lei, mas o que tem valido ao SNS não é o ‘pai’, é a 'mãe'. Sou o 'pai' porque gerei o SNS, assumo essa responsabilidade política; a 'mãe' é a Constituição da República. Se não fosse ela, já não havia SNS porque a Direita já por várias vezes tentou revogar a lei fundadora e até a substituiu em 1990.”.
E, afirmando que “o SNS foi uma grande reforma da democracia portuguesa” e um grande fator de coesão nacional, “a mais querida das reformas da democracia portuguesa e hoje, felizmente, reúne um largo consenso político”, diz:
“É uma coisa muito querida dos portugueses e não se pode prescindir do SNS, tem sido um fator de justiça e coesão social. Que seria este país que vive tão mal e tem tantos pobres se não tivesse um SNS? Seria muito pior e mais injusto. Desejo que o SNS se mantenha cada vez melhor, mais aperfeiçoado com as reformas necessárias e que satisfaça as necessidades de todos os portugueses.”.
E deixa um forte apelo aos partidos e aos profissionais de saúde, reforçado pela sua experiência de vida pessoal:
“Fazia um apelo para que os partidos não façam do SNS um motivo de luta partidária, justamente porque é um fator de coesão de unidade nacional, de progresso, de liberdade e de dignidade. E fazia um apelo a todos os profissionais de saúde – médicos, enfermeiros, técnicos e assistentes profissionais – e dirijo-lhes uma palavra de agradecimento e esperança. Agradecimento pelo que têm feito, pela sustentabilidade e qualidade do SNS, de que eu próprio sou testemunha. Estou vivo graças ao SNS. E de esperança, estou convencido de que, em breve, teremos uma nova lei de bases que prevê carreiras profissionais dignas, com garantia de estabilidade, formação permanente, progressão e remuneração adequada. Estou pessoalmente empenhado nesse objetivo e a trabalhar nisso.”.
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António Arnaut é, pois, um homem de armas, que se assume como o pai do SNS, cuja maternidade atribui à Constituição. Já agora podiam referir-se: o avô Mário Soares; os parteiros Mário Mendes e Gonçalves Ferreira; e os padrinhos Ramalho Eanes e Lourdes Pintasilgo.
Só é pena que, por desígnios inconfessados, incluindo a famigerada troika, se faça tanto negócio com a saúde, sem que o Estado intervenha com suficiente eficácia nos preços dos materiais atinentes à saúde, aliás como o fez em reação ao medicamento, e que os subsistemas tenham deixado de ajudar, por via contratual, ao financiamento do SNS. E aqui não se pode acusar só a Direita como diz Arnaut. Poucos podem atirar a primeira pedra! Mas estamos a tempo…

2017.09.17 – Louro de Carvalho

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