Em geral, o advogado António Arnaut, de 81 anos, que foi Ministro dos
Assuntos Sociais, no II Governo Constitucional, presidido por Mário Soares, e
deputado do Partido Socialista, é considerado o “pai” do Serviço Nacional de
Saúde (SNS). Habitualmente, dá-me para remar contra a maré e
insistir na atribuição da paternidade dum regime jurídico que estabelece um
sistema nacional à Assembleia da República, se falamos duma lei, ou ao Governo,
se considerarmos um decreto-lei. E, mesmo neste caso, trata-se usualmente de um
diploma de desenvolvimento de uma lei de bases ou de um diploma elaborado em
consonância com uma autorização legislativa ou, ainda, de um decreto-lei que
cuja apreciação parlamentar pode ser requerida por um grupo de deputados nos
termos constitucionais e regimentais. Apenas nos casos em que o Governo legisla
em matéria da sua exclusiva competência é que o Parlamento não pode avocar a
apreciação parlamentar do diploma em causa. Em qualquer dos casos, a autoria é
de um órgão colegial do poder político, passando pelo punho do Presidente da
República para promulgação, pouco me interessando a iniciativa ou a autoria
material.
Porém, no
caso de Arnaut e do SNS, não tenho qualquer escrúpulo em alinhar ao lado dos
que atribuem ao cidadão, na altura investido em funções de poder, a paternidade
do SNS. Com efeito, a experiência fez-se e consolidou-se pela via de despacho
ministerial (uma via estranha) – o conhecido
“Despacho Arnaut” – datado de 20 de julho de 78 e publicado na II Série do
Diário da República de 29 de julho de 78, uma verdadeira antecipação do SNS, na medida em que abre o
acesso aos Serviços Médico-Sociais a todos os cidadãos, independentemente da
sua capacidade contributiva. É garantida assim, pela primeira vez, a
universalidade, generalidade e gratuitidade dos cuidados de saúde e a
comparticipação medicamentosa.
O ilustre advogado tinha sido convidado para Ministro da
Justiça do II Governo, mas tomou posse como Ministro dos Assuntos Sociais. De
facto, Mário Soares, à última hora,
disse-lhe que tinha de ser Ministro dos Assuntos Sociais, Saúde e a Segurança
Social, porque não tinha conseguido ninguém que aceitasse aquela pasta “muito
difícil, pois, “na altura, existiam muitos problemas entre os médicos” (havia ainda
os anos policlínicos) e “entre
os enfermeiros”. E, apelando-lhe ao sentido de dever, insistiu que era uma
pasta à sua altura, que era socialista. Arnaut aceitou com a condição de criar
o SNS. Soares concordou, mas, face à resistência inicial do convidado,
aconselhou-lhe a escolha dum bom Secretário de Estado. E foi escolhido para Secretário
de Estado da Saúde, com a mediação de Miguel Torga, Mário Mendes, médico de
Coimbra, que deu extraordinária colaboração. Arnaut foi o impulsionador político
do SNS, responsabilidade que assume, mas “a parte técnica foi feita por Mário
Mendes e por Gonçalves Ferreira, um homem que sabia muito de saúde pública e
tinha sido Secretário de Estado de Marcello Caetano”. E, para Secretário de Estado
da Segurança Social convidou Victor Vasques, que já lá estava e era também de
Coimbra.
Deixado o
programa da Justiça, já delineado, começou a preparar o programa do Ministério
dos Assuntos Sociais. Isto apenas dois ou três dias antes da posse. Diz Arnaut
que, em 1978, “havia um grande entusiasmo, tínhamos um sentido de servir o
povo, a causa pública, tínhamos valores, que infelizmente hoje vão
desaparecendo”. O Governo tomou posse a 23 de janeiro e, nos primeiros dias de
fevereiro, o Ministro apresentou o programa do Ministério dos Assuntos Sociais
em nome do Governo. Entre os pontos de honra, figurava o anúncio de que o
Governo ia criar o SNS e que, no prazo de 5 meses, seria apresentado o projeto
da Lei de Bases. Porém, ao fim de um mês, o anteprojeto estava pronto e foi
apresentado publicamente em princípios de abril e foi aí que o parceiro do PS
no Governo e outras forças, incluindo elementos socialistas, viram que era a
sério. O Ministro, verificando a convicção criada de que “habitualmente os programas
do governo não se cumprem”, garantiu reiteradamente que o SNS era, para si, “um
ponto de honra, não recuava um milímetro, não retirava uma vírgula”.
Entretanto,
o II Governo Constitucional caiu em agosto desse ano, mas, antes, o Ministro fez
um despacho a criar o SNS, datado de 20 de julho de 78 e publicado no Diário da
República de 29 de julho de 78 (Foi o ano da 1.ª intervenção do FMI). Voltou à Assembleia da República como deputado,
onde apresentou o anteprojeto do SNS como projeto de lei do PS. Na votação
final global, foi aprovado com os votos favoráveis do PS, do PCP e do deputado
da UDP, tendo os votos contra do PSD e do CDS. A Lei n.º 56/79, de 15 de
setembro, que formalmente cria o SNS e lhe alarga o âmbito, foi publicada a 15
de setembro, sendo Primeiro-Ministro Lourdes Pintasilgo, conhecida como a antiga
Ministra dos Assuntos Sociais com fortes convicções e preocupações nesta área.
O seu Governo, o dos 100 dias, foi altamente reformista e inovador.
Está assim
explicada a paternidade e a gestação do SNS (vd As Beiras, de 7 de outubro de 2014).
***
Nos termos da
predita Lei n.º 56/79, de 15 de setembro, o acesso ao SNS é garantido a todos os cidadãos,
independentemente da sua condição económica e social e reger-se-á por normas
regulamentares a estabelecer, e também aos estrangeiros, em regime de
reciprocidade, aos apátridas e aos refugiados políticos que residam ou se
encontrem em Portugal. Esta garantia compreende o acesso a todas as prestações
abrangidas pelo SNS e não sofre restrições, salvo as impostas pelo limite de
recursos humanos, técnicos e financeiros disponíveis; e o SNS envolve todos os
cuidados integrados de saúde, compreendendo a promoção e vigilância da saúde, a
prevenção da doença, o diagnóstico e tratamento dos doentes e a reabilitação
médica e social.
Por outro
lado, ao direito à proteção da saúde assegurado pelo SNS corresponde o dever,
que a todos incumbe, de a defender e promover, nos termos da Constituição.
***
Na passagem
do 38.º aniversário da publicação da 1.ª Lei do SNS anos, a 15 de setembro pp,
António Arnaut foi entrevistado pelo “Notícias
ao Minuto”, edição on line, revelando:
“Em breve, teremos uma nova lei de bases, que prevê carreiras profissionais
dignas, com garantia de estabilidade, formação permanente, progressão e
remuneração adequada. Estou pessoalmente empenhado nesse objetivo e a trabalhar
nisso.”.
E Arnaut,
conhecido como o “pai” do SNS, por ter sido o mentor dum serviço de
saúde acessível a todos os portugueses – sonho de muitos e que o levou a
transformar uma “velha aspiração em letra de lei” – não aceita ficar com todos
os louros, pois, além do trabalho técnico de Mário Mendes e de Gonçalves
Ferreira, crê que “sem a ‘mãe’ – Constituição – já não existia SNS”. Mais:
acredita que o progresso é parte da humanidade e que é possível “construir uma
sociedade mais justa, livre e fraterna”, num caminho orientado para um “mundo
melhor”; e que os profissionais de saúde são o “fator principal de
sustentabilidade do SNS” e aqueles que o tornam um serviço de qualidade.
Questionado
se o SNS é hoje o que idealizou, não se circunscreve a uma resposta simples e
direta de “Sim” ou de “Não”. Mas, reconhecendo algumas insuficiências, explica
como se realizou o anseio de muitos:
“Foi sonhado por muitos como o conjunto de serviços e equipamentos capazes
de responder satisfatoriamente às necessidades de saúde de todos os
portugueses, prestando-lhes, de forma geral, universal e gratuita, os cuidados
de que necessitam. Esse foi também o meu propósito quando tomei a iniciativa,
primeiro como Ministro dos Assuntos Sociais do II Governo de Mário Soares e,
depois, como deputado do Partido Socialista, de transformar essa velha
aspiração em letra de lei. Por isso, posso afirmar que o SNS continua, apesar
de algumas insuficiências, a cumprir o seu objetivo.”.
Justificando porque nos devemos orgulhar do nosso SNS, enfatiza:
“Os indicadores sanitários conhecidos e, especialmente, quanto à
mortalidade infantil e à esperança média de vida, mostram que Portugal tem um
dos melhores serviços de saúde do mundo” (Em 2014, avançava os seguintes dados:
a esperança média de vida passou dos 75 para os 80
anos e a mortalidade infantil, que estava próxima dos 40 por mil, baixou para
três por mil).
Falando em termos
pessoais, confessa:
“Eu, hoje, estou vivo graças ao SNS. Sempre optei pelo SNS, sou apenas
utente do SNS, como a maioria dos portugueses. Quando fui operado às cataratas estive
8 meses à espera e não houve problema nenhum. Quando passaram 6 meses de
espera, recebi uma carta a dizer que tinha direito a escolher uma de três
unidades de saúde privadas, e eu disse ‘sou utente do SNS, eu espero’.”.
A seguir, aponta algumas carências, para conseguir que o sistema
seja melhor:
É preciso desenvolver algumas valências, como por exemplo a medicina
dentária. Nós não temos medicina dentária, temos um esboço, um cheque dentário,
mas não temos em geral e é preciso desenvolvê-lo. E é necessário garantir um
médico de família para toda a população, já que ainda há 500 mil portugueses
sem médico de família atribuído, portanto há muita coisa a fazer, sobretudo
neste domínio.”.
Olha com simpatia para as manifestações e greves dos profissionais de
saúde, achando que os enfermeiros têm
razão, mas lamenta a instrumentalização partidária por parte da bastonária, que
é dirigente política dum partido. Salientando, como se disse, que “os
profissionais de saúde são o fator principal de sustentabilidade do SNS”,
realça que “os enfermeiros estão na vanguarda da qualidade dos serviços de
saúde”. E explica:
“Eles estão presentes à cabeceira do doente 24 horas por dia. Presto-lhes
homenagem, mas peço-lhes alguma compreensão em face das nossas dificuldades
financeiras. No geral, são todos muito delicados, competentes, com grande sentido
de sacrifício e ganham muito mal.”.
Tem uma
opinião muito positiva a respeito do novo bastonário da Ordem dos Médicos, “pois
é um defensor do SNS e dos valores deontológicos da profissão médica”.
Dos serviços
de urgência diz que “têm muitas carências”, sendo a principal a falta de médicos,
enfermeiros e técnicos, referindo:
“Alguns trabalham até à exaustão, fazendo muitos turnos seguidos; e outros
são contratados aos fins de semana. Estes profissionais não têm capacidade de
se integrarem nas equipas. Pode haver algumas insuficiências e é preciso romper
com essa rotina e encarar a situação com coragem. É necessário criar carreiras
profissionais dignas e motivadoras. Quando se fala da sustentabilidade do SNS,
pensa-se no orçamento, nos meios financeiros.”.
Mas assenta
em que, a seu ver, “a verdadeira sustentabilidade do SNS não é o dinheiro”, mas
“os profissionais”. E sustenta:
“O dinheiro aparece, vem um governo e dá mais dinheiro ao SNS e resolve o
problema só nesse ano, enquanto a questão das carreiras é uma coisa de
gerações, porque, se não há carreiras estabilizadas, estáveis, dignas, então o
SNS não funciona. Os profissionais estão numa carreira 20, 30, 40 anos,
portanto a estabilidade tem de ser vista a longo prazo. A sustentabilidade e
qualidade do SNS depende de carreiras dignas; e o Estado Social tem a obrigação
de garantir aos seus profissionais carreiras dignas onde eles se sintam
motivados.”.
Só me interrogo porque é que não se ouve este homem, se há dinheiro a
rodos para salvar bancos e pagar ordenados e reformas milionárias a gestores de
topo e se tantos delapidam o Estado e ficam impunes e, em contrapartida,
desinveste-se no capital humano…
***
Mas Arnaut traz uma novidade sobre a questão das carreiras e da especialidade
dos enfermeiros:
“A questão de enfermeiros especialistas não tem razão legal, porque a
categoria de especialista não está na lei, foram as escolas de enfermagem e a
Ordem que a criaram. Eles criaram isso e são especialistas, muito bem, mas a
lei ainda não contempla essa qualidade.”.
E, colocando
as coisas no seu devido lugar, assegura:
“Os enfermeiros é que verdadeiramente cuidam do doente, porque o médico
prescreve, faz a intervenção e entrega o doente a quem? Ao enfermeiro. O doente
está 24 horas sobre 24 horas ao cuidado do enfermeiro. Há uma grande dedicação.”.
***
Sobre as utopias do SNS e sobre os sonhos ainda adiados, o jurista
político não tem dúvidas. Primeiro o objetivo:
“O nosso grande objetivo com o SNS era garantir que todos os portugueses –
tanto em Lisboa, como no Porto, como em Coimbra, como nas aldeias mais
recônditas – tivessem acesso concreto aos cuidados de saúde de que
necessitam, embora não possa haver um hospital ou um centro de saúde à porta de
cada cidadão”.
Depois, a
utopia do SNS:
“A utopia do SNS é que um dia possa haver todos os cuidados de saúde para
todos os portugueses de forma gratuita. Quando se diz tudo para todos, é tudo
dentro dos meios técnicos e humanos disponíveis, como é evidente. Haverá um
plano moral e ético, porque a saúde é um direito fundamental dos portugueses,
um direito fundamental das pessoas e tem a ver com a dignidade da vida humana.
A Constituição reconhece a saúde como um direito fundamental, portanto, o SNS
tem de garantir de forma efetiva o acesso a cuidados de saúde, para preservar a
dignidade de cada um.”.
Por fim, sobre a utopia por que todos devemos lutar, diz em termos
pessoais:
“O progresso é uma constante da humanidade e eu, como
socialista ético, acredito, e todas as pessoas de boa vontade acreditam, que é
possível construir uma sociedade mais justa, livre e fraterna. Neste plano,
acho que caminhamos para um mundo melhor.”.
***
Em concreto, sobre a questão da paternidade e da maternidade do SNS,
Arnaut explica-se bem:
“As pessoas conhecem-me como ‘pai’ do SNS, por ser o autor da lei, mas o
que tem valido ao SNS não é o ‘pai’, é a 'mãe'. Sou o 'pai' porque gerei o SNS,
assumo essa responsabilidade política; a 'mãe' é a Constituição da República.
Se não fosse ela, já não havia SNS porque a Direita já por várias vezes tentou
revogar a lei fundadora e até a substituiu em 1990.”.
E, afirmando
que “o SNS foi uma grande reforma da democracia portuguesa” e um grande fator
de coesão nacional, “a mais querida das reformas da democracia portuguesa e
hoje, felizmente, reúne um largo consenso político”, diz:
“É uma coisa muito querida dos portugueses e não se pode prescindir do SNS,
tem sido um fator de justiça e coesão social. Que seria este país que vive tão
mal e tem tantos pobres se não tivesse um SNS? Seria muito pior e mais injusto.
Desejo que o SNS se mantenha cada vez melhor, mais aperfeiçoado com as reformas
necessárias e que satisfaça as necessidades de todos os portugueses.”.
E deixa um forte apelo aos partidos e aos profissionais de saúde,
reforçado pela sua experiência de vida pessoal:
“Fazia um apelo para que os partidos não façam do SNS um motivo de luta
partidária, justamente porque é um fator de coesão de unidade nacional, de
progresso, de liberdade e de dignidade. E fazia um apelo a todos os
profissionais de saúde – médicos, enfermeiros, técnicos e assistentes
profissionais – e dirijo-lhes uma palavra de agradecimento e esperança.
Agradecimento pelo que têm feito, pela sustentabilidade e qualidade do SNS, de
que eu próprio sou testemunha. Estou vivo graças ao SNS. E de esperança, estou
convencido de que, em breve, teremos uma nova lei de bases que prevê carreiras
profissionais dignas, com garantia de estabilidade, formação permanente,
progressão e remuneração adequada. Estou pessoalmente empenhado nesse objetivo
e a trabalhar nisso.”.
***
António
Arnaut é, pois, um homem de armas, que se assume como o pai do SNS, cuja
maternidade atribui à Constituição. Já agora podiam referir-se: o avô Mário
Soares; os parteiros Mário Mendes e Gonçalves Ferreira; e os padrinhos Ramalho
Eanes e Lourdes Pintasilgo.
Só é pena
que, por desígnios inconfessados, incluindo a famigerada troika, se faça tanto
negócio com a saúde, sem que o Estado intervenha com suficiente eficácia nos
preços dos materiais atinentes à saúde, aliás como o fez em reação ao
medicamento, e que os subsistemas tenham deixado de ajudar, por via contratual,
ao financiamento do SNS. E aqui não se pode acusar só a Direita como diz
Arnaut. Poucos podem atirar a primeira pedra! Mas estamos a tempo…
2017.09.17 – Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário