segunda-feira, 25 de setembro de 2017

A guerra de Solnado: pessoas e material à altura do 3.º milénio

O semanário Expresso, de 23 de setembro, deu voz a um pretenso relatório sobre o roubo de material militar nos paióis de Tancos nos fins de junho pp, assegurando, nas suas parangonas, que se tratava de um relatório explosivo que “arrasa o poder político e militar”.
Já sabíamos que a instituição militar, a propósito do incidente, se vergara aos caprichos do poder político, ou melhor das declarações erráticas do Ministro da Defesa Nacional (MDN), que então dissera que o caso era muito grave e que tinha de ser investigado, embora não fosse caso único nem o mais alarmante de sempre, mas recentemente veio dizer que no limite nem terá havido qualquer assalto e consequente roubo de material. E ainda disse que a segurança dos materiais era suficiente, quando ou há segurança ou não há, pelo menos em conformidade com os padrões convencionados.
Do lado das chefias militares, Pina Monteiro, general CEMGFA (Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas), depois de confrontado pelo comandante supremo das forças armadas (Presidente da República) disse publicamente que o material roubado era obsoleto e estava fora de prazo, mas até contabilizou em euros o prejuízo, esquecendo que, apesar de fora de prazo e obsoleto, esse material não deixava de ser perigoso.
Por seu turno, Rovisco Duarte, o general CEME (Chefe do Estado-Maior do Exército), assumiu toda a responsabilidade pelo sucedido, comprometendo, nessa sua postura, todo o exército. Exonerou temporariamente cinco comandantes de unidades responsáveis pela vigilância das instalações, que reintegrou após diligências decorrentes de inquérito interno. Mas nem sequer houve lugar a qualquer processo disciplinar. No entanto, os desentendimentos com o CEME, no seio do ramo, afloraram no rescaldo da antiga intervenção pública do MDN sobre episódio dentro do Colégio Militar que levou à demissão do anterior CEME e cuja sucessão terá estado em perigo mercê de solidariedades que Rovisco Duarte rompera.
Sabia-se que o Ministro tivera, durante meses, sobre a secretária proposta de despacho para autorizar despesas na reparação da vedação das instalações dos paióis; agora soube-se que o CEME não terá cuidado das obras. O CEME anunciou o encerramento dos paióis e a distribuição dos materiais por várias unidades de armazenamento mais seguras do que Tancos. Agora diz-se que a vigilância dos paióis ficará entregue a uma unidade militar específica, a nível de pelotão, que será responsável pela vigilância humana e eletrónica (Esta deixara de funcionar há anos!), mantendo-se o regime rotativo apenas até à entrada em funções da referida unidade. Em que ficamos afinal? Fecham ou não Tancos?  A mudança cede à tradição?  
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Em relação ao putativo relatório, que o Expresso reitera que existe e é verdadeiro, as Forças Armadas vieram logo no dia 23 dizer, através do EMGFA (Estado-Maior General das Forças Armadas) que o CISMIL (Centro de Informações e Segurança Militar) não produziu qualquer relatório sobre Tancos. E o Expresso veio acrescentar que não atribuiu o documento ao CISMIL em momento algum, mas sim a serviços de informações militares.
O documento, de 63 páginas, que o Expresso diz ter na sua posse e cuja credibilidade fora confirmada junto de varias fontes humanas (militares no ativo e também na reserva), foi elaborado, tal como se escreveu, para conhecimento da UNCT (Unidade Nacional de Contra Terrorismo) da Polícia Judiciária e do SIS (Serviço de Informações de Segurança) e contém informação de cariz militar e também ao nível da segurança interna.
O predito relatório, além do processo sobre Tancos, refere informações na área do terrorismo, nomeadamente sobre o grupo de jiadistas portugueses e de outros pontos da Europa, bem como de transmissão de materiais para os PALOP (países africanos de língua oficial portuguesa). O documento baseia-se alegadamente em fontes abertas (provenientes, por exemplo, da comunicação social) e em fontes fechadas (obtidas através de fontes próprias) e pretende fazer uma análise sucinta sobre o tipo de ameaças que Portugal e todo o Continente europeu atravessam, numa altura em que o Ocidente é assolado por dezenas de ataques terroristas de cariz jiadista.
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António Costa garantiu, no dia 23 à noite, que o relatório citado pela notícia que fez manchete do Expresso “não é de nenhum organismo oficial” nem foi produzido por “serviços do Estado”.
À margem de uma ação de campanha do PS em Loulé, Costa reiterou, em entrevista à RTP, desconhecer o documento e rejeitou, por isso, qualquer impacto que o mesmo possa ter na credibilidade do Ministro. E acrescentou que “o que sai descredibilizado é essa informação e aqueles que a distribuem”, invocando os desmentidos, entretanto, feitos pelas secretas militares sobre a autoria do relatório, como já foi dito e adiante se verá de novo.
Recusando fazer do assunto um tema de campanha nas autárquicas, Costa criticou ainda Passos Coelho, lamentando que o líder do PSD “faça comentários com base em notícias sem saber se o documento é autêntico”. E, sobre o pedido de Marcelo Rebelo de Sousa para que sejam apuradas todas as circunstâncias do furto de armas no paiol de Tancos, sustentou que o Presidente “disse o óbvio e o que o Governo diz”: “Há um processo-crime a correr e todos esperamos para saber. Confiamos no Ministério Público, que está a investigar o caso.”.
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A ser fiável o que vem no predito semanário, o relatório, se existe, é muito sui generis. Com efeito, não descreve situações de diligências e falhas de forma coerente e consistente. Não apura com um mínimo de segurança a veridicidade quantitativa e qualitativa dos factos nem identifica responsáveis ou meros suspeitos. Ao invés, lança suspeitas infundadas sobre os proprietários da empresa que forneceu materiais de segurança (físicos e eletrónicos) e mão de obra, bem como sobre os trabalhadores que operaram na reparação da rede exterior ao perímetro poente dos paióis; contesta sem fundamento sólido a qualidade da transmissão de informação e as declarações prestadas na Comissão Parlamentar de Defesa e no Plenário da Assembleia da República; e sabe a muito pouco sugerir um mecanismo de registo de levantamento de materiais necessários para instrução e operações e de devolução de materiais militares não utilizados.
Aliás, é de qualidade duvidosa um relatório que se fique na suposição de cenários, mesmo que se trate de uma dezena, que nada traz de novo ao nível das hipóteses. É muito pouco e chega a ser temerário, pelos fantasmas desnecessários que levanta, dar-se:
- Como muito provável: intervenção de empresa nortenha de venda de equipamento militar com ligações a ex-militares (um deles detido em 2016 por tráfico de armamento) e a senhores da guerra em África; contratação de mercenários portugueses por radicais islâmicos separatistas da Córsega ou máfias europeias; e ação de grupos extremistas islâmicos com células na Península Ibérica.     
- Como provável: assalto encenado por motivos políticos, não tendo, em tese, as armas e munições entrado nos paióis alegadamente assaltados; ação de criminosos ligados ao crime organizado e violento com ligações fora da Europa, podendo já ter escoado o armamento furtado para o estrangeiro; e ação de homens especializados em assaltos a bancos e a carrinhas de transporte de valores.
- Como possível: ação de seguranças privados do mundo da noite do Porto (Porquê do Porto?); e encenação de militares descontentes por não terem passado à reserva.
- E como pouco provável: ação de máfia dos Balcãs com ligações a Portugal; e ação de empresa portuguesa com sede no estrangeiro que recorre a mercenários.
Além disso, o texto refere que o Ministro atuou com grande “ligeireza, quase imprudente”, sendo-lhe apontadas “declarações arriscadas e de intenções duvidosas” e uma “atitude de arrogância cínica” na condução de todo o processo.
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Em reação a esta polémica, o Presidente da República insistiu, como se insinuou, que é necessário esclarecer o que se passou com o furto de armas em Tancos, nomeadamente “se houve ou não atuação criminal, em que é que se traduziu e quem são os responsáveis”.
Marco António Costa, Presidente da Comissão Parlamentar de Defesa, diz que a notícia sobre um ralhete do chefe do Governo a deputados socialistas a propósito de Tancos, por eles terem um papel ativo na exigência de mais informações da parte do Ministério da tutela, é “muito preocupante” e de enorme gravidade institucional, acusando o Primeiro-Ministro e o Governo de obstrução ao trabalho de fiscalização dos deputados na investigação ao desaparecimento de material militar dos paióis nacionais de Tancos – no que foi seguido por Passos e Cristas.
Fontes ouvidas pelo DN garantiram que nem a PJ nem o Ministério Público nem o SIS receberam qualquer documento daquela natureza.
O Primeiro-Ministro, que declarara “desconhecer em absoluto esse relatório” atribuído aos serviços de informações militares, afirmou depois à RTP, como já se disse, que “o secretário-geral dos serviços de informações” também já tinha negado a sua existência e que o documento “não é de nenhum organismo oficial do Estado português”. E, criticando os que “comentam notícias sem verificar a veracidade dos documentos”, nomeadamente Passos Coelho e Cristas, Costa considerou que este é um “documento fabricado”.
Note-se que, nas Forças Armadas, há 4 estruturas com competências de natureza operacional: o CISMIL (Centro de Informações e Segurança Militares), no EMGFA; o CADOP (Centro de Gestão e Análise de Dados Operacionais), na Marinha; o CSMIE (Centro de Segurança Militar e de Informações do Exército), que “não tem conhecimento de relatório algum”; e a REPINFO (Repartição de Informações) do Comando Aéreo, na Força Aérea. era de crer que, a haver relatório, fosse da autoria do CISMIL ou do CSMIE – estruturas ligadas ao exército.
Assinale-se também que os documentos classificados têm o nome do organismo que os produziu, o respetivo número de registo e, em cima e em baixo de todas as páginas, o seu grau de classificação.
Ainda quanto a reações, a PJM (Polícia Judiciária Militar) escusou-se a fazer quaisquer comentários sobre o caso, por estar em segredo de justiça. Mas um seu antigo responsável, o major-general Rodolfo Begonha, adiantou ao DN que os relatórios “não fazem críticas” – apenas identificam factos e as análises “têm de ser fundamentadas”. E, a meu ver, este não é o caso.
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O Presidente da República e Comandante Supremo das Forças Armadas, a quem é atribuída a vontade de ver Azeredo Lopes substituído, escusou-se a comentar o alegado relatório secreto, mas reafirmou que “os portugueses [e ele próprio] esperam que haja o apuramento de uma realidade que é muito importante”. Fontes de Belém adiantaram que a Presidência não crê na autenticidade do documento e estranha mesmo muito o seu conteúdo, sobretudo no que toca à vertente política.
Mas a verdade é que o Ministro da Defesa e o CEME parecem estar a prazo nos respetivos cargos. E o CEMGFA passará à reforma em fevereiro do próximo ano. Em relação a Azeredo Lopes, fontes do Ministério reconhecem a sua inabilidade e fragilidade políticas, admitindo a sua saída. Como substitutos, fala-se em dois nomes: João Soares (deputado da Comissão de Defesa), de quem se disse que fora escolhido para o cargo antes de à última hora ser nomeado ministro da Cultura (Garante-se que não vai ameaçar os militares de aplicar um par de estalos!); e Carlos César, presidente do PS e líder da bancada parlamentar, que é visto como um ator “politicamente desaproveitado”. Quanto a Rovisco Duarte, muito criticado por numa primeira fase ter exonerado os comandantes das 5 unidades envolvidas na segurança dos paióis de Tancos e vir a readmiti-los, a fragilidade da sua posição resulta também de ter sido Inspetor-Geral do Exército até assumir as atuais funções, devendo conhecer o estado das instalações militares, a logística, o pessoal e os procedimentos.
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O Ministro da Defesa admitiu, no dia 24, que o badalado relatório dos serviços de informações militares sobre o furto de armamento de Tancos tenha sido fabricado e que possam existir “objetivos políticos” na sua divulgação, afirmando:
“É importante saber de quem é a autoria do documento, com que intenção foi elaborado e com que objetivos, aparentemente políticos, foi divulgado como sendo das secretas”.
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É óbvio que há objetivos políticos quer na elaboração quer na publicação – sobretudo pelo lado da oportunidade – de textos, relatórios e fugas de informação. Porém, os disparates são tantos que as declarações e as polémicas cheiram a anedota, como se as forças armadas e a guerra fossem uma brincadeira com horários, refeições, sestas, noitadas, feriados, folgas e férias ou combinação de quem é o inimigo no dia seguinte e acordo como se adquire o material de guerra ou a autorização para dar tiros. Por isso e para ser parcimonioso na crítica, só me pergunto em que ficamos nesta guerra à Solnado, feita de políticos, militares e jornalistas e ajustada às exigências deste 3.º milénio.

2017.09.25 – Louro de Carvalho

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